Depois de achada a ilha de São Miguel, tornando para o Regno seus descobridores, foram pelo mar, enquanto a não perdiam de vista, para trás atentando e notando sua figura, e viram que em cada ponta de sua compridão tinha um mui alto pico, que, assim como eram os dois extremos dela, assim eram também extremados na grandura, e em grande quantidade e altura sobrepujavam a todos os mais montes que pelo meio havia; e demarcando-a por eles o piloto, para depois a poder melhor reconhecer, sendo chegados a Sagres e havendo o infante feito mercê da capitania dela a Frei Gonçalo Velho, juntamente com a da ilha de Santa Maria, tornou logo a mandar, ou o mesmo Frei Gonçalo Velho e o piloto, ou o piloto só, sem ele, com outra companhia, a deitar gado e aves e outras coisas necessárias e provar a ventura de sua fertilidade também, com sementes de trigo e legumes, com que partiram de Sagres. E navegando com próspera viagem, vindo à vista da ilha, vendo-a o piloto, a desconheceu por lhe ver um só pico da parte do oriente e não ver o outro da banda do ponente, com que à ida a demarcara; porque neste meio tempo, enquanto eles foram ao Regno e tornaram, aconteceu que se alevantou o fogo, a primeira vez sabida nesta terra, e ardeu aquele alto pico para a banda do noroeste nesta ilha, junto da ponta dos Mosteiros; onde agora se chamam as Sete Cidades às cavidades dele, das quais depois particularmente contarei. E dizem que o mesmo piloto e os do navio viram no mar muita pedra pomes e troncos de árvores que dali saíram, sem entender a causa disso. Mas, ainda que então e depois foram achados os sinais e efeitos deste fogo, que fez arrebentar e abaixar aquele pico, não foi visto, por não ser povoada a ilha no tempo que ele arrebentou. Do qual dizia Pedro Gonçalves Delgado e Duarte Vaz, seu irmão, antigos e parentes dos primeiros habitadores, que eles tinham ouvido a seu pai que o piloto e os primeiros que vieram a povoar esta ilha desconheceram a terra, por não verem já o pico por onde a tinham demarcada, por causa do fogo que, sem eles o saberem, tinha dantes arrebentado, sumido e espalhado aquele grande pico. Contudo, saíram em terra na Povoação, em que a primeira vez haviam desembarcado, onde se certificaram ser aquela a mesma ilha que dantes tinham demarcada. E ali foi o primeiro assento, que nesta ilha se fez de povoação de gente, que desembarcou nela por dia da dedicação do arcanjo S. Miguel, a vinte nove de Setembro do mesmo ano. E povoando ali primeiro, e depois em outras partes, se chamou aquele lugar pelo tempo adiante, em respeito das outras povoações, a Povoação Velha. O que foi grande dom de Deus e especial mercê feita a esta ilha aparecer e achar-se no dia do aparecimento de S. Miguel e tornar-se a achar e povoar no dia de sua dedicação, por se dedicar toda a este Santo Arcanjo, Príncipe da Igreja, e tê-lo por seu Príncipe e Padroeiro, pois é sua, chamando-se, de seu nome, de S. Miguel; onde morando os descobridores em suas cafuas de palha e feno, ouviam quase por espaço de um ano tamanho arroído, bramidos e roncos, que a terra dava com grandes tremores, ainda procedido da subversão e fogo do pico que se sumira dantes, que estando todos pasmados e medrosos, sobstentando a vida com muito trabalho, assentaram de se tornar para o Regno, mas por falta de embarcação o não fizeram, por ser já tornado o navio em que haviam vindo. E porque neste princípio há vários pareceres e contam diversas coisas, di-los-ei aqui todos, para que cada um tome e escolha deles o que mais lhe quadrar e parecer mais verdadeiro.
Uns dizem que os primeiros habitadores que neste navio vieram e desembarcaram nesta ilha foram Jorge Velho e sua mulher Africãnes, Pero de Sam Miguel e sua mulher Aldonça Roiz, João de Rodes e João de Arraiolos, que outros dizem de Araújo, todos naturais de África, criados do infante D. Henrique, por quem ele mandava fazer experiências da terra, os quais se diz que foram os que fizeram primeiramente justiça na ilha, e enforcaram um homem na dita Povoação em uma árvore e, depois de morto, lhe tiraram a inquirição das culpas, como dizem que se faz às vezes em Castela, e, porque alegava defesa, responderam: — “julgar-te, enforcar-te e depois tirar-te inquiriçone”.
E de tal doctrina não podia deixar de ficar em bom foro a terra, porque, se a seguira, enforcando logo os malfeitores e ladrões que acham com o furto nas mãos, não andariam agora muitos nela a furtar-lhe o fato, sem haver um castigo. Parece que, como toda a coisa violenta não é perpétua, foi tão violenta neste princípio, nesta terra, a justiça, que não pôde nela durar muito. Outros contam que logo depois de achada esta ilha de S. Miguel e antes de ser habitada, sendo já povoada a ilha de Santa Maria havia alguns anos, se afeiçoou nela um homem com uma mulher casada e lhe matou o marido; pelo que se pôs a monte com a mulher e deu conta disso a um seu amigo, pedindo-lhe favor e ajuda para escapar das mãos da justiça e concedendo-lho o amigo, ordenou de tomar uma noite um barco, como tomou, em o qual embarcando ambos e a mulher com eles, e partindo para esta ilha de S. Miguel, que de lá viam, ou tinham ouvido que se via, tomaram a Povoação, que é o mais perto e direito caminho que tinham. Não se tardou muito tempo que o infante D. Henrique mandou gente para povoarem a ilha, a qual veio surgir no mesmo porto da Povoação, onde acharam rasto e sinal de gente na areia e na terra, de que se muito maravilharam; mas eles não apareciam senão a fazer-lhes alguns saltos no fato e mantimentos que tinham, não ousando aparecer pelo mal que era feito; porque dizem que este amigo deste homem, que trouxera a mulher, se namorou dela, e, sentido pelo outro, o matou, de maneira que por amor dela matou dois homens; e, pelas ofensas e saltos que ele fazia, lhe armaram laços e buscaram todos os meios que puderam inventar para o tomar, como tomaram. Outros dizem que a mulher, enfadada de andar com ele nestes trabalhos em terra erma, o deixou e se veio para a gente, ou que foram ambos tomados, sem se saber a certeza, mas dizem que ela descobriu todo o caso como passava, pelo que o enforcaram sem mais processo de justiça.
Outros dizem que dez ou doze homens casados vieram com suas mulheres e filhos e fizeram assento na Povoação Velha. E porque vinha em sua companhia um homem solteiro, que não queria ir trabalhar nem montear com eles, mas ficava sempre nas pousadas, que eram cabanas de palha, ou feno, ou rama, temendo-se dele por ficar só com suas mulheres, ordenaram entre todos buscar modo com que o punissem, para se verem livres do arreceio que dele tinham, e fizeram entre si juiz, escrivão e alcaide, e dizendo que ele lhe fazia adultério, foi sentenciado que o enforcassem, como logo foi enforcado em uma árvore, pelo que o infante D. Pedro, Regente então do Regno, os mandava ir emprazados para os castigar, se não foram os infantes, e principalmente o Infante D. Henrique, que, por povoar esta sua terra, falou ao Infante D. Pedro, seu irmão, que lhe perdoasse e alcançou dele perdão para eles.
Outros contam que, alguns anos depois da ilha de Santa Maria ser povoada, se namorou um mancebo de uma moça, filha de um homem principal da terra, e como ambos não pudessem gozar de seus amores, como desejavam, determinou o mancebo de a furtar e levá-la fora da ilha, para o que descobriu seu intento a um amigo seu, por cujo conselho tirou a moça de casa de seu pai e com ela se vieram em um pequeno barco a esta ilha, que então não era povoada, posto que havia dias que era descoberta, e se via muitas vezes da ilha de Santa Maria; pelo que parece que vieram estes namorados, enquanto o navio, que a descobriu, era tornado ao Reino, ou depois de ter já o infante mandado lançar muito gado nesta ilha, a cuja costa, chegado o mancebo com sua amiga em aquela pequena embarcação, foram desembarcar em um porto, que agora se chama a Povoação Velha e, metendo-se pela ilha dentro, fizeram antre o espesso arvoredo umas pequenas choupanas em que viviam.
Passados alguns meses, vieram o mancebo e o companheiro a pelejar sobre a moça, em tanto que um matou ao outro. E neste tempo chegou ao mesmo porto um navio do Regno, com gente que mandava o infante para povoar a ilha; os quais, vendo a planura da terra e uma grande e formosa ribeira, que neste porto entra no mar, fizeram ao longo dela casas cobertas de palha, que na primeira noite foram logo queimadas pelo homem que nela andava, por cuja causa e por outras suspeitas e receios que dele tinham os novos povoadores, o prenderam em um cepo que lhe armaram e o enforcaram em uma de muitas árvores que ali havia. E considerando depois que tinham nisso mal feito, assentaram de fazer dele autos e tirar devassa, em que todos testemunharam; e, depois de tirada, saíram com um despacho sem apelação, como dizem que fez João do Monte a Belchior Martins, na Alagoa.
Dizem que estes mesmos desta primeira povoação foram os primeiros que nesta ilha semearam trigo, e os campos em que foi semeado eram tão abundantes e fértiles, que o trigo não dava espiga, mas fazia uma cana grossa, coberta de grandes e largas folhas, como dizem acontecer no Brasil, o que vendo eles, escreveram ao infante que a terra não era para povoar, pois não dava trigo, e era muito estreita, com somente um lombo de serrania, e lhes desse licença para se irem, posto que dava em muita abundância muitos legumes, como chícharos, lentilhas, favas e ervilhas, e o gado multiplicava em grande maneira, porque, do pouco que Sua Alteza mandara lançar na ilha, estava quase toda povoada. Ao que respondeu o infante que abastava dar os legumes que diziam e multiplicar tanta cópia de gado, como afirmavam, para se povoar, quanto mais, se naquela parte não dava trigo pela fertilidade do lugar, que o daria em outra; a qual razão se mostrou dali a poucos anos ser verdadeira, porque, discorrendo estes novos povoadores pela costa desta mesma ilha em um batel, vieram ter a uma pequena praia que tinha ao mar um ilhéu defronte, não muito apartado dela, onde desembarcaram. E olhando bem a terra, em um largo e espaçoso campo que tem, determinaram de o cultivar, como cultivaram, semeando nele trigo que rendia tanto, que lhe pôs espanto. E a uma vila, que, primeiramente, depois se edificou neste mesmo campo, puseram nome Vila Franca do Campo, por ser nele edificada. De maneira que o homem que veio da ilha de Santa Maria foi o primeiro povoador desta ilha e o primeiro que edificou casa nela, e os que depois vieram foram os segundos povoadores, com os quais ficou a mulher, que veio furtada da ilha de Santa Maria, ou fosse solteira ou casada. E posto que a Povoação, que agora chamam Velha, não desse trigo naqueles primeiros anos que o semearam, depois o deu em grande abundância e o melhor da ilha, como são todas as coisas que a terra naquela parte dá e frutifica, mais avantajadas em bondade e melhores de toda ela.
Outros afirmam que depois de descoberta esta ilha de S. Miguel e deitado gado nela , veio um Gonçalo Vaz, o Grande, que depois foi ouvidor do Capitão, nesta ilha, a povoá-la por mandado do infante, de cuja casa era, e achou estes carneiros juntos, descobrindo a costa. E dizem que este Gonçalo Vaz foi o primeiro que fez a Povoação Velha; e vinham em sua companhia Afonso Anes do Penedo e Rodrigo Afonso, Afonso Anes o Colombreiro, Vasco Pereira, João Afonso d’Abelheira, Pedro Afonso, João Pires, Gonçalo de Teves, almoxarife, e Pero Cordeiro, seu irmão, escrivão do almoxarifado e tabelião público em todas estas ilhas dos Açores, achadas e por achar , e os naturais de África, que já disse, e outros a que não soube o nome, todos gente nobre da casa do infante D. Henrique. E desembarcando em terra, além da ribeira da Povoação, que vai da banda do oriente, junto donde agora está uma ermida de Santa Bárbara, e apartando-se as mulheres por antre o feno, que ali havia muito comprido, a mulher de Gonçalo Vaz, o Grande, com grande sobressalto e medo que houve, achou antre ele um homem morto, e gritando e chamando o marido e mais companhia, acudiram logo todos e pasmaram de ver homem morto em terra erma; e, postos em confusão, deitavam diversos juízos, cuidando e temendo que houvesse algum gentio nesta ilha, pela qual razão se vigiavam, até que veio o homem que o matou ter com eles e descobriu a verdade, e eles, havendo dó dele, o deixaram andar em sua companhia, sem lhe fazer algum mal; mas a mulher, sua amiga, não ousando aparecer de vergonhosa, se foi por um escalvado até uma ribeira da banda norte, onde depois a foram achar uns homens, que pelo mesmo caminho a buscaram, e achando-a muito disforme, negra e descorada, por lhe faltarem os mantimentos, e não comer senão alguma fruta da serra, que chamam romania, e por outro nome uvas de serra, de que em toda a parte desta ilha há muita quantidade, e lapas, junto do mar, ou algum outro marisco, à ribeira lhe puseram nome a ribeira da Mulher, como hoje em dia se chama. E o homem homicida, indo eles a montear dentro, pelo mato, roubava-lhes as cafuas de palha e feno, que tinham feitas, queimando-lhes algumas e furtando-lhes coisas de comer e algum fato, sem o poderem depois haver à mão, porque se escondia e embrenhava naquele espesso e alto mato, que toda a terra cobria; pelo que, usando de manha, se embarcaram em um batel e indo ao longo da costa, como que a iam descobrir, deixaram suas espias na terra, o que vendo o matador se foi às cafuas, onde o tomaram as espias, e, por não haver cadeia onde o ter preso, consultaram todos juntos antre si que pela inquietação que lhe dava e os furtos que fazia, e pela morte do homem que matara, o enforcassem e assim o fizeram, porque o enforcaram logo, sem mais forma nem figura de juízo, em um zimbro, que estava ali grande em uma quebrada de terra, como baixa rocha, junto de outra ribeira mais pequena, que está para o ocidente, antre a qual e outra grande está a Povoação Velha, ainda que alguns dizem que foi a forca uma faia. E os mouriscos de África, que o Infante de sua casa mandara em companhia de Gonçalo Vaz, o Grande, que também era de casa do Infante, e por seu mandado vieram povoar esta ilha, diziam naquele auto da justiça: — “forcarte, forcarte e depois tirarte inquiriçone”. E assim foi a obra, como eles, diziam, por palavra, que, depois de enforcado o paciente, fizeram autos de suas culpas e os mandaram ao Infante, que houve por bem feito e aprovou sua morte. E alguns querem dizer que estranhou o Regente este feito e os mandava ir presos, mas por rogos do Infante D. Henrique, seu irmão, lhe perdoou, por lhe dizer que tinha necessidade deles para povoarem a ilha, além de fazerem justiça no que fizeram, ainda que não guardaram a ordem que se nela devera ter. Outros contam isso por outro modo , dizendo que veio Gonçalo Vaz, o Grande, por mandado do infante povoar esta ilha de S. Miguel, e saindo alguns na Povoação em terra, com suas mulheres, acharam entre o feno um homem morto, e como o acharam, temeram e tornaram-se a recolher aos navios. Ao outro dia tornaram a desembarcar com suas armas, a descobrir a terra e saber se era povoada de gente, e de que gentio seria, com a qual determinação, correndo todas as veredas e lugares, por onde lhes parecia que se podia servir a gente, havendo-a na terra, não acharam mais que três rastos, dois grandes e um pequeno, que eram dos dois homens e da mulher; e assim estiveram três ou quatro dias suspensos, sem verem pessoa alguma, mas, contudo, se vigiavam sempre e dormiam nos navios; e a cabo de quatro dias lhe saiu a eles um homem, que, tomado e posto a tormento, confessou que aquele homem que ali estava morto, ele o matara por gozar de sua amiga, que o mesmo morto trouxera da ilha de Santa Maria, em cuja companhia ele viera; e acabando de fazer esta confissão, Gonçalo Vaz, o Grande, o mandou enforcar em uma árvore de ginja, que ali estava. E mandou depois vir o marido da mulher da ilha de Santa Maria, que está dezassete léguas desta de S. Miguel, de porto a porto, e lha entregou, reconciliando-a com ele e fazendo-os amigos.
Contam mais que semeara Gonçalo Vaz, o Grande, e os que com ele vieram o primeiro ano, trigo na Povoação Velha e deu-lhe bom trigo e muito; e semeando o segundo ano no mesmo lugar, por Nosso Senhor não ser servido de habitarem ali, lhe não deu senão joio e aveia. E daí, indo correndo a costa para o ponente, foram dar no ilhéu de Vila Franca, e, ali, defronte, saíram em terra e habitaram, a qual, semeando e cultivando, lhe respondeu com muitas e abundantes novidades. E de Vila Franca vinham correndo a costa em barcos, e saindo na Ponta Delgada, cinco léguas de Vila Franca, na ponta de Santa Clara, iam a montear, e, entrando pela terra dentro um tiro de besta, e tiro e meio, sem poder mais entrar nela, pelo mato ser muito maninho e espesso, estavam dois dias e três, em que carregavam de porcos monteses, com que se tornavam para suas casas bem providos.
Desta maneira contam diversos coisas diversas, mas os mais dizem que houve duas povoações, e na primeira vieram os naturais de África, já nomeados, logo quando o infante mandou deitar gado nesta ilha, não tanto para a povoar, como para experimentar a terra, como está dito; os quais dizem ser lá cavaleiros, que lá chamam fidalgos, que trouxera o infante D. Henrique de África, quando lá passara, e um deles, de que ele mais confiava, fez regente dos outros, dando-lhe poder que os governasse e estivessem todos à sua obediência. E achando-se este homem, atrás dito, de que se suspeitava mal, perguntou o regente mourisco aos outros que pena merecia quem fazia adultério. E disseram-lhe que El-Rei mandava dar morte de forca, o qual ele ouvindo, o mandou enforcar sem mais autos, nem inquirições, nem cerimónias. E na segunda povoação veio Gonçalo Vaz, o Grande, homem muito honrado e principal dos da casa do infante D. Henrique, e os mais, já ditos, em sua companhia, também homens principais e honrados, deles de casa do infante , e outros naturais do Algarve, que o dito infante mandaria para povoarem esta ilha. E deles e dos outros que primeiro vieram se começou a fazer a povoação dela, que depois se multiplicou e estendeu por ela com nobre geração, afora outros homens, também fidalgos e honrados, que, depois, de outras partes a ela vieram, uns solteiros e outros casados, com seus filhos e filhas, como adiante direi. E parece que este Gonçalo Vaz, o Grande, com seus companheiros já ditos, veio na era de mil e quatrocentos e quarenta e nove anos, pelo que, no capítulo primeiro do Livro Segundo da Primeira Década da sua “Ásia”, diz o docto , e curioso João de Barros que em algumas lembranças do Tombo e livros da Fazenda de el-Rei D. Afonso, o quinto do nome, somente achou que no ano de mil e quatrocentos e quarenta e nove deu el-Rei licença ao infante D. Henrique que pudesse mandar povoar as ilhas dos Açores, as quais já naquele tempo eram descobertas e nelas lançado algum gado, por mandado do mesmo infante, por um Gonçalo Velho, comendador de Almourol, junto da vila de Tancos; ou, se não veio Gonçalo Vaz neste ano, em que el-Rei D. Afonso deu esta licença, que foi o primeiro de seu reinado, sendo ele de dezassete anos, depois de sair da tutoria e tomar posse do governo dele, vieram logo no seguinte, ou não tardou muito, porque para isso se dava licença, para logo se pôr em efeito a povoação delas, de que o infante D. Henrique era muito curioso e cuidadoso, por gozar mais cedo do fruto dos trabalhos de seu descobrimento.

