Concorrendo muita dúvida e alteração sobre a sucessão do Regno de Portugal, entre el-Rei Filipe e D. António, Prior do Crato, filho do Infante D. Luís, sendo este, como português, jurado por Rei nestas ilhas dos Açores, foi tanto o poder de el-Rei Filipe, fundado na justiça e direito, que por muitos e graves letrados do Regno e fora dele lhe era concedido, que se apossou de todo o Regno e em todo ele foi reconhecido e jurado por Rei. E de tal maneira foi esbulhado D. António e destruído com os seus, que se não soube de certeza para que parte era acolhido, ou se ficava escondido no Regno.
Depois de Sua Majestade estar já de posse do dito Regno de Portugal, determinou entender nas ilhas, e mandar a elas uma pessoa que pusesse as cousas em termos que se tivessem os insulanos por ditosos terem tal Rei e Senhor. Foi escolhido Ambrósio de Aguiar Coutinho, de quem tinha larga satisfação sobre as pretensões dos Regnos, o qual Ambrósio de Aguiar Coutinho era filho morgado de Pedro Afonso de Aguiar, provedor dos almazens do Reino de Portugal, e primo com-irmão de Jorge de Melo, que foi casado com D. Joana da Silva, com que depois casou o dito Ambrósio de Aguiar. O qual foi por capitão-mor duma armada que el- Rei D. Sebastião mandou à Índia e, vindo de lá, o acompanhou na jornada de África, sendo um dos quatro coronéis, onde foi cativo. Tornando do cativeiro, o puseram os governadores por capitão na fortaleza de Setúvel. Daí lhe sucedeu mandá-lo prender D. António. E, depois da batalha de Alcântara, onde ficou solto e livre, o mandou el-Rei chamar, e foi à cidade de Elvas e ali o despachou e lhe deu a principal comenda de Beja, que lhe importava seiscentos mil réis cada ano, para ele e para seu filho, e fez outras mercês, enviando-o por governador a estas ilhas dos Açores. Quando estava no castelo de Setúvel por capitão, se embarcaram os Governadores fugindo para Castela, de que resultou ao dito Ambrósio de Aguiar estar já confessado para o degolarem. Com este concepto que dele tinha Sua Majestade, lhe deu o governo das ditas ilhas, com largos poderes e novas honras; deixando em seu alvidrio tudo, dizendo-lhe que confiava dele que em seu serviço o faria sempre melhor do que o ele encomendava. E em um capítulo de sua instrução dizia que, posto que nela dizia o que faria, que o não fizesse, parecendo-lhe outra cousa.
Partiu o dito governador a vinte de Abril de mil e quinhentos e oitenta e um anos, e veio com próspero tempo da barra de Lisboa no galeão S. Cristóvão, em que era capitão António Ribeiro, cavaleiro da ordem de Aviz, que foi tenente e guarda de el-Rei D. Sebastião, homem de muita honra e mansidão. Depois de saídos, veio por sua popa um barcote ingrês e chegado ao galeão, com a dissimulação que lhe convinha, o salvou. Visto pelo capitão do galeão, perguntou que navio era; respondeu ser ingrês, que ia carregado de sal, como ia, não fazendo caso dele como não havia para quê. E dentro nele se afirma ir D. António, que até então se não tinha ido para França que, quando foi o desbarate do Porto, tornou para Lisboa por terra. Fora sucesso próspero, para a muita honra de Sua Majestade fazia a quem o desse, e era ainda tempo de clemência e escusaram-se tantos trabalhos padecidos. Mas não havia de ser, que o demérito de nossos pecados o estorvou.
