Indo deste lugar, pela banda do Norte e Nordeste, a Leste, até Castelete, onde comecei, que haverá três léguas de costa, pouco mais ou menos, passadas as Lagoinhas, em uma grande baía, que se chama dos Landeiros, está logo uma fajã, que também se chama, do seu nome, das Lagoinhas, de pouco mais de três moios de terra, que foi de João Tomé, acima dito, e agora é do mosteiro de Santo André das freiras de Vila Franca, desta ilha de São Miguel, que herdou por falecimento de uma sua filha, que nele tinha freira professa; e logo está a ribeira dos Landeiros, que parte com ela e corre sempre com muita água, por se virem meter nela outras três que descem da serra, a ribeira Funda, e outra de Belchior Martins, e outra do Poldro. Chama-se ribeira dos Landeiros, porque as terras nesta parte foram de uns homens assim chamados, com uma fajã que foi de Estêvão Anes Landeiro, que será de um moio. E outras fajãs estão aqui nesta costa, onde agora se começam a prantar vinhas, as quais foram do Minhoto e João d’Arruda, seu genro, filho de Pero da Costa, da Vila Franca, desta ilha de São Miguel, as vendeu a Belchior Homem, e agora são de um Manuel Curvelo.
Está logo pegado com esta fajã uma ribeira de boa água, que se chama de Santa Bárbara, por vir por junto da igreja desta Santa, que é freguesia de quarenta fogos e cento e dez almas de confissão, pouco mais ou menos; onde foi o primeiro cura Bartolomeu Luís, natural desta ilha de São Miguel, o qual não confirmou a igreja, porque quis antes um benefício na Vila. E Amador Fernandes, natural desta mesma ilha, foi o primeiro vigário confirmado; o segundo, José Gonçalves, o qual a renunciou; e ao presente é vigário Manuel Fernandes, natural da dita ilha de Santa Maria; em a qual freguesia mora gente muito honrada. E nas rochas, antre estas ribeiras, há muitas fontes de muitas águas, que vão cair no mar.
Passada esta ribeira, tanto como um quarto de légua, desta baía ao Nordeste corre toda a rocha talhada do ilhéu, por espaço de meia légua, até uma ponta, que se chama de Álvaro Pires de Lemos, porque as terras que correm por cima foram suas; e dizem ser o segundo homem que entrou na ilha, muito rico e honrado, o qual, caindo depois em pobreza, vendeu esta fazenda ao Minhoto, por morte do qual herdaram seus filhos, e o Capitão João Soares o quinhão de um neto seu, filho do mesmo Minhoto, pelo que está espedaçada, e seus filhos e netos, deste Álvaro Pires, vivem agora de esmolas. E um genro seu vendeu daquela fazenda, haverá mais de quarenta anos, um moio de terra por quatro mil e setecentos réis, que vale mais de sessenta mil neste tempo, o qual, o ano de mil e quinhentos e setenta e oito, que foi estéril, deu quinze moios de trigo.
Esta rocha bota uma ponta ao mar, à banda do Norte, direita às Formigas, chamada como de Álvaro Pires, que ali tinha suas terras, e é a terra da ilha que está mais perto delas, e em cima faz um sombreiro para o mar, sobre a qual está um penedo direito, de grossura de uma pipa e comprimento de duas lanças.
A fajã de Bárbara Vaz possuem agora Jorge de Sousa, Belchior Martins, o padre Belchior Homem, vigairo que foi de Vila Franca, nesta ilha, e da Vila do Porto de Santa Maria, e os herdeiros de António de Matos; serão todas estas fajãs quatro moios de terra.
Logo no cabo da rocha corre uma ribeira de água, por extrema de uma fajã de perto de cinco moios de terra, que vai adiante, que foi de António de Matos e agora é de sua mulher e seus herdeiros, prantada, parte dela de vinha que dá bom vinho, com sua fonte dentro, parte dela de pão; pegado a esta, além de um pedaço de rocha, estão algumas fajãs juntas, de dez moios de terra, todas prantadas de vinha: a primeira foi de Bárbara Vaz e agora é de seus herdeiros, a segunda de Gonçalo Pinto, a terceira do Capitão João Soares de Sousa, que agora possuem seus herdeiros, onde estão casas e donde sai muito vinho, porque não há alqueire de vinha que não dê uma pipa dele e mais.
Adiante está outra de Belchior Martins, outra de Manuel Ribeiro, outra de João da Fonte, muito boa, como já disse, todas na freguesia de Santa Bárbara, que está da rocha do mar pela terra dentro dois tiros de besta, defronte das Formigas, que estão ao Nor-nordeste desta ilha. E defronte desta (sic) igreja, para o mar, do Norte, está uma ponta que tem o penedo que disse, de comprimento de duas lanças e grossura de uma pipa, assentado sobre um sombreiro de pedra na borda da rocha.
E por serem todas estas fajãs mui grandes e formosas se chamam as Fajãs Grandes ou de São Lourenço, por estarem junto de uma sua Ermida, parte prantadas de vinhas, e outras por prantar, onde se dão os melhores figos longares que há nas ilhas, e muitos marmelos, maçãs, amoras e outras frutas, que, por serem vinhas novas, de doze até quinze anos, dão uvas mui grandes e boas. O vinho se tira dele por mar, e dele às costas dos vinhateiros; pode-se fazer caminho de carro facilmente e, por não serem os donos delas muito ricos, o não fazem.
E, finalmente, são tão ricas que, se estiveram em outra parte de Portugal, valeram três mil cruzados. Logo no princípio delas, correndo para o Oriente, pela banda do Norte, é um pedaço de Belchior Martins, e foi dantes de uma mulher antiga, já dita, chamada Bárbara Vaz, que corria do mar à serra com suas terras, da qual mulher a houve o Minhoto, donde a veio herdar João d’Arruda, o qual a vendeu a Frei Belchior Homem, cuja agora é. Nas quais há terras de pão, que poderão ser sete até oito moios, com muitas árvores de fruto e figueiras e amoreiras.
Logo mais adiante, tem Manuel Romeiro outra vinha que ficou de seu pai, Fuão Barbabranca.
E, partindo com ela, tem Belchior Martins uma vinha grande, que ele fez, a primeira que se prantou nesta fajã toda, que ele houve com Maria Romeira, viúva, mulher que foi do dito Barba-branca. Logo partindo com esta, tem Manuel Romeiro outra, que lhe deram em casamento com sua mulher, filha que foi de África Anes; e daqui até o ilhéu está a fajã do mar à serra, que foram terras de um Gonçalo Pinto, o qual as vendeu ao Minhoto, e a fajã herdou o Capitão João Soares de Sousa, por falecimento de um seu neto, filho do dito Minhoto, que tenho dito, e começou a fazer vinha nela. Depois que os herdeiros de Gonçalo Pinto viram aproveitar-se as terras e começarem-se as vinhas, puseram demanda e, por concerto, lhe deu, a cada um, seu pedaço, em que agora vivem Ascêncio Pinto e Manuel Pinto; a demais tem D. Maria e alguns dos filhos do dito Capitão. Poderá dar toda a fajã, ao presente, cento e cinquenta pipas de vinho, se for bem aproveitado, beneficiado e recolhido. Tem uma grande baía e praia de areia, ao longo do mar, que se chama de Bárbara Vaz, e três ou quatro fontes, bastantes ao uso dos cultores, e terá perto de meia légua, de ponta a ponta.
Detrás da ponta desta fajã, que toda junta se chama de São Lourenço, para Leste, está o ilhéu, que se chama do Romeiro, menos de um tiro de besta de terra, e um porto, que também assim se chama, defronte do qual ilhéu sai ao mar uma ribeira, que se chama do Salto, porque em cima, no princípio dela, que será em meia terra, tem um salto mui grande; também cai de alto da rocha, no pé dela, sem dar em outra coisa; é ribeira muito curta para a terra, mas mui larga, de muito mato, e de outra parte de vinhas e terra de pão; leva pouca água, mas clara e boa, como são as da ilha todas, e muito mato, de uma e outra banda.