Querendo eu contar as coisas desta ilha de S. Miguel, em que vivo, disse à Fama: — Agora, Senhora, vos é necessário ter mais sofrimento em me ouvir do que até aqui tivestes, porque, falando desta ilha , hei-de dizer muitas miudezas que cansam e enfadam a quem as diz ou escreve, e muito mais a quem as ouve. Ao que ela me replicou: — Com esses enfadamentos, Senhora, me desenfado eu, e por isso os peço, quero e desejo, para ser aprazível a todos e desenfadar a uns, que hão-de louvar o bem dito e enfadar a outros, que se desenfadarão com terem que dizer e murmurar do mal feito, que é a mais doce fruta da terra. E assim cumprirei com a obrigação de meu nome, pois este é o meu natural e natureza. Vós, Senhora, segui a vossa, que é dizer verdades gerais e particulares de coisas grandes e pequenas, ainda que elas não sejam aprazíveis, quando tocam em culpas próprias e coisas secas e estériles. Mas, pois eu pretendo saber todas, contai-me vós as mais que puderdes e souberdes, que tudo, como até aqui, me será manjar aprazível e gostoso. Ao que eu respondi, dizendo: — Já que quereis, Senhora, enfadamentos, que somente pertencem aos naturais desta ilha, ouvi-os.