Chegou o dito Ambrósio de Aguiar, governador, a esta ilha, da banda do norte dela, a três de Maio da dita era. E vindo da banda dos Mosteiros deitou em terra a Tomé Roiz Tibao, seu veador, a dar a nova de sua vinda à cidade da Ponta Delgada, que foi alegre a alguns e a outros enfermos odiosa. E, pelo contraste do vento que naquela noite lhe deu, foram arribados à Terceira, e perto da baía mandou o dito governador recado de sua chegada da parte de Sua Majestade, cujo vassalo era, dizendo que àquela ilha vinha dedicado, por ser mais principal, como assim o mandava el-Rei, que nela residisse, e que vissem se lhe davam licença para lhe dar as cartas e desembarcar com elas. Foram chamados à Casa da Misericórdia, em dia de Corpus Christi do dito ano, Ciprião de Figueiredo de Vasconcelos, corregedor, com os vereadores; e juntos pôs a prática do que se oferecia, onde nos nobres houve diversos pareceres, uns que se recolhesse, outros que não; deste parecer que sim foi um João Dias do Carvalhal, que até então havia sido figadal inimigo do bando de Sua Majestade, e daí ficou suspeito, e foi causa de se ir a Inglaterra e remediar-se por aquela via e do embaixador D. Bernardino de Mendonça, e fazer-lhe Sua Majestade mercê. Como digo, acordaram não o recolher, porque o comum foi sempre do parecer antoniano, e resolutamente disseram aos que no barco estavam se fossem e dissessem ao dito governador se fosse embora e não fizesse nenhuma detença. Visto por ele seu danado intento, muito peor para eles, o fez assim. Donde veio a esta ilha de S. Miguel, onde desembarcou um domingo depois do jantar, vinte e oito dias de Maio da dita era de oitenta e um, desembarcando com ele o licenciado Diogo de Barros, que vinha por corregedor para estas ilhas, e o capitão Alexandre, natural desta ilha de S.
Miguel, que Sua Majestade mandava aposentar nela com duzentos mil réis de renda cada ano, pelo ter bem servido em muitas guerras, como adiante direi. Foi o dito governador nesta ilha recebido de alguns como seus corações pediam, que era serviço de Sua Majestade. O primeiro que o saiu a receber, o juiz da alfândega, Manuel Cordeiro de Sampaio, com os oficiais diante de si e foi pelo dito governador bem recebido. Houve acordo com os da Câmara a lhe dar degredo, por Lisboa estar ainda contagiosa de mal de peste; acordaram depois que não, por não causarem alguma alteração de suspeita. E assim foi recebido e agasalhado nas casas que foram de Barão Jácome Correia, por serem mais acomodadas para então.
Depois da estada do dito governador nesta ilha, começava entender nos negócios das cousas que havia, principalmente da quietação dos moradores parciais da parte antonina, e de segredo informado os mandou chamar, pondo-lhe diante as razões que tinham de servir a el- Rei Nosso Senhor, do que alguns deram muito boas mostras que assim o fariam. As quais pessoas eram de Vila Franca; mas muito ao contrário se viu depois sua inconstância.
E, porque o principal fundamento da vinda do governador foi por respeito da ilha Terceira e das circumvizinhas, porque tinha por nada o que aqui havia para fazer, de mais de na praça da cidade fazer apregoar bando do perdão geral pelo alevantamento de D. António , ordenou modo como mandasse à Terceira e que se não entendesse que ele era a causa disso.
Ofereceu-se a isso o arcediago, o licenciado Manuel Gonçalves, que com o bispo D. Pedro de Castilho estava nesta ilha de S. Miguel visitando; por ver claramente a pertinácia dos moradores de Angra e das mais ilhas de baixo, fora do parecer da obediência desta ilha de S.
Miguel e da de Santa Maria, temendo as grossas armadas que Sua Majestade determinava mandar sobre as revéis e contumazes das ditas ilhas, que estavam todos a risco de perderem as fazendas, honras e finalmente as vidas, tendo já feito muitos excessos em desordens e desacatos cometidos contra o Rei e contra os seus, não lhe recebendo suas cartas, promessas, clemência e mercê, e ainda contra os próprios naturais. Vendo sua destruição tanto à porta, como era natural e tão nobre, doendo-se de seus naturais, se embarcou em um barquinho de remos, com cartas para dar, assim ao corregedor que tinha já título de governador, como a outros beneméritos dela, oferecendo-se a todos perigos do mar e da terra, e pondo-se a perigo de perder a vida só para ver se podia livrar sua pátria e reduzi-la ao serviço de Sua Majestade; pois o poder, justiça e direito lhe não faltava para ser reconhecido por Rei, e tudo o mais parecia inconsideração, inadvertência e doidice confirmada, pois tarde ou cedo deviam por força ser reduzidos, ficando tão mascavados em suas honras, fazendas e vidas. Foi isto aos dois de Junho da dita era de oitenta e um. Chegando à Terceira e cidade de Angra, imaginando os dela o efeito para que ia o dito arcediago e o meio que levava para sua salvação, como seu desígnio era propósito de dano seu, o não quiseram recolher. E não somente o não admitiram, antes a troco desta boa obra o avexaram, tendo-o no batelinho em que ia à calma e chuva, com os que consigo levava, mortos à fome e sede, sem nenhum provimento das cousas necessárias. Nem lhe consentiram que falasse com seu pai que estava quase no artigo da morte, nem com irmão, parente ou pessoa alguma; e assim, posto debaixo do forte e artilharia, lhe não consentiram mudar-se para parte onde pudessem estar mais livres das impetuosas ondas do mar, antes nas mais perigosas partes o faziam estar por força, até que sem nenhuma piedade o fizeram tornar para esta ilha com vento contrairo e mar bravo. De tal maneira que por se não perder arribou à Vila da Praia da mesma ilha, onde também foi pelo mesmo modo avexado; nem o quiseram deixar sair em um penedo, para se aliviar dos tormentos e má vida passada; mas, tomados os remos e leme do batel o fizeram arredar fora da terra, para que não pudesse com pessoa alguma falar. E depois de ter gastado oito dias nestas perseguições, por muita misericórdia que pediu, lhe deram os remos e leme, com que se tornou para esta ilha de S. Miguel. Soube disto Sua Majestade e agradeceu-lho com muita honra por carta sua, e depois lhe fez no Regno mercê.