E, abaixo do salto, está uma vinha muito boa e terras de moledais, que se podem fazer em vinhas, e dá muita mostarda; leva a ribeira alguma água, mas não de moinhos, ainda que já teve um.
Chama-se o ilhéu e porto do Romeiro, porque em cima, nas terras feitas ao Sul deles, morou um homem honrado e antigo, chamado Francisco Romeiro, muito abastado, cuja casa era de todos, e tinha graça de curar quaisquer feridas e desmanchos de braços e pernas, não somente de graça, mas pondo todo o necessário em qualquer cura, que fazia à sua custa, para ser graça perfeita. Junto das quais casas, à borda da rocha, está uma fonte muito grande, que se chama a Fonte Clara. E da ponta de Álvaro Pires até este ilhéu será uma légua.
O qual ilhéu do Romeiro é de pedra , da feição de um coruchéu, e com vento Sul e outros ventos do mar tormentosos se acolhem a ele muitos navios, o qual terá em cima dez alqueires de terra de erva e alguma rama curta e pouca, onde se criam e tomam muitas cagarras que dão graxa e pena para cabeçais. E porque é este ilhéu dos comendadores, não podem ir a ele, nem aos outros, a fazer esta caça, sem sua licença ou dos feitores.
Tem este ilhéu uma furna tão comprida, que parece chegar donde começa à outra parte dele, mas não tem mais de uma boca, maior que um portal de qualquer igreja grande, cuja entrada é mais alta que três lanças. Tem este furna muitos caminhos e furnas com retretes, e toda é de penedia mui áspera, que está como engessada ou grudada, de uma pedra de água, que faz das gotas de água que de cima está estilando e se coalha como cera e congela como vidro e fica no ar dependurada, como regelo ou neve que cai, onde a há, das beiras dos telhados, ou como tochas e círios de cera derretida, que se vai pondo em camadas e coalhando; e assim são algumas tão compridas, que chegam abaixo, e outras ficam no ar dependuradas, mas pegadas em cima, fazendo-se brancas depois de coalhadas, como pedra de alabastro.
Na entrada desta furna está uma lagem, a logares, não muito chã, que está alastrada da dita pedra de água, da mesma maneira da rinhoada (sic) de um boi muito gordo e da própria cor sanguentada, que, vê-la sem a tocar, não se julga por menos; aqui chega o Sol com seus raios alguma parte do dia, por onde parece que tem outra cor, diferente da de dentro, sombria.
Parece casa de cirieiro, com as muitas tochas, círios, candeias, da cor da cera, não muito branca, algumas das quais estão pegadas no alto, dependuradas para baixo e as gotas de água na ponta. E onde cai aquela gota, na lagem, de baixo se faz e alevanta outra tocha ou candeia, como a de cima, ficando parecendo aquela furna uma grande e fera boca aberta de baleia, bem povoada de alvos dentes em ambos os queixos, debaixo e de cima; quebrando os quais dentes ou tochas e círios e candeias, lhe vêm as camadas de água coalhada, feita pedra, como as da cera de um círio.
Outros não são como tochas, círios, candeias, nem dentes, senão como pedaços de pau grosso; outros à feição de gamelas; outros, em lugares, feitos à maneira de oratórios, com seus círios postos e castiçais; em outras partes coscorões, mas são sobre o teso, que se não devem mastigar muito bem; em outra parte confeitos, feitos de gotas de água, que de cima cai, e depois se tornam pedras, que os parecem, e que à vista não diferem deles coisa alguma, senão que devem de trincar muito no dente, pois são tornados pedra, com que também fica parecendo aquela furna casa de confeiteiro.
À qual não vão, ainda que seja em dia claro, senão com tocha ou candeio, por causa da grande obscuridade que há dentro nela. Está este ao Nordeste da ilha. Há neste ilhéu, ao redor dele, muito marisco, principalmente cranguejos (sic) e lagostins .
Deste ilhéu, do mar, e da Fonte Clara, da terra, onde fiquei, a um quarto de légua, é a rocha mui alta e está uma ribeira não muito comprida, mas larga, com umas ladeiras grandes, que dão trigo, cevada, pastel, vinho e mostarda, e todo ano corre, mas não tanta que possa haver moendas; a qual se chama de Diogo Gil, que tem ali sua vinha e terras para se fazerem mais; e chega a ribeira a uma ermida de Santo António, que estará do mar um terço de légua.
Esta foi a primeira freguesia, que era da Purificação de Nossa Senhora e, quando se mudou a igreja, lançaram sortes que santo ficaria e saiu Santo António, onde está um fresco retábulo do mesmo Santo, e uma fonte muito fria, grande e formosa, não muito longe, da banda de Oriente. Mais acima está a igreja de Nossa Senhora da Purificação com uma capela de São Pedro, da banda do Norte, que mandou fazer Domingos Fernandes, pai de Diogo Faleiro, que fica desta ao Sueste, de cuja freguesia é a dita ermida de Santo António. Na qual freguesia, que não há trinta anos que se fez, há cento e dois fogos e quatrocentas e treze almas de confissão. Joanne Anes, que era dantes beneficiado na freguesia de Nossa Senhora da Assunção da Vila do Porto, na mesma ilha de Santa Maria, foi nela o primeiro vigário; e o segundo é agora Cristóvão Lopes, natural da vila da Ribeira Grande, desta ilha de São Miguel.
Da ribeira de Santo António, a que outros chamam de Diogo Gil, corre rocha talhada, por espaço de meia légua, até um ilhéu redondo e chão, que terá meio moio de terra prantada de vinha nova, abrigada da banda do mar com alta rocha, ao qual se vai por terra por um estreito, tanto como dois palmos de largo na entrada e, chegando a ele, menos; e, de comprido, da terra até o dito ilhéu, pelo mesmo estreito, serão perto de trinta; na entrada do qual estreito, na terra defronte do ilhéu, estão duas fontes de água, com que fica a Leste, ali, neste ilhéu, um lugar solitário e saudoso, muito próprio e aparelhado para poder nele um ermitão fazer vida santa.
Deste ilhéu, correndo para o Castelete, está uma baía, que se chama a Feiteira, e, adiante, outra ponta, chamada de Pedro Dias, e, passada ela, vai a costa do calhau grosso um tiro de besta, que se anda a pé toda, até uma ribeira que se chama Grande e, por outro nome, da Maia, porque corre uma fazenda grande, ao longo dela, do mar à serra, que, como tenho dito, foi de Álvaro Fernandes, marido de Catarina Fernandes da Maia, homem principal e rico. Antre a qual Ribeira Grande e o ilhéu, que agora disse, está uma vinha que foi de Amador Lourenço e agora é de seus herdeiros, que será dois moios de terra.
E, passada a ribeira, que já está da banda de Leste, entra uma baía pela terra, onde está bom porto, que se chama de Domingos Fernandes, em que varam barcos e se carregam muitos vinhos de muitas vinhas, que há até Castelete, por onde corre a fajã da Maia, que serão até dez moios de terra. E está uma fajã baixa, a modo de lagoa, quase ao nível com o mar, toda prantada de vinha e cercada de figueiral da banda do mar, tanta como dois moios de terra, que é de Diogo Fernandes Faleiro, que herdou da Maia , sua sogra. E ao pé dela está outra vinha, de Cristóvão Vaz Faleiro, ambas as quais fajãs vão entestar no Castelete, defronte das quais está afastada no mar espaço de um tiro de arcabuz uma baía, que se chama da Maia. E será légua e meia do porto principal do ilhéu do Romeiro até ao Castelete; que (sic) uma pedra grande, alta como uma torre, sobre uma ponta que sai ao mar, e também se chama o Padrão, e por tal o tomei aqui como marco da banda do Nascente, para dele começar e acabar nele.
Não muito longe do qual está a freguesia de Nossa Senhora da Purificação na serra. E a outra, de Santa Bárbara, fica atrás da banda do Norte.