Pois não há aldeia no mundo de que os meus moradores não contem grandes fundamentos de sua primeira habitação, e alguns fingidos, quero, Senhora, contar desta ilha de S. Miguel os verdadeiros, pelo melhor modo que me foi possível saber, com muitas inquirições, perguntas e vigílias, sem ter aceitação de pessoa, para deixar de falar a verdade sabida. E se isto de mim não crerem os maldizentes e murmuradores, que nunca no mundo faltaram, nem faltarão até ao fim dele, eu fico comigo satisfeita, que diante de Deus não terei culpa, nesta parte, de afeição nem lisonjaria, de ódio nem vingança, de temor nem covardia, com que me pudera cegar, se algumas destas faltas tivera para me desviar da verdade das coisas que contei e contar quero.

Porque, posto que seja condição geral de todas as gentes, por darem antigos e ilustres princípios a sua linhagem, sempre fabularem coisas, a que a antiguidade, não testemunha... dá licença; assim como não deixei de contar a certeza do que soube dos ilustres capitães da ilha da Madeira e Santa Maria, e de seus moradores, assim também não deixarei de dizer o que ouvi afirmar por muito certo a alguns antigos, dignos de fé desta ilha de S. Miguel, do que sabiam da origem e feitos de seus ilustres capitães, que dos da ilha da Madeira por linha masculina descendem. E ainda que aqui nascera, sem suspeita de natural, com rosto descoberto, sem pejo, nem empacho, direi verdadeiramente tudo quanto disser dos naturais desta ilha, reprovando alguns fingimentos antigos e ditos fora de propósito e razão, que não levam caminho de verdade, e aprovando os mais razoáveis e verdadeiros.

Já tenho atrás contado algumas razões que deram motivo ao infante D. Henrique para mandar descobrir a ilha de Santa Maria, e as mesmas teve para se mover ao descobrimento desta de S. Miguel e das mais dos Açores; pelo que, depois de achada a ilha de Santa Maria, ordenou de mandar descobrir esta de S. Miguel, a qual empresa cometeu e encomendou a Frei Gonçalo Velho, capitão de Santa Maria, que, então, estava no Algarve. E preparadas todas as coisas necessárias para o novo descobrimento, partiu o dito Frei Gonçalo Velho, com o regimento que o infante para isso lhe deu. E no navio em que vinha de Sagres, navegaram até se pôrem quase na altura da ilha de Santa Maria, vendo por seus rumos e pontos, e depois com seus olhos, que lhe ficava ela da banda do sul; e andando neste meio mar, antre estas ilhas, às voltas, ora com um bordo para uma parte, ora para a outra, não podendo ver esta ilha de S. Miguel, nem achando terra alguma, se tornaram ao Regno .

E sendo perguntados Frei Gonçalo Velho e o piloto, por que banda tomaram a ilha de Santa Maria, disseram que pela parte do norte; ao que replicou o infante, dizendo: — passastes entre o ilhéu e a terra; porque chamava ilhéu à ilha de Santa Maria, por ser pequena e ter notícia disso, pela ver no mapa que tinha, ou pelas outras razões já ditas, e entendia por terra esta ilha de S. Miguel, por ser muito maior. Donde se muitos enganaram e enganam, cuidando que era o ilhéu de Vila Franca e afirmando que antre ele e a terra desta ilha de S. Miguel passou este navio, que veio a este descobrimento, não havendo ele passado senão por antre estas duas ilhas, como já tenho dito.

Alguns dizem que depois tornou o infante a mandar a Frei Gonçalo Velho, e que achou primeiro o ilhéu de Vila Franca, onde saiu sem ver a ilha; e fazendo nele dizer missa, sem consagrar nela, por lhe parecer que estava no mar, como em navio, porque era o ilhéu pequeno. Acabada a missa, começaram a ouvir uns gritos grandes, que eles entendiam ser de demónios, que gritavam e diziam: — nossa é esta ilha, nossa é! Mas, contudo, desembarcaram em terra e tomaram posse dela, desapossando os demónios. Como conta Plutarco outra história quase semelhante de gritos de demónios, que recita o magnífico cavaleiro Pero Mexia, em sua Silva, dizendo o mesmo Plutarco: — Lembra-me haver ouvido a Emiliano, orador, varão prudente e humilde, que vindo seu pai navegando por mar para Itália, passando uma noite muito junto a uma ilha chamada Paraxis, estando toda a gente da nau acordada, ouviram uma grande e temerosa voz, que soava da dita ilha despovoada, chamando pelo nome de Atamano, que assim se chamava o piloto da nau, que era natural do Egipto; e ainda que esta voz foi ouvida por Atamano, e por todos, uma e outra vez, nunca ousou responder, até que, já ouvindo-se chamar a terceira vez, respondeu, dizendo: — quem chama? que quereis? E então a voz soou muito mais alto e disse: — Atamano, o que te quero é que tenhas em todo caso cuidado, em chegando ao golfo chamado Alagoa, de fazer saber ali e dizer a brados que o grande demónio, o deus Pan, é morto. Ouvido isto, toda a gente da nau ficou muito espantada, e acordou-se antre eles que o mestre não curasse de dizer nada, se o tempo lhe servisse quando por ali passasse, senão seguir seu caminho. Mas aconteceu que chegados à Alagoa, que era o lugar assinalado, subitamente lhes acalmou o vento, que não puderam navegar, e, vendo-se assim em calma, determinaram de fazer saber a nova que lhes era encomendada; e pondo-se o piloto ao bordo da nau, alçou a voz quanto pôde e assim ao ar disse: — Faço-vos saber que o grande diabo Pan é morto! E logo em acabando ele de dizer isto, foi tão grande a multidão de vozes e gritos que ouviram, que atroou todo o mar, e durou aquele choro, que ouviram fazer, mui grande espaço. O qual eles ouvindo, com grandíssimo medo fizeram sua viagem o melhor que puderam. E chegados ao porto, e depois de vindos a Roma, se publicou nele e nela este caso por muito estranho. Eu, não somente este, mas também o outro de dizerem que dizendo missa seca no ilhéu de Vila Franca ouviram os gritos dos demónios, que bradavam, dizendo: — nossa é esta ilha! nossa é! ambos tenho por estranhos e mui alheios da verdade, ou, pelo menos, ainda que o da Alagoa acontecesse, permitindo Deus que os demónios fizessem aquelas querimónias do seu gran diabo ser morto de dor e pesar, no tempo da paixão do Salvador do mundo, que lhe desfazia seus enganos e tirou seu domínio e tirania, sem o tal diabo poder morrer, na realidade da verdade; este desta ilha nunca aconteceu, nem saiu no ilhéu de Vila Franca Frei Gonçalo Velho e os que com ele vinham a primeira vez que a acharam. Mas a verdade deste descobrimento passou desta maneira. Há se de notar que sendo a ilha de Santa Maria descoberta por mandado do dito infante D. Henrique, a proveu de gados para multiplicarem na terra; e mandou trazer cavalos e éguas e outras coisas necessárias, e sendo os navios que isso traziam junto dela, com os temporais que lhe deram, não podendo sofrer a tormenta, nem pairar, aos mares, tornaram a arribar; e alijando no meio da travessa, para salvarem suas vidas, botaram as éguas ao mar, donde lhe ficou o nome de val, ou vale, das Éguas, que aqueles primeiros descobridores lhe puseram.

Neste tempo, ou pouco mais além, aconteceu na ilha de Santa Maria, por algum delito ou falta que fez a seu senhor, fugir um escravo, homem preto da Guiné, dos moradores da ilha, e acolher-se à serra, da banda do norte, e por ser em tempo de verão, e o ar sem névoa, via o negro dela, algumas vezes, a ilha de S. Miguel, quando fazia o tempo claro. E depois de ser tornado, dizia que da serra, donde andara, vira uma terra grande para a banda do norte. E sendo disto certificado o infante D. Henrique, por esta notícia e razão que lhe acresceu às outras que ele entendia, posto que já tinha mandado descobrir esta de S. Miguel, sem os descobridores a poderem achar, tornou a mandar o mesmo Frei Gonçalo, por ser capitão da ilha de Santa Maria e já cursado nestas viagens, ao descobrimento destoutra, sua vizinha.

Deixando àparte o que tenho atrás dito dos cartaginenses, que conjecturei haverem sido primeiros e antigos descobridores de todas, ou das mais destas ilhas dos Açores, que me parece ter sombra de verdade pelas razões já ditas, e não falando no que outros dizem, que foi esta ilha de S. Miguel, antes de ser achada pelos portugueses, setenta anos atrás descoberta por um grego, que com tormenta desgarrou de Cález, e vindo a dar nela, a foi pedir a El-Rei, que lha deu, e trazendo gado que nela lançou, logo faleceu, com que ficou a ilha erma até o tempo que os portugueses a descobriram, em que acharam ossada de gados, e que na baía da Lagoa se achou de carneiros, pelo que lhe puseram nome Porto dos Carneiros, o que eu tenho por coisa fabulosa e longe da verdade, direi o que sei do descobrimento dela, certo por memórias e escritos dos antigos e por tradição deles, que de mão em mão, ou de memória em memória, veio ter às mãos e lembrança dos moradores presentes que nela agora vivem, que é o que se segue.