Vendo o dito governador que por esta via frutificava pouco este seu bom propósito em suas danadas tenções, ordenou outro meio mais aparelhado a sair melhor. E foi que um Pero Botelho tinha entrado nesta ilha de noite algumas vezes e dado cartas do corregedor da Terceira, em segredo; entre elas deu umas que um certo homem, temendo-se ser sentido, as foi dar ao governador Ambrósio de Aguiar, as quais vinham para um Fernão de Macedo; e, tanto que as teve na mão, lendo-as, uma dizia que tanto que aquela visse, com a mor brevidade que pudesse ser, ordenasse convocar seus parentes e matassem ao governador e ganhassem a fortaleza, nomeando o apelido de D. António, que por isso lhe faria muitas mercês e honras. E, não podendo assim ser efectuado o que dizia, se iria para eles, porque o estavam esperando. Fazia-os a eles encarregar isto a este homem, por respeito de ele ter deitado bando na cidade da Ponta Delgada pelo dito D. António, em corpo, com um montante nu nas mãos e com um sombreiro de casco na cabeça, acompanhado de muitos mininos pelas ruas e praças, dizendo a altas vozes: — Viva, viva el-Rei D. António, Rei de Portugal, e morram os tredores que deram e querem dar Portugal a castelhanos; e respondiam os mininos: — Viva, viva D. António, Rei de Portugal. O que fez muito alvoroço e confusão em todo o povo, uma segunda-feira às nove horas, doze dias do mês de Setembro da era de mil e quinhentos e oitenta anos. Porque ao domingo de antes, onze do dito mês e era, foram juntos na Câmara da dita cidade da Ponta Delgada juiz e vereadores com os nobres da governança, para tomarem assento e resolução de mandarem dois homens dos mais nobres da terra a visitar el-Rei Filipe e dar-lhe o parabém do Regno, e entregar-lhe a obediência e chaves desta ilha de S. Miguel. Porquanto aos nove dias do dito mês de Setembro da dita era de mil e quinhentos e oitenta, chegara do Regno ao porto da dita cidade da Ponta Delgada um Martim de Crasto, criado de Francisco do Rego de Sá, e dera nova que o Duque d’Alva tivera batalha com D. António na ponte de Alcântara, onde fora desbaratado, e se recolhera ferido no rosto, por treição dos seus portugueses que o feriram; e chegando às portas de Lisboa as achara sarradas, sem lhe quererem abrir, nem recolhê-lo, e que fora logo para a Ribeira e ao Corpo Santo tomar um bergantim em que se fora acolhendo até S. Bento e por não ser conhecido pelas galés que o seguiam, se lançara fora e fora por terra até Sacavém, onde achara todas as barcas e batéis alagados no rio, para se não poder valer deles. Na mesma segunda-feira, quando este homem deitou este bando na dita cidade da Ponta Delgada, amanheceram todos os presos, que estavam na cadeia, soltos, que eram muitos, sem ficar um só.