Passado o porto e ribeira do Sancho, torna a fazer a rocha volta para o mar até a ponta da Forca, que está nela, da qual ponta à do Marvão, que atrás fica (fazendo ambas enseada do porto da Vila já dita), haverá um quarto de légua ou menos; passada a ponta da Forca, vai a rocha íngreme até uma ribeira seca, que estará dela como três tiros de besta, a qual ribeira não corre senão quando chove muita água, e mete-se no mar em areia grossa, e é rasa e muito perigosa para a terra, por ser aparelhada para nela desembarcarem imigos, pelo que é necessário haver nela grande vigia.

Defronte desta ribeira, ao Sul da terra, para o mar, está o ilhéu da Vila, redondo e de rocha talhada ao redor, mas tem um só passo por onde sobem a ele, o qual tem em cima tanto como quatro alqueires de terra chã e cria erva, que chamam panasco, e outras ervas, antre as quais criam tantos garajaus que se apanham, quando da terra lá vão folgar, por vezes, trezentos, quatrocentos e quinhentos ovos pelo chão; mas, quando algumas pessoas os vão apanhar, se não levarem as cabeças bem cobertas, parece que não tornarão com orelhas quando se recolherem, porque arremetem os garajaus a eles (sic), como abelhas; e são estes ovos melhores e mais sãos que todas as aves. E neste ilhéu há uma calheta pequena, onde varam um e dois barcos.

Passada esta ribeira seca, vai correndo a rocha baixa para a banda de Sant’Ana; a terra, que por cima corre, se chama Abegoaria, porque antigamente havia ali muita abegoaria de madeira. E adiante está o Cabrestante, que é uma ponta de terra que se mete no mar, mas não muito, e por ser rasa e chã por cima, ou por alguma outra razão não sabida, se chama assim o Cabrestante.

Do porto da Vila, correndo ao longo da costa, até esta ponta do Cabrestante, que está a Oeste, estão como quarenta moios de terra, que ficaram por dar, para o concelho, onde criavam os homens seus gados sem pagar coisa alguma. Depois um Sebastião da Costa, por conselho de um certo homem da ilha, que no Reino se quis amigar com ele, pospondo o bem comum de todos os naturais ao particular de um só estrangeiro, pediu a el-Rei a metade destas terras, ficando o concelho com outra meia parte, começando da Vila para a banda do Ponente.