Depois de tornado Frei Gonçalo Velho, capitão da ilha de Santa Maria, da primeira viagem que fez por mandado do infante ao descobrimento desta ilha de S. Miguel, sem a poder achar nem ver, andando perto dela, lavrando com muitos bordos o mar de antre ambas, pelo que o infante sabia, lhe respondeu que andara antre o ilhéu, que é a ilha de Santa Maria, e a terra, que é esta de S. Miguel; e pelo que lhe disseram, que a vira o negro fugido, tornou a mandar o mesmo Frei Gonçalo Velho a buscá-la, dando-lhe por regimento que pusesse a popa no ilhéu, que era a ilha de Santa Maria, e ao norte navegasse, e dariam na ilha que ele mandava buscar. O que cumprindo o dito Frei Gonçalo Velho e o piloto que trazia consigo, que se chamava Foam Vicente, natural do Algarve, cujo nome não soube, quase doze anos inteiros depois de ser descoberta a ilha de Santa Maria, aos oito dias do mês de Maio da era de mil e quatrocentos e quarenta e quatro anos, por dia do aparecimento do arcanjo S. Miguel, príncipe da igreja, foi vista e descoberta por eles esta ilha; que, por ser achada e aparecer em tal dia e festa do aparecimento do arcanjo, lhe foi posto este nome à ilha de S. Miguel, de felicíssima sorte, governando o Reino o infante D. Pedro, filho de el-Rei D. João, de Boa Memória, o primeiro do nome e décimo Rei de Portugal; o qual se prova, pois, por morte deste Rei D. João, de Boa Memória, reinou seu filho D. Duarte, que nasceu na cidade de Viseu no ano de mil e trezentos e noventa e um, e viveu quarenta e dois anos, dos quais reinou cinco, e faleceu na era de mil e quatrocentos e trinta e oito anos; e por sua morte houvera de reinar seu filho D. Afonso, o qual nasceu na era de mil e quatrocentos e trinta e dois anos, e por não ser mais que de seis anos, não foi entregue do Regno, senão seu tio o infante D. Pedro, que governou por seu sobrinho, D. Afonso, até a era de mil e quatrocentos e quarenta e oito anos, em que foi entregue ao dito Rei D. Afonso. Antre os quais anos mil e quatrocentos e trinta e dois, em que nasceu el-Rei D. Afonso e começou a governar o Regno por ele o infante D. Pedro, e o ano de mil e quatrocentos e quarenta e oito, em que acabou de governar, por entregar o governo a el-Rei D. Afonso, se inclui e contém o ano de mil e quatrocentos e quarenta e quatro, quando esta ilha de S. Miguel foi achada, em o qual o infante D. Pedro governava o Reino.

E logo no ano de mil e quatrocentos e quarenta e nove el-Rei D. Afonso, sendo ainda no primeiro ano de seu reinado, deu licença ao infante D. Henrique, seu tio, para mandar povoar estas ilhas dos Açores, que havia dias que eram descobertas.

No ano de mil e quatrocentos e oitenta, outros dizem, de oitenta e um, faleceu este Rei D. Afonso, e no mesmo ano, antes de seu falecimento, fez as pazes com Castela. Chegando aqui às ilhas os novos descobridores, tomaram terra no lugar, onde agora se chama a Povoação Velha, pela que ali fizeram depois, como adiante contarei, e, desembarcando antre duas frescas ribeiras de claras, doces e frias águas, antre rochas e terras altas, todas cobertas de alto e espesso arvoredo de cedros, louros, ginjas e faias, e outras diversas árvores, deram todos, com muito contentamento e festa, graças a Deus, não as que por tão alta mercê se lhe deviam, senão as que podem dar uns corações contentes com o bem tão grande que tinham presente, desejado por muitos dias e com tanto trabalho e enfadamento de importunas viagens por tantas vezes buscado. De crer é que trariam sacerdote consigo, que dissesse ali missa onde no lugar agora está uma ermida de Santa Bárbara, e aquela foi a primeira que nesta ilha se disse; mas que missa fosse ou quem a dissesse, não se sabem as particularidades disso, nem de outras que ali passariam . Andavam os novos então, e agora antigos descobridores, ora pouco pela terra, porque muito não podiam, por lho impedir o espesso mato, ora muito mais pelo mar, no barco de seu navio, correndo parte da costa, vendo das águas salgadas as doces ribeiras, que, por antre o arvoredo, pelas rochas caíam, examinando e atentando todas as particularidades que podiam e os lugares sós e saudosos da erma e solitária ilha, acompanhados de uns altos montes e baixos vales, povoados de arvoredo, com cuja verdura vestida estava toda a terra, dando grandes esperanças de ser mui fértil e proveitosa a seus moradores, que nela viessem a fazer suas colónias. E dizem comummente os antigos que, vendo muitos açores e bons, dos quais levavam daqui para o Reino alguns no princípio, como tinham visto na ilha de Santa Maria, lhe puseram nome ilhas dos Açores, o que bem podia ser; mas o que outros têm por mais verdade é que, por aqui não haver senão poucos e como adventícios, vinham a esta ilha doutras terras não sabidas, vendo no ar muitos milhafres que havia, que com eles se pareciam e por tais os julgavam, como agora há, e assim parecerem, lhe puseram este nome de ilhas dos Açores, o qual também se apegou às outras ilhas de baixo, que depois se descobriram, onde não faltam estas aves de rapina; ou também por então nelas se acharem açores, ainda que depois e agora os não houve, nem há em nenhuma delas, senão alguns que com temporais e tormentas acertam de vir desgarrados de outras partes. E não fazendo os novos descobridores detença muitos dias nos que ali estiveram, tomando águas, ramos de árvores e algum caixão de terra, e pombos que, sem trabalho e sem laços, às mãos tomavam, e outras coisas que aí acharam, para levar por mostra ao infante, se partiram para ele, que, contente com tal nova, os recebeu, contentes por lha levarem, e lhes fez mercês a todos com a benignidade que se devia a tão bons servidores e tais serviços mereciam, fazendo particular mercê a Frei Gonçalo Velho da capitania da ilha que novamente achara, com a outra capitania que lhe tinha dado da ilha de Santa Maria, com que ficou capitão de ambas, porque os multiplicados e continuados serviços não se pagam com singelos prémios, senão com mercês dobradas .

COMO FOI ACHADA A ILHA DE SÃO MIGUEL POR FREI GONÇALO VELHO, COMENDADOR DE ALMOUROL, DA QUAL TAMBÉM FOI FEITO CAPITÃO, SENDO-O JÁ DA ILHA DE SANTA MARIA, ENVIADO PELO INFANTE DOM HENRIQUE A ESTE DESCOBRIMENTO

Querendo eu contar as coisas desta ilha de S. Miguel, em que vivo, disse à Fama: — Agora, Senhora, vos é necessário ter mais sofrimento em me ouvir do que até aqui tivestes, porque, falando desta ilha , hei-de dizer muitas miudezas que cansam e enfadam a quem as diz ou escreve, e muito mais a quem as ouve. Ao que ela me replicou: — Com esses enfadamentos, Senhora, me desenfado eu, e por isso os peço, quero e desejo, para ser aprazível a todos e desenfadar a uns, que hão-de louvar o bem dito e enfadar a outros, que se desenfadarão com terem que dizer e murmurar do mal feito, que é a mais doce fruta da terra. E assim cumprirei com a obrigação de meu nome, pois este é o meu natural e natureza. Vós, Senhora, segui a vossa, que é dizer verdades gerais e particulares de coisas grandes e pequenas, ainda que elas não sejam aprazíveis, quando tocam em culpas próprias e coisas secas e estériles. Mas, pois eu pretendo saber todas, contai-me vós as mais que puderdes e souberdes, que tudo, como até aqui, me será manjar aprazível e gostoso. Ao que eu respondi, dizendo: — Já que quereis, Senhora, enfadamentos, que somente pertencem aos naturais desta ilha, ouvi-os.

Pois não há aldeia no mundo de que os meus moradores não contem grandes fundamentos de sua primeira habitação, e alguns fingidos, quero, Senhora, contar desta ilha de S. Miguel os verdadeiros, pelo melhor modo que me foi possível saber, com muitas inquirições, perguntas e vigílias, sem ter aceitação de pessoa, para deixar de falar a verdade sabida. E se isto de mim não crerem os maldizentes e murmuradores, que nunca no mundo faltaram, nem faltarão até ao fim dele, eu fico comigo satisfeita, que diante de Deus não terei culpa, nesta parte, de afeição nem lisonjaria, de ódio nem vingança, de temor nem covardia, com que me pudera cegar, se algumas destas faltas tivera para me desviar da verdade das coisas que contei e contar quero.

Porque, posto que seja condição geral de todas as gentes, por darem antigos e ilustres princípios a sua linhagem, sempre fabularem coisas, a que a antiguidade, não testemunha... dá licença; assim como não deixei de contar a certeza do que soube dos ilustres capitães da ilha da Madeira e Santa Maria, e de seus moradores, assim também não deixarei de dizer o que ouvi afirmar por muito certo a alguns antigos, dignos de fé desta ilha de S. Miguel, do que sabiam da origem e feitos de seus ilustres capitães, que dos da ilha da Madeira por linha masculina descendem. E ainda que aqui nascera, sem suspeita de natural, com rosto descoberto, sem pejo, nem empacho, direi verdadeiramente tudo quanto disser dos naturais desta ilha, reprovando alguns fingimentos antigos e ditos fora de propósito e razão, que não levam caminho de verdade, e aprovando os mais razoáveis e verdadeiros.

Já tenho atrás contado algumas razões que deram motivo ao infante D. Henrique para mandar descobrir a ilha de Santa Maria, e as mesmas teve para se mover ao descobrimento desta de S. Miguel e das mais dos Açores; pelo que, depois de achada a ilha de Santa Maria, ordenou de mandar descobrir esta de S. Miguel, a qual empresa cometeu e encomendou a Frei Gonçalo Velho, capitão de Santa Maria, que, então, estava no Algarve. E preparadas todas as coisas necessárias para o novo descobrimento, partiu o dito Frei Gonçalo Velho, com o regimento que o infante para isso lhe deu. E no navio em que vinha de Sagres, navegaram até se pôrem quase na altura da ilha de Santa Maria, vendo por seus rumos e pontos, e depois com seus olhos, que lhe ficava ela da banda do sul; e andando neste meio mar, antre estas ilhas, às voltas, ora com um bordo para uma parte, ora para a outra, não podendo ver esta ilha de S. Miguel, nem achando terra alguma, se tornaram ao Regno .