Como ia dizendo, sendo chamado o dito Fernão de Macedo pelo governador Ambrósio de Aguiar, lhe deu a carta aberta, e visto o que dizia nela, ficando algum pouco alertado e suspenso, o assegurou com palavras brandas, dizendo-lhe que aquela carta seria graça de Sua Majestade e lhe faria mercê se fizesse o que lhe dissesse, e era que na dita carta dizia o matasse, e não podendo ser se fosse para eles. E o que devia fazer era tomar um barco armado, a modo que ia fugido, e seu desígnio e intento seria este que, podendo matar ao corregedor na ilha Terceira, o fizesse em recompensação de seu desejo, convocando para isso alguns servidores de Sua Majestade dos muitos que havia, e não podendo ser, estaria na dita ilha, e, se o encarregassem de alguma fortaleza ou capitania, traria certo sinal para que, quando fosse a armada de Sua Majestade, pudessem entender os dele ser ele, com a qual os daria, mostrando-lhe o melhor lugar para a entrada. Celebrado isso com o dito Fernão de Macedo, buscou o barco e homens, e pela ordem dita se foi chegando ao outro dita à Terceira.
Os da vigia deram rebate que ia vela pequena de S. Miguel, dizendo uns: — vêm-se entregar, e outros: — vêm fugidos; de sorte que causou grande alvoroço. Chegado à baía e sabido ser Fernão de Macedo, não houve quem de sua ida no acidente não recebesse grande contentamento e festa, salvo um frade bernardo que era superintendente, que disse logo: — este vem fazer alguma treição. Veio o corregedor com muita gente e foi recebido dele com grande cortesia. E sarrados aquela noite, lhe perguntou se fizera alguma cousa do que lhe dissera em sua carta. O qual lhe respondeu que, querendo efectuar sua determinação, que era essa, fora sentido, e por esse respeito se tornara, e ia de novo aproveitar os serviços que tinha feitos a Sua Majestade el-Rei D. António. Mas ainda que com afervoradas razões dizia o dito Fernão de Macedo aquilo, logo ficou concebido comummente ser a sua ida contrária do que em princípio esperavam. Saindo-se o frade daquele ajuntamento, foi fazer grandes ameaços de tormentos aos homens do barco, por saber o modo por que ia o dito Fernão de Macedo.
Fizeram os homens como esforçados, não confessando cousa alguma. Tornando-se o frade muito suado, e sem empacho algum disse em público a diligência que fizera secreta.
Por aquela noite ficou suspensa a prática do mais que havia que tratar, e foi agasalhado Fernão de Macedo em casa de Bartolomeu Rolão, meirinho da correição; e ao outro dia seguinte o fizeram embarcar em uma nau francesa, de um capitão chamado Fuão Esterlim, dizendo-lhe o corregedor que a gente estava alvoroçada com sua vinda, pelo que era necessário embarcar-se com cartas para o Corvo, para as naus da Índia e capitães delas, dizendo-lhe viessem ancorar ao porto de Angra, e com isto o despediram. E embarcado se foi com o Esterlim, que lhe fez muita honra; onde andando por espaço de quinze dias, na cidade de Angra por meio daquele frade que queria dar os tormentos se negociou tanto que mandaram que o francês matasse a Fernão de Macedo, e dando as cartas ao dito francês, ainda que um pouco magoado, dilatou a execução para outro dia, no qual chegou um barco do Faial com cartas a saber se era feito aquele negócio. Esperava o Esterlim melhoramento, a que não tinham deferido, mas antes ad Ephesios lhe responderam; e por este respeito lhe respondeu que não queria fazer o que lhe diziam, e por esta maneira escapou. Trouxe Deus ao outro dia, no mês de Agosto do dito ano, as naus. Foi a elas o Esterlim, dando-lhe as cartas, dizendo-lhe que viessem ancorar, onde o dito Fernão de Macedo foi parte para elas não ancorarem. Indo ele depois ter a Angra com o dito francês, por ordem de seu irmão Pero Botelho, lhe foi dado o barco com os homens, em que uma noite fugiu e se veio sem seu desejo ser cumprido. E logo foi despachado para o Regno, levando cartas do governador Ambrósio de Aguiar para Sua Majestade, de quem foi recebido com muitas honras, dizendo ele seu delito primeiro todo, e depois os serviços, que eram nada em comparação da culpa. Mas, a benevolência de Sua Majestade supriu a tudo e lhe fez mercê, dizendo-lhe que bem havia feito tornar-se a seu serviço.