E, desta maneira, comummente pastavam todos nelas seus gados. Mas, depois que as terras se foram desfazendo e descobrindo dos matos que dantes tinham, pediram a el-Rei os regedores da Vila que se pudessem tapar e arrendar para obras do concelho; e assim se arrendaram em pedaços, e os rendeiros as taparam à custa das rendas, fazendo-se nelas seis sarrados, que, depois de ir à ilha o benemérito desembargador Fernão de Pina, digno, enquanto mandou e ordenou nestas ilhas, de perpétua memória, por não ter um só homem o proveito delas, e ser repartido por muitos, e alguns deles pobres, por seu mandado se arrendam a dez, vinte, trinta alqueires a homens que não têm terras para lavrar. E por este modo rendem cada ano quinze até dezoito moios de trigo, quando se lavram todas; e o menos sejam treze moios. E isto tem de renda o concelho da ilha, mas dizem alguns praguentos que luz pouco. Do cabo destes sarrados para diante, estão os de Sebastião da Costa, que já tenho dito, que correm até o Cabrestante. O primeiro rendeiro que trouxe estes sarrados foi um João da Fonte. E porque as informações dos homens variam, declarei isto do princípio, porque é a informação mais certa e passa desta maneira.

Quando se deram as dadas das terras nesta ilha de Santa Maria, de que vou falando, todas corriam do mar à serra, e os que as houveram começaram a roçar de um caminho que agora vai ao mar para Santa Ana, e foram roçando até chegar a estes sarrados, não passando de uns arrifes que aí estão juntos. E como se passou o tempo de cinco anos de sesmaria, ficaram estas terras devolutas, sem dono. O concelho tem pedidos os vinte moios, que tenho dito, a el- Rei, que lhe fez mercê deles para bois e bestas de serviço, e usou alguns anos, não somente dos seus vinte moios, mas também dos vinte que ficaram das dadas.

Estando as coisas nestes termos, indo João da Fonte, acima dito, ao Reino, deu conta destas terras a D. Luís Coutinho, primeiro comendador desta dita ilha, dizendo-lhe que as queria pedir a el-Rei, o qual D. Luís lhe disse que ele não tinha feitos serviços a Sua Alteza para ter aução de pedir esta mercê, mas que ele as pediria para si e depois lhas daria por pouca coisa. Concertados desta maneira, fez D. Luís petição, que deu a Sebastião da Costa, escrivão da Câmara de el-Rei, a qual estando no saco faleceu D. Luís, e achando-a o escrivão já sem requerente, pediu as terras a el-Rei, o qual lhas deu, com pensão de um quarteiro de trigo cada um ano. Deu, então, este Sebastião da Costa estas terras de arrendamento a João da Fonte por três quarteiros de trigo, sc. um de pensão para el-Rei e meio moio para si; haverá isto como cinquenta anos. Depois houve estas terras um António Monteiro, homem principal da ilha, por moio e meio de trigo. Depois passaram a Amador Vaz Faleiro, por cinco moios. Agora são estes sarrados, de vinte moios de terra, de um genro de Sebastião da Costa, que se chama Sebastião de Brito.

Está partida esta terra em três sarrados: um traz Jorge Carvalho, outro João Gonçalves, outro Miguel de Figueiredo, que arrecada a renda por Sebastião de Brito. Este Carvalho tem feitas casas em que ele e dois genros seus vivem, abaixo das quais, na costa, está um ilhéu pequeno, que tenho dito, que se chama do Vale da Barca.

E logo adiante, no cabo destes sarrados, indo a Loeste, está a ponta que se chama do Cabrestante, onde começam as terras de D. Branca, mulher de João Soares, primeiro Capitão da ilha, depois de seu tio Gonçalo Velho.

Este Cabrestante é uma lomba que corre do mar para o Nordeste, que tem uns arrifes, e por baixo são terras muito chãs e das melhores da ilha. Logo sai ao mar uma ribeira, que se chama do Capitão (porque é sua), de pouca água, que também se diz de Santa Ana, e vem de fontes que nascem no meio desta terra, onde se chama Flor da Rosa, da qual bebem todos os gados da parte das Abegoarias para além, por não haver outra água do caminho de Sant’Ana para baixo. Dão-se por esta costa muitos melões e bons, em fajãs que por ela estão.

Deste ribeiro para trás, até o Cabrestante, tomou D. Branca em terça, para uma capela cada ano e as missas do Natal, com mais muitos foros de casas, que tem no arrabalde da Vila, e anda no morgado, que é o filho do Capitão. E desta ribeira até Nossa Senhora dos Anjos, ao longo do mar, e até meias terras, tudo é do capitão e seus herdeiros. Aqui se fizeram as primeiras casas e quiseram fazer a Vila; e neste lugar se fez também uma igreja no princípio, mas não se sabe de que invocação era. Mas chama-se ali Sant’Ana; pode ser que a igreja seria sua, onde estão ainda covas de trigo e algumas pedras das casas antigas.

Passada a ribeira, espaço de um tiro de besta, está uma pequena praia, tanto como um tiro de pedra de mão, que se chama a Praia dos Lobos, onde saem alguns lobos marinhos a dormir em uma furna, que ali tem defronte. E logo está uma ermida de Nossa Senhora dos Anjos, muito fresca e graciosa, da qual ao ilhéu da Vila, que atrás fica, haverá quase uma légua; e na fajã, que fica atrás, se fazem grandes pescarias por todo aquele mar fronteiro, onde soíam pescar barcos de Vila Franca, desta ilha de São Miguel; têm suas cabanas em terra, onde recolhiam muito pescado, antes que costumassem ir pescar às Formigas.

Passada esta Ermida de Nossa Senhora, que está perto do mar, em uma grande e alegre fajã, vem ter a ela, das Fontes do Paúl, uma ribeira de água fresca de todo o ano, antre umas altas ladeiras vestidas de murta e regadas de fontes, que ajudam sua corrente, onde vai ajudando a fresca e nomeada fonte de Duarte Lopes; da Faneca vem e também nela entra.

Onde esta ribeira se mete no mar saiu à costa uma baleia, haverá perto de cinquenta anos, de cujos ossos se pudera fazer uma cabana, em que puderam caber uma dúzia de homens, assentados à vontade.