E sendo perguntados Frei Gonçalo Velho e o piloto, por que banda tomaram a ilha de Santa Maria, disseram que pela parte do norte; ao que replicou o infante, dizendo: — passastes entre o ilhéu e a terra; porque chamava ilhéu à ilha de Santa Maria, por ser pequena e ter notícia disso, pela ver no mapa que tinha, ou pelas outras razões já ditas, e entendia por terra esta ilha de S. Miguel, por ser muito maior. Donde se muitos enganaram e enganam, cuidando que era o ilhéu de Vila Franca e afirmando que antre ele e a terra desta ilha de S. Miguel passou este navio, que veio a este descobrimento, não havendo ele passado senão por antre estas duas ilhas, como já tenho dito.

Alguns dizem que depois tornou o infante a mandar a Frei Gonçalo Velho, e que achou primeiro o ilhéu de Vila Franca, onde saiu sem ver a ilha; e fazendo nele dizer missa, sem consagrar nela, por lhe parecer que estava no mar, como em navio, porque era o ilhéu pequeno. Acabada a missa, começaram a ouvir uns gritos grandes, que eles entendiam ser de demónios, que gritavam e diziam: — nossa é esta ilha, nossa é! Mas, contudo, desembarcaram em terra e tomaram posse dela, desapossando os demónios. Como conta Plutarco outra história quase semelhante de gritos de demónios, que recita o magnífico cavaleiro Pero Mexia, em sua Silva, dizendo o mesmo Plutarco: — Lembra-me haver ouvido a Emiliano, orador, varão prudente e humilde, que vindo seu pai navegando por mar para Itália, passando uma noite muito junto a uma ilha chamada Paraxis, estando toda a gente da nau acordada, ouviram uma grande e temerosa voz, que soava da dita ilha despovoada, chamando pelo nome de Atamano, que assim se chamava o piloto da nau, que era natural do Egipto; e ainda que esta voz foi ouvida por Atamano, e por todos, uma e outra vez, nunca ousou responder, até que, já ouvindo-se chamar a terceira vez, respondeu, dizendo: — quem chama? que quereis? E então a voz soou muito mais alto e disse: — Atamano, o que te quero é que tenhas em todo caso cuidado, em chegando ao golfo chamado Alagoa, de fazer saber ali e dizer a brados que o grande demónio, o deus Pan, é morto. Ouvido isto, toda a gente da nau ficou muito espantada, e acordou-se antre eles que o mestre não curasse de dizer nada, se o tempo lhe servisse quando por ali passasse, senão seguir seu caminho. Mas aconteceu que chegados à Alagoa, que era o lugar assinalado, subitamente lhes acalmou o vento, que não puderam navegar, e, vendo-se assim em calma, determinaram de fazer saber a nova que lhes era encomendada; e pondo-se o piloto ao bordo da nau, alçou a voz quanto pôde e assim ao ar disse: — Faço-vos saber que o grande diabo Pan é morto! E logo em acabando ele de dizer isto, foi tão grande a multidão de vozes e gritos que ouviram, que atroou todo o mar, e durou aquele choro, que ouviram fazer, mui grande espaço. O qual eles ouvindo, com grandíssimo medo fizeram sua viagem o melhor que puderam. E chegados ao porto, e depois de vindos a Roma, se publicou nele e nela este caso por muito estranho. Eu, não somente este, mas também o outro de dizerem que dizendo missa seca no ilhéu de Vila Franca ouviram os gritos dos demónios, que bradavam, dizendo: — nossa é esta ilha! nossa é! ambos tenho por estranhos e mui alheios da verdade, ou, pelo menos, ainda que o da Alagoa acontecesse, permitindo Deus que os demónios fizessem aquelas querimónias do seu gran diabo ser morto de dor e pesar, no tempo da paixão do Salvador do mundo, que lhe desfazia seus enganos e tirou seu domínio e tirania, sem o tal diabo poder morrer, na realidade da verdade; este desta ilha nunca aconteceu, nem saiu no ilhéu de Vila Franca Frei Gonçalo Velho e os que com ele vinham a primeira vez que a acharam. Mas a verdade deste descobrimento passou desta maneira. Há se de notar que sendo a ilha de Santa Maria descoberta por mandado do dito infante D. Henrique, a proveu de gados para multiplicarem na terra; e mandou trazer cavalos e éguas e outras coisas necessárias, e sendo os navios que isso traziam junto dela, com os temporais que lhe deram, não podendo sofrer a tormenta, nem pairar, aos mares, tornaram a arribar; e alijando no meio da travessa, para salvarem suas vidas, botaram as éguas ao mar, donde lhe ficou o nome de val, ou vale, das Éguas, que aqueles primeiros descobridores lhe puseram.

Neste tempo, ou pouco mais além, aconteceu na ilha de Santa Maria, por algum delito ou falta que fez a seu senhor, fugir um escravo, homem preto da Guiné, dos moradores da ilha, e acolher-se à serra, da banda do norte, e por ser em tempo de verão, e o ar sem névoa, via o negro dela, algumas vezes, a ilha de S. Miguel, quando fazia o tempo claro. E depois de ser tornado, dizia que da serra, donde andara, vira uma terra grande para a banda do norte. E sendo disto certificado o infante D. Henrique, por esta notícia e razão que lhe acresceu às outras que ele entendia, posto que já tinha mandado descobrir esta de S. Miguel, sem os descobridores a poderem achar, tornou a mandar o mesmo Frei Gonçalo, por ser capitão da ilha de Santa Maria e já cursado nestas viagens, ao descobrimento destoutra, sua vizinha.

Deixando àparte o que tenho atrás dito dos cartaginenses, que conjecturei haverem sido primeiros e antigos descobridores de todas, ou das mais destas ilhas dos Açores, que me parece ter sombra de verdade pelas razões já ditas, e não falando no que outros dizem, que foi esta ilha de S. Miguel, antes de ser achada pelos portugueses, setenta anos atrás descoberta por um grego, que com tormenta desgarrou de Cález, e vindo a dar nela, a foi pedir a El-Rei, que lha deu, e trazendo gado que nela lançou, logo faleceu, com que ficou a ilha erma até o tempo que os portugueses a descobriram, em que acharam ossada de gados, e que na baía da Lagoa se achou de carneiros, pelo que lhe puseram nome Porto dos Carneiros, o que eu tenho por coisa fabulosa e longe da verdade, direi o que sei do descobrimento dela, certo por memórias e escritos dos antigos e por tradição deles, que de mão em mão, ou de memória em memória, veio ter às mãos e lembrança dos moradores presentes que nela agora vivem, que é o que se segue.

Depois de tornado Frei Gonçalo Velho, capitão da ilha de Santa Maria, da primeira viagem que fez por mandado do infante ao descobrimento desta ilha de S. Miguel, sem a poder achar nem ver, andando perto dela, lavrando com muitos bordos o mar de antre ambas, pelo que o infante sabia, lhe respondeu que andara antre o ilhéu, que é a ilha de Santa Maria, e a terra, que é esta de S. Miguel; e pelo que lhe disseram, que a vira o negro fugido, tornou a mandar o mesmo Frei Gonçalo Velho a buscá-la, dando-lhe por regimento que pusesse a popa no ilhéu, que era a ilha de Santa Maria, e ao norte navegasse, e dariam na ilha que ele mandava buscar. O que cumprindo o dito Frei Gonçalo Velho e o piloto que trazia consigo, que se chamava Foam Vicente, natural do Algarve, cujo nome não soube, quase doze anos inteiros depois de ser descoberta a ilha de Santa Maria, aos oito dias do mês de Maio da era de mil e quatrocentos e quarenta e quatro anos, por dia do aparecimento do arcanjo S. Miguel, príncipe da igreja, foi vista e descoberta por eles esta ilha; que, por ser achada e aparecer em tal dia e festa do aparecimento do arcanjo, lhe foi posto este nome à ilha de S. Miguel, de felicíssima sorte, governando o Reino o infante D. Pedro, filho de el-Rei D. João, de Boa Memória, o primeiro do nome e décimo Rei de Portugal; o qual se prova, pois, por morte deste Rei D. João, de Boa Memória, reinou seu filho D. Duarte, que nasceu na cidade de Viseu no ano de mil e trezentos e noventa e um, e viveu quarenta e dois anos, dos quais reinou cinco, e faleceu na era de mil e quatrocentos e trinta e oito anos; e por sua morte houvera de reinar seu filho D. Afonso, o qual nasceu na era de mil e quatrocentos e trinta e dois anos, e por não ser mais que de seis anos, não foi entregue do Regno, senão seu tio o infante D. Pedro, que governou por seu sobrinho, D. Afonso, até a era de mil e quatrocentos e quarenta e oito anos, em que foi entregue ao dito Rei D. Afonso. Antre os quais anos mil e quatrocentos e trinta e dois, em que nasceu el-Rei D. Afonso e começou a governar o Regno por ele o infante D. Pedro, e o ano de mil e quatrocentos e quarenta e oito, em que acabou de governar, por entregar o governo a el-Rei D. Afonso, se inclui e contém o ano de mil e quatrocentos e quarenta e quatro, quando esta ilha de S. Miguel foi achada, em o qual o infante D. Pedro governava o Reino.

E logo no ano de mil e quatrocentos e quarenta e nove el-Rei D. Afonso, sendo ainda no primeiro ano de seu reinado, deu licença ao infante D. Henrique, seu tio, para mandar povoar estas ilhas dos Açores, que havia dias que eram descobertas.

No ano de mil e quatrocentos e oitenta, outros dizem, de oitenta e um, faleceu este Rei D. Afonso, e no mesmo ano, antes de seu falecimento, fez as pazes com Castela. Chegando aqui às ilhas os novos descobridores, tomaram terra no lugar, onde agora se chama a Povoação Velha, pela que ali fizeram depois, como adiante contarei, e, desembarcando antre duas frescas ribeiras de claras, doces e frias águas, antre rochas e terras altas, todas cobertas de alto e espesso arvoredo de cedros, louros, ginjas e faias, e outras diversas árvores, deram todos, com muito contentamento e festa, graças a Deus, não as que por tão alta mercê se lhe deviam, senão as que podem dar uns corações contentes com o bem tão grande que tinham presente, desejado por muitos dias e com tanto trabalho e enfadamento de importunas viagens por tantas vezes buscado. De crer é que trariam sacerdote consigo, que dissesse ali missa onde no lugar agora está uma ermida de Santa Bárbara, e aquela foi a primeira que nesta ilha se disse; mas que missa fosse ou quem a dissesse, não se sabem as particularidades disso, nem de outras que ali passariam . Andavam os novos então, e agora antigos descobridores, ora pouco pela terra, porque muito não podiam, por lho impedir o espesso mato, ora muito mais pelo mar, no barco de seu navio, correndo parte da costa, vendo das águas salgadas as doces ribeiras, que, por antre o arvoredo, pelas rochas caíam, examinando e atentando todas as particularidades que podiam e os lugares sós e saudosos da erma e solitária ilha, acompanhados de uns altos montes e baixos vales, povoados de arvoredo, com cuja verdura vestida estava toda a terra, dando grandes esperanças de ser mui fértil e proveitosa a seus moradores, que nela viessem a fazer suas colónias. E dizem comummente os antigos que, vendo muitos açores e bons, dos quais levavam daqui para o Reino alguns no princípio, como tinham visto na ilha de Santa Maria, lhe puseram nome ilhas dos Açores, o que bem podia ser; mas o que outros têm por mais verdade é que, por aqui não haver senão poucos e como adventícios, vinham a esta ilha doutras terras não sabidas, vendo no ar muitos milhafres que havia, que com eles se pareciam e por tais os julgavam, como agora há, e assim parecerem, lhe puseram este nome de ilhas dos Açores, o qual também se apegou às outras ilhas de baixo, que depois se descobriram, onde não faltam estas aves de rapina; ou também por então nelas se acharem açores, ainda que depois e agora os não houve, nem há em nenhuma delas, senão alguns que com temporais e tormentas acertam de vir desgarrados de outras partes. E não fazendo os novos descobridores detença muitos dias nos que ali estiveram, tomando águas, ramos de árvores e algum caixão de terra, e pombos que, sem trabalho e sem laços, às mãos tomavam, e outras coisas que aí acharam, para levar por mostra ao infante, se partiram para ele, que, contente com tal nova, os recebeu, contentes por lha levarem, e lhes fez mercês a todos com a benignidade que se devia a tão bons servidores e tais serviços mereciam, fazendo particular mercê a Frei Gonçalo Velho da capitania da ilha que novamente achara, com a outra capitania que lhe tinha dado da ilha de Santa Maria, com que ficou capitão de ambas, porque os multiplicados e continuados serviços não se pagam com singelos prémios, senão com mercês dobradas .