Logo adiante, um tiro de besta, está um ilhéu que se chama dos Frades, por saírem ali uns que naquela ermida de Nossa Senhora estiveram algum tempo. Passada esta ribeira, antre ela e o mar, se alevanta um pico, que se chama Monte Gordo (terra de bom pão), o qual pela banda do mar é de rocha talhada e mui alta, a que não pode descer nem subir gente; e, assim, vai ter a rocha em redondo, derredor do monte, até tornar perto da dita ribeira, sem se acabar de cortar da terra, com ela fazendo um espinhaço que passa para a Faneca, que se chama Maldegolado, porque, com muito pouco espaço que mais a rocha viera a dar na ribeira, acabara de ficar degolado e apartado aquele pináculo da outra terra, e não ficara antre a ribeira e a rocha um espigão tão íngreme, sem poder passar uma pessoa antre a ribeira e a rocha, que, por isso, lhe puseram este nome de Maldegolado.

Passando avante, vai correndo a rocha da Faneca, alta, íngreme e tão a pique, que nenhuma boa besta chegara com seu tiro do mar acima dela, à superfície da terra. E aqui está uma fonte, que foi de Duarte Lopes de Frielas e do seu nome se chama, no cabo de uma terra que só tem barro vermelho, sem ter verdura, porque, com ser perto de vinte moios de terra, não haverá em toda dois alqueires dela que erva tenha. E no cabo desta altura tem esta fonte, que bota tão grossa água como um grosso punho de uma pessoa, sem haver serra derredor donde aquela água venha, por ser mais alta a fonte que toda esta que está derredor dela, toda muito seca, sem criar erva alguma, senão nalgumas poucas partes, como já disse.

E debaixo desta alta rocha da Faneca, perto desta fonte, está uma furna, que entra muito pela terra dentro e só entram por ela meia légua, com tocha ou candeia, e quanto mais vão por dentro menos ouvem o mar, cuja boca tem altura de duas lanças e uma de largo; é de pedra, por baixo, e, por cima, vai lavrada, a modo de um meio berço de abóbada, como se fora feita por mão de algum oficial extremado.

E parece ser oca e ter com ela concavidade vã toda aquela terra sobre que está a dita fonte, sem se poder entender donde poderá nascer a sua água, por ir esta furna por baixo da Faneca e de outras fontes e ribeiras, acima da qual, dois tiros de besta dentro pela terra, estão as casas do ilustre Capitão Pero Soares e outras que foram de Rui Fernandes de Alpoem, que agora são do bacharel João de Avelar.

Por esta costa, que já vai dando volta à ilha para o Nordeste, por dentro da terra, corre a campina da criação do mesmo Capitão, até a ribeira de Água de Alto, que se chama assim, porque sai das Feiteiras, do pé da serra, e cai à borda do mar, de um salto grande. Nesta rocha se apanha muita urzela, que é como musgo do mar, e de cor cinzenta, e deita de si tinta azul mais fina que a do pastel; nasce ali nas rochas, junto do mar, cuja granjearia é mui trabalhosa e de muito perigo, porque, dependurados em trinta, quarenta, cinquenta braças de corda, os homens as andam apanhando e morrem muitos deles, caindo pelas rochas. A urzela das Canárias dizem ser melhor que a desta ilha de Santa Maria.

Junto desta ribeira de Água de Alto está uma pequena fajã do Capitão, onde tem prantada vinha de mais de seis anos, que já dá bom vinho. E da ribeira para a banda do Nordeste está outra, da mesma maneira, de João Tomé Velho. Chama-se este posto as Feiteiras, por haver ali muitos feitos, onde têm os herdeiros de João Tomé, o Amo , suas terras, que são muitas do mar à serra. E, ao longo da costa delas, vai correndo a rocha mui alta até as Lagoinhas, que estão perto, e são umas seis ou sete fajãs fundas, a modo de caldeiras, que estão em cima da terra.

De uma furna que está na rocha, ao longo do mar, direito destas Lagoinhas, viram uns pescadores desta ilha de São Miguel, andando lá pescando, sair catorze lobos marinhos que estavam ali como em malhada, e, porque os perseguiam e matavam naquele lugar, algumas vezes os viam, quando se queriam recolher à furna, alevantar as cabeças a ver se viam alguém que os desinquietasse e vigiar como gente de saber e entendimento.

Mais adiante, um quarto de légua, quase defronte destas Lagoinhas dois tiros de besta, ao mar, ao Norte, está um ilhéu pequeno e redondo, que se chama das Lagoinhas, por estar perto e defronte delas, onde desembarcam, mas não vão acima por ser muito alto e íngreme; nele morre muito peixe e há muitos caranguejos, cracas e mais marisco. Do qual ilhéu, inda que esteja ao Norte, está perto o cabo da ilha da parte do Ponente, porque, de Sant’Ana quase até este lugar, faz a ilha testa desta banda. E deste ilhéu das Lagoinhas começa a partir a freguesia de Santa Bárbara, da banda do Norte, e nele fenece a da Vila.

 

EM QUE SE PROSSEGUE A DESCRIÇÃO DA COSTA DA ILHA DE SANTA MARIA, PELA BANDA DO SUL DA VILA DO PORTO PARA A PONTA DE SANTA ANA; E DAÍ VOLTANDO AO NOROESTE, E DEPOIS AO NORDESTE AO ILHÉU DAS LAGOINHAS

Passado o porto e ribeira do Sancho, torna a fazer a rocha volta para o mar até a ponta da Forca, que está nela, da qual ponta à do Marvão, que atrás fica (fazendo ambas enseada do porto da Vila já dita), haverá um quarto de légua ou menos; passada a ponta da Forca, vai a rocha íngreme até uma ribeira seca, que estará dela como três tiros de besta, a qual ribeira não corre senão quando chove muita água, e mete-se no mar em areia grossa, e é rasa e muito perigosa para a terra, por ser aparelhada para nela desembarcarem imigos, pelo que é necessário haver nela grande vigia.

Defronte desta ribeira, ao Sul da terra, para o mar, está o ilhéu da Vila, redondo e de rocha talhada ao redor, mas tem um só passo por onde sobem a ele, o qual tem em cima tanto como quatro alqueires de terra chã e cria erva, que chamam panasco, e outras ervas, antre as quais criam tantos garajaus que se apanham, quando da terra lá vão folgar, por vezes, trezentos, quatrocentos e quinhentos ovos pelo chão; mas, quando algumas pessoas os vão apanhar, se não levarem as cabeças bem cobertas, parece que não tornarão com orelhas quando se recolherem, porque arremetem os garajaus a eles (sic), como abelhas; e são estes ovos melhores e mais sãos que todas as aves. E neste ilhéu há uma calheta pequena, onde varam um e dois barcos.