Sendo D. Luís Coutinho, filho mais velho de D. Francisco Coutinho, de idade de vinte e cinco anos, pouco mais ou menos, sucedeu na comenda que vagou por morte de seu pai, por el-Rei lhe ter feito mercê dela, como atrás fica dito e adiante direi. E foi segundo do nome e o terceiro comendador da ilha de Santa Maria, de que vou tratando: grande de corpo e bem feito, gentil-homem, de rosto sôbelo (sic) moreno e corado, grave, de seu natural, e de poucas falas e certas, discreto, amigo de honra, muito pontual, em tanto que o que ele dizia se podia bem ter por escritura pública. Foi homem de branda condição, opiniático e bom latino; em vida do pai, e depois da morte, sempre teve mestres que lhe lessem.
Vivendo ainda seu pai, foi ao cerco de Mazagão; depois esteve em Tânger dezassete meses com cinco cavalos e seis homens à sua custa, em tempo que Lourenço Pires de Távora era capitão. Foi na tomada do Pinhão. Depois do pai (sic), sucedeu saquear-se a cidade do Funchal da ilha da Madeira, e ele foi ao socorro, dos primeiros, em companhia dos filhos do Capitão da dita ilha. Todo o mais tempo gastou na Corte, fazendo el-Rei muita conta dele, metendo-o sempre em todos os folgares em que ele entrava, de torneios e jogos de canas, e outros semelhantes. E seria ao presente, pouco mais ou menos, homem de idade de trinta e oito anos, ainda solteiro, não por faltarem casamentos e de bons dotes, mas parece que não eram de seu gosto.
Da (sic) renda da erva que se chama urzela, que se apanha pelas rochas, de que se faz a tinta roxa e anil, tão fina como de pastel, que pertencia a ele por ser tinta, a qual ainda agora nada rende, mas já rendeu em outro tempo, e veio-se a perder o trato dela não sei por que razão. Mas em tempo deste comendador D. Luís Coutinho rendeu esta erva, três ou quatro anos, vinte mil réis cada um ano; depois tornou a acalmar, nem houve quem mais a arrendasse; dizem que, por amor das guerras de Frandes, não tem saída, porque lá se vai apurar para se fazer a tinta dela.
Acrescentou-lhe mais as pensões dos três tabaliães que há na ilha, como tudo tinha e havia seu pai, D. Francisco Coutinho, por carta de el-Rei D. João, terceiro do nome, e o dízimo da terra e do pescado, que se antigamente arrendava pelos oficiais dos Reis passados para sua Fazenda. E, assim, a vintena do pastel da ilha e dos dois ilhéus, que estão junto dela, ao mar, um que se chama de São Lourenço, que está detrás da ilha, e outro que está defronte da ilha, perto da Vila, dos quais o comendador se pode aproveitar, sem deles pagar direitos alguns, e a dízima do pastel que sair da dita ilha para fora do Regno. De maneira que tudo isto fica e se tem em comenda, que rende o que atrás fica dito. Mas a primeira dada foi em cento e vinte mil réis, e assim o diz a carta da mercê, que ao primeiro comendador foi feita.
Foi este terceiro comendador D. Luís Coutinho com el-Rei à guerra de África, porque sempre foi homem que folgou de se achar nas empresas com os Reis, a quem servia com muita diligência e lealdade, mas não há novas dele, e, por tardarem tanto, se tem por morto no serviço de seu Rei, em que nunca faltou e sempre foi dos primeiros e dianteiros; e, como muito valente e esforçado cavaleiro, que era, veio alcançar que África fosse sua gloriosa e saudosa sepultura.
D. Pedro Coutinho, irmão segundo deste comendador, depois da morte do pai, foi-se para a Índia, sendo de idade de vinte e dois anos, pouco mais ou menos, e mancebo também grande de corpo, alvo e louro; onde andou oito anos, nos quais serviu a el-Rei de capitão no mar e na terra, em que lhe sucederam coisas boas, com que era já homem de muito nome. E no cabo dos oito anos, vindo em uma galé, em companhia de outros fidalgos, para se embarcar para o Regno, a requerer o despacho de seus serviços, encontraram no mar uns navios de imigos, a que chamam sanganes, que dizem ser gente de baixa sorte, e, por assim serem, fizeram pouco caso deles e não se quiseram armar, dizendo que os teriam em pouco, se tomassem armas para gente tão vil; os imigos, como eram muitos, cercaram a galé e renderam-na com matarem e ferirem toda a gente, onde acabou este fidalgo, sendo de idade de trinta anos, pouco mais ou menos. E a galé foi tomada aos imigos, da armada dos portugueses, que atrás vinha.
D. Gonçalo Coutinho, seu irmão terceiro, foi também para a Índia, sendo como de idade de vinte anos, mancebo de meão corpo, bem formado, muito gentil-homem e bem acondiçoado, liberal, cortês, muito macio, e tinha todas as partes que um bom fidalgo deve ter, e, sobretudo, era temente a Deus e muito esforçado.
Como foi na Índia, daí a poucos dias sucedeu o cerco de Goa e Chaúl, e mais forças da Índia, sendo Vizo-rei D. Luís de Ataíde, no qual tempo tiveram aquelas grandes e celebradas vitórias, que todos sabem. Mandou o Vizo-rei a este fidalgo, em companhia de outros soldados, a socorrer Chale, uma das fortalezas que, então, estava cercada, na qual não puderam entrar senão obra de quarenta homens à força de espada por antre os imigos, onde entrou este D. Gonçalo Coutinho, ferido de uma arcabuzada pelo rosto e uma setada em uma perna; e, porque, quando entraram, não puderam meter mantimentos nem munições de guerra, de que havia muita necessidade, se largou a fortaleza a partido aos imigos, e D. Gonçalo Coutinho foi à mão ao capitão que se não rendesse, escrevendo-lhe sobre isso um escrito, estando ferido na cama, que depois veio ao Reino com um estromento que disso tirou, para que se soubesse que não fora ele de parecer que se rendessem; pela qual razão el-Rei mandou cortar a cabeça ao capitão, não porque a fortaleza se pudera sustentar, que não tinha remédio, mas pela largar antes de tempo, podendo-se sustentar mais alguns dias, nos quais lhe pudera ir socorro.
Depois disto, andando este fidalgo, D. Gonçalo Coutinho, de armada na costa do Malabar por capitão, acharam uma fusta de imigos e, por o navio em que ele andava ser grande e pesado, passou-se a uma fusta mais ligeira para alcançar os contrários, que logo alcançou, e, estando aferrados, acudiu a gente portuguesa toda a uma banda para entrarem com eles, e os imigos também a defender-lho, de maneira que se viraram as fustas ambas e se afogaram todos, escapando só um (segundo dizem), onde acabou este fidalgo, mas afirma-se que, ao tempo que as fustas se viraram, ia já tão ferido, que não podia escapar de uma maneira ou de outra; e assim acabou, sendo de idade de vinte e quatro anos, pouco mais ou menos.
D. Bernardo Coutinho, seu quarto irmão, sendo de idade de dezoito anos, se foi também para a Índia, pequeno de corpo, sem se esperar dele ser maior que o pai, com que se ele muito parecia, e, assim, era opiniático. E andando na Índia, de armada no Malabar, por capitão de uma fusta, vindo outra de imigos, correu após ela e alcançou-a com brevidade, por ser a sua mais ligeira, e, estando aferrados para a renderem, chegou outra fusta de portugueses, em que vinha por capitão um Fuão Caiado, que aferrou também a fusta, que logo foi rendida, e largada por D. Bernardo ao Caiado, como em desprezo, fazendo pouca conta dela, por se achar afrontado de outro o socorrer em coisa tão pouca, de que não tinha necessidade, por não ser nada para ele render uma fusta. E, fazendo disso queixume ao capitão-mor, com ásperas palavras (como dizem), dizendo que, se não andara debaixo da sua bandeira, houvera de quebrar uma cana na cabeça ao outro, que estava presente e, achando-se destas palavras afrontado, o desafiou e matou no desafio, indevidamente (segundo dizem), não guardando a ordem que em os tais casos se deve ter, de maneira que lhe foi estranhado por muitos fidalgos.
Mas, bem morto ou mal morto, ele acabou miseravelmente por ser em desafio, se antes de expirar não se arrependeu de suas culpas, não dizendo nunca alguém a sua mãe a maneira de sua morte, senão que acabara como os outros.
Teve D. Luís Coutinho outro irmão, chamado D. Hierónimo, de que adiante direi.
A provisão de el-Rei, por que este D. Luís Coutinho, terceiro comendador da ilha de Santa Maria, houve a comenda dela, diz assim: “D. Sebastião, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d’aquém e d’além mar em África, Senhor de Guiné e da Conquista, Navegação, Comércio de Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia, etc.: — Faço saber aos que esta minha carta virem que, por parte de D. Luís Coutinho, fidalgo de minha casa, cavaleiro da dita Ordem (sic), filho de D. Francisco Coutinho, que Deus haja, me foi apresentado um alvará de lembrança de el-Rei, meu senhor e avô, que santa glória haja, por ele assinado, por que lhe aprouve de, por falecimento do dito D. Francisco, fazer mercê a seu filho mais velho, que por sua morte ficasse, da comenda de Nossa Senhora da Assunção na ilha de Santa Maria, que o dito D. Francisco tinha, como é declarado no dito alvará, de que o treslado é o seguinte: “Eu, el-Rei, faço saber aos que este meu alvará virem que, havendo respeito aos serviços que me tem feito D. Francisco Coutinho, fidalgo de minha casa, e aos que espero que ao diante me faça, hei por bem e me apraz de, por seu falecimento, fazer mercê ao seu filho mais velho, que por sua morte ficar, da comenda de Santa Maria da Assunção, da ilha de Santa Maria, das ilhas dos Açores, que ele D. Francisco ora tem; e para sua guarda e minha lembrança lhe mandei dar este alvará por mim assinado, o qual quero que se cumpra e guarde inteiramente, como se fora carta feita em meu nome, passada pela chancelaria, posto que este por ela não passe, sem embargo da ordenação do segundo livro, título vinte, que dispõe o contrário. André Soares o fez em Lisboa a vinte e cinco de Setembro de mil e quinhentos e cinquenta”. — Pedindo-me o dito D. Luís Coutinho, por mercê, que, porquanto o dito seu pai era falecido e ele ser o filho mais velho, que por seu falecimento ficara, segundo fez certo por certidão de justificação do doutor António Vaz Castelo, juiz dos meus feitos da Fazenda e das justificações dela, a que vinha e pertencia a dita comenda, conforme ao dito alvará de lembrança, houvesse por bem lhe mandar passar carta em forma dela. E visto seu requerimento e o dito alvará, havendo respeito aos serviços do dito seu pai e aos que espero que ele, D. Luís, à dita Ordem e a mim faça, hei por bem e me praz de lhe fazer mercê em comenda, com o hábito dela, dos dízimos da terra da dita ilha de Santa Maria e a dízima do pescado que se antigamente arrecadava pelos oficiais dos Reis passados, para sua Fazenda, e assim a vintena do pastel da dita ilha de Santa Maria e dos dois ilhéus, que estão junto dela ao mar, um que se chama de São Lourenço, que está detrás da dita ilha, e outro, que está defronte da ilha, dos quais ilhéus hei por bem que o dito D. Luís se possa aproveitar no que lhe bem vier, sem deles pagar direitos alguns, e por esta presente carta lhos couto e hei por coutados. E lhe faço isso mesmo doação e mercê da dízima do pastel que sair da dita ilha para fora do Reino, que anda com a dita comenda, como tudo à dita Ordem e a mim pertence e pertencer pode, por qualquer maneira que seja, e como tinha e possuía o dito D. Francisco, seu pai, pela carta que da dita comenda lhe foi passada, porque de tudo faço por esta doação mercê ao dito D. Luís, com o hábito da dita Ordem, como dito é, com tal declaração que ele será obrigado pagar à sua custa os mantimentos e ordenados do vigairo e clérigos e tesoureiro e quaisquer outras ordinárias de oficiais eclesiásticos da dita ilha, e dar o trigo necessário para farinha para as hóstias, e o vinho, velas e candeias de cera para o serviço das igrejas da dita ilha, cada vez que para isso for pedido. E, portanto, mando ao capitão da dita ilha e ao seu ouvidor, juízes e oficiais da dita Câmara e povo dela que hajam o dito D. Luís por comendador da dita comenda, como era o dito D. Francisco, seu pai, e ao contador de minha Fazenda na contadoria da ilha de São Miguel que lhe dê a posse dele. E assim mando ao almoxarife ou recebedor do almoxarifado da dita ilha de Santa Maria, que ora é, e pelo tempo for, que lhe deixe haver e arrecadar por si e por quem lhe aprouver o rendimento da dita comenda, que, conforme a esta carta, lhe pertencer haver. E isto desde o dia do falecimento do dito seu pai em diante, na maneira sobredita. E cumpram e guardem e façam inteiramente cumprir e guardar esta minha carta que por firmeza lhe mandei dar, assinada e selada com o selo da dita Ordem, a qual se registará no livro dos registos da dita contadoria. E, para se ver e saber como tenho feito esta mercê ao dito D. Luís, ao assinar dela se rompa o dito alvará de lembrança acima tresladado. Dada em Lisboa aos vinte e sete de Junho. Gaspar de Magalhães a fez ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quinhentos e sessenta e sete. Sebastião da Costa a fez escrever e dar-lhe-á posse da dita comenda Pero Hanriquez, contador da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, posto que acima diga que lha dê o contador de minha Fazenda da ilha, a qual posse dará por si ou por sua comissão cada vez que para isso for pedida. O qual está assinado pelo Cardeal Infante”.
Fez também el-Rei D. Sebastião mercê (como acima disse) a D. Luís Coutinho, filho de D. Francisco Coutinho, dos direitos da urzela da ilha de Santa Maria, por lhe pertencerem por ser tinta, e assim da pensão dos tabaliães da mesma ilha, por uma provisão feita por Simão Pimentel a seis dias de Julho de mil e quinhentos e sessenta e sete anos.
Tem também o comendador na ilha de Santa Maria, e o desta de São Miguel, a dízima das moendas, em comenda, por provisão de el-Rei D. Sebastião, feita por João Orelha, tabalião, a vinte e três do mês de Agosto de mil e quinhentos e sessenta e oito anos.
Tem el-Rei na ilha de Santa Maria, somente, um quarteiro de trigo de renda da terra da Abegoaria, e tem mais o dízimo das entradas de todas as coisas que vêm de fora do Regno.

D. Hierónimo Coutinho, quinto irmão de D. Luís Coutinho, terceiro comendador que foi da ilha de Santa Maria, e mais moço de todos os cinco irmãos, em sua mocidade foi criado em trajos de clérigo, e para isso o principiaram o pai e a mãe; e depois da morte do pai, a mãe o meteu em um seminário, que se fez novamente em Lisboa, na Mouraria, na rua dos Cavaleiros, que ordenou o Cardeal Infante D. Henrique, na vagante do arcebispo D. Fernando, e se sustentavam com as rendas do arcebispado para não entrarem nele senão fidalgos e filhos de cidadãos nobres e pobres, e, como tal, esteve D. Hierónimo Coutinho.
Mas, quando na penúltima peste de Lisboa se desmanchou o colégio com ela, cada um foi buscar sua vida; pediu a mãe ao Cardeal que lho mandasse ao seu colégio de Évora; sendolhe isto concedido, Martim de Matos, seu feitor da comenda, homem honrado, discreto e virtuoso, o foi lá levar, onde o deixou. E esteve três ou quatro anos, em que sucedeu neste tempo fazer uma travessura, pela qual o rector, que era um padre da Companhia, o quisera castigar; ele, temendo-se disso, buscou modo de se defender, havendo uma faca à mão, e, quando foram para o açoitar, não consentiu chegar ninguém a si; o rector, quando viu que ele se não queria render, mandou que o deixassem e fechou-lhe a porta, esperando que se lhe fosse a fúria, para depois tornar a ele com brandura e castigo. Mas, vendo-se ele solto, se lançou por uma janela fora e foi ter com um estudante, seu amigo, e daí para Portalegre, a casa de seu cunhado, D. Miguel de Noronha, que, então, estava lá de morada com sua mulher e filhos (como é costume de fidalgos por forrarem gastos da Corte), sem querer tornar mais ao colégio, o que entendendo dele a irmã e o cunhado, escreveram à mãe sua tenção, e ela trabalhou quanto pôde para que tornasse, sem o poder alcançar.
Pediu ele, então, que o mandasse para a Índia, pelo que houve por bem o irmão mais velho de o mandar, negociando-lhe o necessário; e foi para a Índia de idade de dezasseis anos, onde andou cinco anos, ou seis, servindo a el-Rei; e, chegando lá, achou os irmãos todos mortos, mas, como ele era pobre, sem ter em terra estranha quem o favorecesse com dinheiro, determinou de se vir para o Reino, para pedir a el-Rei que lhe desse de comer, o qual, quando tornou, achou ser morto e desbaratado na infelice guerra de África, e do irmão, D. Luís Coutinho, não haver nem as há até agora, por onde se presume também ser morto, e assim parece, pelo seu conhecido esforço que havia de morrer onde morreu o seu Rei. Pela qual razão el-Rei D. Henrique, que haja glória, lhe deu a comenda com condição que enquanto a mãe fosse viva lhe desse duzentos mil réis de pensão.
E, assim, ficou quarto comendador da ilha de Santa Maria, e estes são os meios por onde o veio ser, sendo dantes sempre desfavorecido da mãe por não querer ser clérigo, e o foi muito tempo, de modo que lhe não entrava em casa .
É moreno de rosto, os olhos grandes e pretos, delgado e de boa estatura, bem acondiçoado e liberal .
Indo o Senhor D. António , quando foi jurado por Rei, a tomar posse de Setúvel, foi ele por mar com dois galeões e uma urca e duas galés para tomar a boca da barra; e, como o Senhor D. António esteve de posse da dita vila, o mandou ir ao termo de Santarém fazer dois ou três mil homens, de que o fez capitão, por lhe ser muito aceito. E depois foi um dos seus coronéis , mas houve perdão de el-Rei D. Filipe e come sua comenda, como dantes, porque, sabendo o mesmo Rei Filipe o valor da sua pessoa, lhe fez muitas mercês e o mandou o ano de mil e quinhentos e oitenta e seis por capitão-mor da armada da Índia .
Nenhum destes comendadores foi à ilha de Santa Maria, da qual, por seus feitores, mandava arrecadar e levar suas rendas ao Regno, em o qual e em África e outras partes as gastavam honrosamente, em serviço de Deus e de seu Rei.
A mãe destes fidalgos, D. Filipa de Vilhena, depois da morte do marido, que está enterrado no capítulo em S. Francisco de Lisboa, esteve aí dez meses, negociando as coisas necessárias a sua alma, de que ela ficou por testamenteira com Manuel da Câmara, Capitão que foi desta ilha de São Miguel, em que estamos; e, no fim dos dez meses, se foi para a quintã, que tem junto de Peralonga, a que chamam Minalvela, e nela esteve muitos anos até que tornou a Lisboa, onde se deixou estar por causa do filho mais velho, comendador da ilha de Santa Maria, que foi com el-Rei, para lhe negociar suas coisas.
Esta virtuosa fidalga, mãe destes ilustres fidalgos e esforçados cavaleiros, depois da morte do marido, nunca mais comeu em mesa, nem dormiu, senão no chão; as camisas, toucados, lenços, guardanapos e toda a roupa desta sorte, de seu serviço, é de canhamaço muito grosso, e nem por isso deixa de ter as coisas necessárias para agasalhar seus filhos e parentes, e outros hóspedes, que a casa lhe vão, como sempre costumou. Jejua o mais tempo do ano, e os mais dos dias a pão e água, e muito poucas vezes come pão alvo ou carne, e nesta abstinência vive até agora, depois da morte de seu marido. Ao tempo que ficou viúva seria como de idade de quarenta anos, e haveria vinte e cinco ou vinte e seis que eram casados, e no fim deste tempo viu a morte de seu marido e de seus filhos, tirando a do mais velho, D. Luís Coutinho, segundo do nome e terceiro comendador da ilha de Santa Maria, que foi à guerra de África, acompanhando e seguindo como leal vassalo a seu Rei, de que se não sabe certeza se é morto, se vivo, se cativo.
De qualquer maneira destas, que seja, tudo são tristes saudades do mundo e da terra, que há-de comer, ou tarde ou cedo, a todos; e quem mais viver mais mortes dos seus e estranhos verá e terá mais naturais e estranhas saudades, as quais, antre algumas consolações que tem, uma das principais é durarem pouco, porque dura pouco a vida em que se passam, que presto fenece com a sombra da morte. E pois este breve dia se vai da mesma maneira acabando com a sombra da noite, vamo-nos, Senhora, esconder à sombra da furna, minha pobre morada.
Dizendo eu isto à Fama, nos alevantamos ambas e, passando por antre o arvoredo, comendo dele o fruto não vedado, nos recolhemos, eu com breves palavras e ela com esperanças compridas, dizendo que já folgara de vir o dia seguinte, para ouvir de mim as coisas desta ilha de São Miguel, que lhe pareciam grandes, pois ela era tão grande, ao que eu respondi que na minha ruda linguagem se haviam de tornar pequenas.
Nestas e outras semelhantes palavras, antre sono e sono, passamos recolhidas a obscura noite, que trouxe após si um mais claro e sereno dia que os passados, em que nos tornamos a assentar, como dantes, sobre os lisos penedos, junto das claras águas da grande ribeira; e, sendo dela rogada, inclinando-me a seus rogos por cumprir o prometido, não lhe soube negar o que pedia, e, sem ter saber para isso, lhe contei o que pude saber desta ilha de São Miguel, como direi no livro que se segue.

Tornando a D. Francisco Coutinho, segundo comendador da ilha de Santa Maria, de que vou contando, sabei, Senhora, que foi homem pequeno de corpo, mas bem feito e gentilhomem, galante, gracioso e discreto em suas falas e muito de zombar, e dos melhores genetairos (sic) que houve em seu tempo, e, como bom cavaleiro que era, teve gentis cavalos.
Foi muito curioso da caça de açor e, assim, os tinha muito bons; como nos bons intrumentos se conhece o bom oficial em seu ofício, teve uma mula, que tudo o que fazia um bom ginete fazia ela, de correr e parar e jogar canas, pela qual lhe dava o Duque D. Jorge, mestre de Santiago, sem lha ele querer dar por isso, mil cruzados, quinhentos em dinheiro e os outros quinhentos em papéis. Era esta mula preta como amora, muito bem feita, não muito grande, e morreu de uma postema, que lhe nasceu antre as mãos daí a pouco depois que o mestre lhe comprava.
Era este D. Francisco muito aceito ao Infante D. Luís e foi com ele na tomada de Tunez , e, depois da morte do Infante, foi também muito amigo do senhor D. António, seu filho, de tal maneira que ia muitas vezes folgar com ele em uma quintã sua, que tinha junto de Peralonga, no termo de Sintra, que chamam Minalvela. Mas, depois, vieram a estar mal, sobre uma igreja que o comendador tinha na Beira, que lhe dera o Conde, seu tio, a qual comia anexa a esta comenda, e por ser a igreja da... do Senhor D. António , que houve por morte do Conde de Marialva, D. Francisco impetrou do Papa para a poder deixar ao filho segundo, por nome D. Pedro, e, por fazer isto sem dar conta ao Senhor D. António , ou porque ele se punha contra isso, vieram a estar ambos mal avindos.
Era este comendador voluntário, agastado, determinado e perigoso para quem lhe fizesse ou dissesse coisa fora de seu gosto, em tanta maneira que, indo um dia ao Paço, porque o porteiro logo o não quis deixar entrar, lhe deu uma bofetada, de que el-Rei houve menencoria , e mandou-lhe tirar a moradia, a qual dizem que depois lha mandou dar, mas ele a não quis.
Era muito opiniático e grandioso; nunca teve dever com rei, nem príncipe, nem privado e zombava de tudo, pela qual razão não valeu no Reino mais do que valia, nem teve cargos, como outros tiveram, sendo ele tanto para isso como todos, pelas partes que tinha. Mas, contudo, nunca pediu coisa a el-Rei, que muito levemente lha não concedesse; tanto que um dia, estando el-Rei comendo, vieram acaso a falar em um escravo seu, que estava preso por ladrão, e, por isso, o mandavam desorelhar, e querendo-lhe D. Francisco comprar as orelhas, saíram-lhe muito caras, e, falando nisso, como digo, acaso, respondeu que muito dinheiro era para tão ruim carne, o que caiu em graça a el-Rei, que mandou soltar o negro, sem nenhuma pena. Tinha destes ditos de presente muitos e mui discretos, e, onde ele estava, sempre havia ajuntamento de gente.
Também lhe fez el-Rei mercê da comenda para o filho mais velho, que ficasse comendador à hora de sua morte, que foi uma mercê larga que os Reis costumam fazer poucas vezes, sem nomear a pessoa a quem se há-de dar, porque, se acerta de morrer o nomeado, fica no peito do Rei querê-la tornar a dar a outrem. E esta foi tão larga, que, ainda que todos morreram e não ficara o mais moço, era sua a comenda.
Tratou-se D. Francisco Coutinho, em sua mocidade, muito custoso e galante e sempre teve grande casa de muitos escudeiros, e pajes e moços de esporas, e outros servidores necessários, e os que tinha, fora de escudeiros e pajes, em sua casa, eram filhos de homens nobres, porque se não queria servir nestes foros senão de semelhantes. E havia muitas casas de condes e outros senhores, que não eram de tanto estado como a sua, com ter tão pouca renda, que não chegava a um conto. Mas a mulher governava tudo por tal ordem, que lhe sobejava, com a casa ser bem provida e abastada de todas as coisas necessárias e ordenado de seus criados muito bem pago.
Era casa de muitos hóspedes, de parentes e outras pessoas, em que a mulher tinha gentil graça no gasalhado deles. E, se acontecia adoecer algum dos seus criados, de qualquer sorte que fosse, ela o curava por sua mão, e, se era moço pequeno, mandava-o levar para dentro, onde estavam suas donzelas, para ser curado melhor, e, se era homem, ia-o visitar à pousada todas as vezes necessárias, de maneira que não perecesse à míngua. Estas e outras coisas tinha de nobre senhora. Ela tinha também conta com todas as rendas e gastos de casa, de maneira que tudo corria por sua mão, e não era nada avara, mas muito larga no dar, e coisas grandes, e mui amiga de fazer bem, e caridosa com os pobres e necessitados; e o ter muitos filhos lhe não dava lugar a usar tanto de sua larga condição, mas tudo fazia de maneira que nela se não enxergava.
Faleceu o comendador D. Francisco Coutinho a dezoito dias de Outubro de mil e quinhentos e sessenta e cinco, de câmaras de sangue; e do dia que lhe deram a sete dias passou desta vida, sendo de idade de cinquenta e seis anos, estando em muito boa disposição, sem cabelo branco na cabeça, nem na barba; muito bom cristão com receber todos os sacramentos da Santa Madre Igreja.
E no dia e hora de seu falecimento se perdeu um navio na barra da Ribeira, carregado de trigo seu, que ia da comenda, que, com a sua morte, deu grande abalo à casa, porque se despediram algumas pessoas dela, de mais pouca obrigação.