Passada esta ribeira seca, vai correndo a rocha baixa para a banda de Sant’Ana; a terra, que por cima corre, se chama Abegoaria, porque antigamente havia ali muita abegoaria de madeira. E adiante está o Cabrestante, que é uma ponta de terra que se mete no mar, mas não muito, e por ser rasa e chã por cima, ou por alguma outra razão não sabida, se chama assim o Cabrestante.

Do porto da Vila, correndo ao longo da costa, até esta ponta do Cabrestante, que está a Oeste, estão como quarenta moios de terra, que ficaram por dar, para o concelho, onde criavam os homens seus gados sem pagar coisa alguma. Depois um Sebastião da Costa, por conselho de um certo homem da ilha, que no Reino se quis amigar com ele, pospondo o bem comum de todos os naturais ao particular de um só estrangeiro, pediu a el-Rei a metade destas terras, ficando o concelho com outra meia parte, começando da Vila para a banda do Ponente.

E, desta maneira, comummente pastavam todos nelas seus gados. Mas, depois que as terras se foram desfazendo e descobrindo dos matos que dantes tinham, pediram a el-Rei os regedores da Vila que se pudessem tapar e arrendar para obras do concelho; e assim se arrendaram em pedaços, e os rendeiros as taparam à custa das rendas, fazendo-se nelas seis sarrados, que, depois de ir à ilha o benemérito desembargador Fernão de Pina, digno, enquanto mandou e ordenou nestas ilhas, de perpétua memória, por não ter um só homem o proveito delas, e ser repartido por muitos, e alguns deles pobres, por seu mandado se arrendam a dez, vinte, trinta alqueires a homens que não têm terras para lavrar. E por este modo rendem cada ano quinze até dezoito moios de trigo, quando se lavram todas; e o menos sejam treze moios. E isto tem de renda o concelho da ilha, mas dizem alguns praguentos que luz pouco. Do cabo destes sarrados para diante, estão os de Sebastião da Costa, que já tenho dito, que correm até o Cabrestante. O primeiro rendeiro que trouxe estes sarrados foi um João da Fonte. E porque as informações dos homens variam, declarei isto do princípio, porque é a informação mais certa e passa desta maneira.

Quando se deram as dadas das terras nesta ilha de Santa Maria, de que vou falando, todas corriam do mar à serra, e os que as houveram começaram a roçar de um caminho que agora vai ao mar para Santa Ana, e foram roçando até chegar a estes sarrados, não passando de uns arrifes que aí estão juntos. E como se passou o tempo de cinco anos de sesmaria, ficaram estas terras devolutas, sem dono. O concelho tem pedidos os vinte moios, que tenho dito, a el- Rei, que lhe fez mercê deles para bois e bestas de serviço, e usou alguns anos, não somente dos seus vinte moios, mas também dos vinte que ficaram das dadas.

Estando as coisas nestes termos, indo João da Fonte, acima dito, ao Reino, deu conta destas terras a D. Luís Coutinho, primeiro comendador desta dita ilha, dizendo-lhe que as queria pedir a el-Rei, o qual D. Luís lhe disse que ele não tinha feitos serviços a Sua Alteza para ter aução de pedir esta mercê, mas que ele as pediria para si e depois lhas daria por pouca coisa. Concertados desta maneira, fez D. Luís petição, que deu a Sebastião da Costa, escrivão da Câmara de el-Rei, a qual estando no saco faleceu D. Luís, e achando-a o escrivão já sem requerente, pediu as terras a el-Rei, o qual lhas deu, com pensão de um quarteiro de trigo cada um ano. Deu, então, este Sebastião da Costa estas terras de arrendamento a João da Fonte por três quarteiros de trigo, sc. um de pensão para el-Rei e meio moio para si; haverá isto como cinquenta anos. Depois houve estas terras um António Monteiro, homem principal da ilha, por moio e meio de trigo. Depois passaram a Amador Vaz Faleiro, por cinco moios. Agora são estes sarrados, de vinte moios de terra, de um genro de Sebastião da Costa, que se chama Sebastião de Brito.

Está partida esta terra em três sarrados: um traz Jorge Carvalho, outro João Gonçalves, outro Miguel de Figueiredo, que arrecada a renda por Sebastião de Brito. Este Carvalho tem feitas casas em que ele e dois genros seus vivem, abaixo das quais, na costa, está um ilhéu pequeno, que tenho dito, que se chama do Vale da Barca.

E logo adiante, no cabo destes sarrados, indo a Loeste, está a ponta que se chama do Cabrestante, onde começam as terras de D. Branca, mulher de João Soares, primeiro Capitão da ilha, depois de seu tio Gonçalo Velho.

Este Cabrestante é uma lomba que corre do mar para o Nordeste, que tem uns arrifes, e por baixo são terras muito chãs e das melhores da ilha. Logo sai ao mar uma ribeira, que se chama do Capitão (porque é sua), de pouca água, que também se diz de Santa Ana, e vem de fontes que nascem no meio desta terra, onde se chama Flor da Rosa, da qual bebem todos os gados da parte das Abegoarias para além, por não haver outra água do caminho de Sant’Ana para baixo. Dão-se por esta costa muitos melões e bons, em fajãs que por ela estão.

Deste ribeiro para trás, até o Cabrestante, tomou D. Branca em terça, para uma capela cada ano e as missas do Natal, com mais muitos foros de casas, que tem no arrabalde da Vila, e anda no morgado, que é o filho do Capitão. E desta ribeira até Nossa Senhora dos Anjos, ao longo do mar, e até meias terras, tudo é do capitão e seus herdeiros. Aqui se fizeram as primeiras casas e quiseram fazer a Vila; e neste lugar se fez também uma igreja no princípio, mas não se sabe de que invocação era. Mas chama-se ali Sant’Ana; pode ser que a igreja seria sua, onde estão ainda covas de trigo e algumas pedras das casas antigas.

Passada a ribeira, espaço de um tiro de besta, está uma pequena praia, tanto como um tiro de pedra de mão, que se chama a Praia dos Lobos, onde saem alguns lobos marinhos a dormir em uma furna, que ali tem defronte. E logo está uma ermida de Nossa Senhora dos Anjos, muito fresca e graciosa, da qual ao ilhéu da Vila, que atrás fica, haverá quase uma légua; e na fajã, que fica atrás, se fazem grandes pescarias por todo aquele mar fronteiro, onde soíam pescar barcos de Vila Franca, desta ilha de São Miguel; têm suas cabanas em terra, onde recolhiam muito pescado, antes que costumassem ir pescar às Formigas.

Passada esta Ermida de Nossa Senhora, que está perto do mar, em uma grande e alegre fajã, vem ter a ela, das Fontes do Paúl, uma ribeira de água fresca de todo o ano, antre umas altas ladeiras vestidas de murta e regadas de fontes, que ajudam sua corrente, onde vai ajudando a fresca e nomeada fonte de Duarte Lopes; da Faneca vem e também nela entra.

Onde esta ribeira se mete no mar saiu à costa uma baleia, haverá perto de cinquenta anos, de cujos ossos se pudera fazer uma cabana, em que puderam caber uma dúzia de homens, assentados à vontade.

Logo adiante, um tiro de besta, está um ilhéu que se chama dos Frades, por saírem ali uns que naquela ermida de Nossa Senhora estiveram algum tempo. Passada esta ribeira, antre ela e o mar, se alevanta um pico, que se chama Monte Gordo (terra de bom pão), o qual pela banda do mar é de rocha talhada e mui alta, a que não pode descer nem subir gente; e, assim, vai ter a rocha em redondo, derredor do monte, até tornar perto da dita ribeira, sem se acabar de cortar da terra, com ela fazendo um espinhaço que passa para a Faneca, que se chama Maldegolado, porque, com muito pouco espaço que mais a rocha viera a dar na ribeira, acabara de ficar degolado e apartado aquele pináculo da outra terra, e não ficara antre a ribeira e a rocha um espigão tão íngreme, sem poder passar uma pessoa antre a ribeira e a rocha, que, por isso, lhe puseram este nome de Maldegolado.

Passando avante, vai correndo a rocha da Faneca, alta, íngreme e tão a pique, que nenhuma boa besta chegara com seu tiro do mar acima dela, à superfície da terra. E aqui está uma fonte, que foi de Duarte Lopes de Frielas e do seu nome se chama, no cabo de uma terra que só tem barro vermelho, sem ter verdura, porque, com ser perto de vinte moios de terra, não haverá em toda dois alqueires dela que erva tenha. E no cabo desta altura tem esta fonte, que bota tão grossa água como um grosso punho de uma pessoa, sem haver serra derredor donde aquela água venha, por ser mais alta a fonte que toda esta que está derredor dela, toda muito seca, sem criar erva alguma, senão nalgumas poucas partes, como já disse.

E debaixo desta alta rocha da Faneca, perto desta fonte, está uma furna, que entra muito pela terra dentro e só entram por ela meia légua, com tocha ou candeia, e quanto mais vão por dentro menos ouvem o mar, cuja boca tem altura de duas lanças e uma de largo; é de pedra, por baixo, e, por cima, vai lavrada, a modo de um meio berço de abóbada, como se fora feita por mão de algum oficial extremado.

E parece ser oca e ter com ela concavidade vã toda aquela terra sobre que está a dita fonte, sem se poder entender donde poderá nascer a sua água, por ir esta furna por baixo da Faneca e de outras fontes e ribeiras, acima da qual, dois tiros de besta dentro pela terra, estão as casas do ilustre Capitão Pero Soares e outras que foram de Rui Fernandes de Alpoem, que agora são do bacharel João de Avelar.

Por esta costa, que já vai dando volta à ilha para o Nordeste, por dentro da terra, corre a campina da criação do mesmo Capitão, até a ribeira de Água de Alto, que se chama assim, porque sai das Feiteiras, do pé da serra, e cai à borda do mar, de um salto grande. Nesta rocha se apanha muita urzela, que é como musgo do mar, e de cor cinzenta, e deita de si tinta azul mais fina que a do pastel; nasce ali nas rochas, junto do mar, cuja granjearia é mui trabalhosa e de muito perigo, porque, dependurados em trinta, quarenta, cinquenta braças de corda, os homens as andam apanhando e morrem muitos deles, caindo pelas rochas. A urzela das Canárias dizem ser melhor que a desta ilha de Santa Maria.

Junto desta ribeira de Água de Alto está uma pequena fajã do Capitão, onde tem prantada vinha de mais de seis anos, que já dá bom vinho. E da ribeira para a banda do Nordeste está outra, da mesma maneira, de João Tomé Velho. Chama-se este posto as Feiteiras, por haver ali muitos feitos, onde têm os herdeiros de João Tomé, o Amo , suas terras, que são muitas do mar à serra. E, ao longo da costa delas, vai correndo a rocha mui alta até as Lagoinhas, que estão perto, e são umas seis ou sete fajãs fundas, a modo de caldeiras, que estão em cima da terra.

De uma furna que está na rocha, ao longo do mar, direito destas Lagoinhas, viram uns pescadores desta ilha de São Miguel, andando lá pescando, sair catorze lobos marinhos que estavam ali como em malhada, e, porque os perseguiam e matavam naquele lugar, algumas vezes os viam, quando se queriam recolher à furna, alevantar as cabeças a ver se viam alguém que os desinquietasse e vigiar como gente de saber e entendimento.

Mais adiante, um quarto de légua, quase defronte destas Lagoinhas dois tiros de besta, ao mar, ao Norte, está um ilhéu pequeno e redondo, que se chama das Lagoinhas, por estar perto e defronte delas, onde desembarcam, mas não vão acima por ser muito alto e íngreme; nele morre muito peixe e há muitos caranguejos, cracas e mais marisco. Do qual ilhéu, inda que esteja ao Norte, está perto o cabo da ilha da parte do Ponente, porque, de Sant’Ana quase até este lugar, faz a ilha testa desta banda. E deste ilhéu das Lagoinhas começa a partir a freguesia de Santa Bárbara, da banda do Norte, e nele fenece a da Vila.

 

A ilha de Santa Maria está em altura de trinta e sete graus da parte do Norte setentrional, leste-oeste com o cabo de São Vicente, do Algarve, da qual, se deitarem uma linha direita a Leste, vai dar no dito cabo, do qual, pouco mais ou menos, distará duzentas e cinquenta léguas. Ao Norte dela demora a ilha de São Miguel, em que estamos, porque o morro do Nordeste desta está Norte e Sul com ela, e de toda ela demora ao Sueste do lugar da Povoação doze léguas, de terra a terra, e do porto de Vila Franca dezasseis, e da cidade vinte, de porto a porto.

Tem de compridão três léguas e de largura légua e meia, e por algumas partes uma; e terá em roda pouco mais de seis léguas, quase toda redonda, ou, por melhor dizer, de figura ovada.

Tem a compridão de Leste a Oeste, na parte do Oriente dela, uma ponta baixa ao mar, não comprida, e no cabo dela está um ilhéu redondo e alto, como pináculo, que parece torre ou castelo, e, por ser pequeno em respeito de outro maior, que adiante direi, lhe chamam Castelete. Deste Castelete, que está ao Leste, começa a compridão da ilha até as Lagoinhas, que estão a Oeste, da qual parte faz testa a ilha, das Lagoinhas até Água de Alto, e a Faneca, e Maldegolado (chamado assim pelo espaço que passa dela para a terra ser estreito) e Monte Gordo, assim chamado porque é terra alta e chã e tem feição de gorda. De maneira que, das Lagoinhas a Monte Gordo, não há determinação qual será a ponta da ilha, porque esta testa ou basis, que tem estes quatro nomes, é a ponta dela da parte de Oeste, ficando Monte Gordo da parte do Sul, e as Lagoinhas da parte do Norte desta mesma testa.

De uma parte e doutra, ao longo do Castelete, se acolhem em tempo de tormenta os navios a seu abrigo, dos ventos contrários; e a rocha dele é tão alcantilada, que muitas vezes se salvam ali, deitando a proiz em terra. E pegado nele, da banda do Sul, está uma calheta em que varam barcos e, fora, ancoram navios.

Adiante das calhetas estão algumas fajãs plantadas de vinhas, e no cimo delas, na terra feita, nasce uma fonte, chamada a Fonte Grande, de muita água, que logo na mesma terra se sume e vai por baixo da rocha e fajãs ao longo do mar, sem aparecer senão com a maré vazia; e as fajãs se chamam Fajãs da Fonte Grande, que agora são dos herdeiros de Domingos Fernandes. E esta e outras estão por esta ordem.

Logo, junto do Castelete, está uma ladeira, pela terra dentro, de Cristóvão Vaz Faleiro, que ele houve com o dito Castelete dos herdeiros da Maia, prantada de vinha nova que dá muito e bom vinho, como são quase todos os que cria aquela terra, que são quase como os da ilha da Madeira, por lhe ser semelhante o torrão e salão dela.

Indo do Castelete, pela banda do Sul, para Loeste até umas baixas, que estão debaixo de uma rocha chamada Ruiva, estão algumas fajãs ao longo do mar, a primeira das quais (que está da outra, acima dita, dois tiros de pedra de bom braço, e se chama da Maia, que foi uma honrada mulher de um nobre e rico homem) tem, no princípio, a primeira vinha, que nela prantou um Amador Lourenço, de meias, por lha dar assim Catarina Fernandes, a Maia, com este partido, e depois de prantada e feita, a partiram pelo meio, e a parte que à Maia caiu teve e possuiu até agora um Belchior Fernandes, seu herdeiro, e a do agricultor venderam seus herdeiros a Gaspar Fernandes, sapateiro, parte dela, e a outra tem um deles. Todas estas vinhas darão cada ano cem pipas de vinho, das melhores uvas que há nas ilhas, e dão muita fruta, figos, marmelos e pêssegos.

Daqui vai correndo para o Norte, até junto de Nossa Senhora das Candeias, uma ribeira Grande, que se chama assim, não por ela o ser, mas porque da banda da serra não há outra que tome mais água quando chove; esta corre sempre, no inverno com muita água e no verão com pouca, de algumas fontes que nela se recolhem; tem um salto muito grande na rocha, chegando sobre a Fajã, arriba do qual um tiro de besta estão umas casas antigas, com seu pomar, que foram de Catarina Fernandes, a Maia, chamada assim por ser filha de João da Maia, homem antigo e honrado, e casada com Álvaro Fernandes de Andrade, almoxarife que foi na mesma ilha, do qual ficaram nela os Andrades: Pedro de Andrade, Ana de Andrade, Maria de Andrade, Leonor de Andrade, Inês de Andrade, e outros filhos e filhas destes, que assim se chamam. Foi esta casa, que está perto da rocha, muito rica e abastada, onde estes antigos habitadores dela têm feito muitas esmolas a gente pobre e bom gasalhado aos ricos.

Foi esta Catarina Fernandes filha de Guilhelma Fernandes, que foi filha de África Anes e do sobredito Pedro Anes de Alpoem. Junto destas casas da Maia está um moinho ou azenha, que mói de represa, no inverno, nesta Ribeira Grande, que agora é de Ana de Andrade; a qual ribeira vai pela terra dentro, do Sueste até um pico, que se chama do Cavaleiro, que lhe fica ao Nor-noroeste. E agora é esta fazenda de Manuel Fernandes, filho de Domingos Fernandes.

Tornando à Fajã, logo passado o nascimento da dita ribeira Grande, estão umas vinhas muito grandes e boas, onde se faz o melhor vinho da ilha, que vendeu Pero de Andrade, em vida de sua mãe, que possuía a terra delas, a Pero Gonçalves, o Manso, e Pero Nunes, e outra de Teodósio Faleiro, alguns dos quais a prantaram de vinhas mui formosas e de muitas árvores, haverá perto de vinte anos. Depois de vendida a Pero Nunes e a Pero Gonçalves, o Manso, pôs-lhe demanda um herdeiro da Maia, com a qual se consertou o Manso sobre a sua ametade, largando uma parte ao dito herdeiro, mas o Pero Nunes, seguindo a demanda, foi ao Reino e venceu a causa, de cuja sentença ajudando-se o Manso, se tornou a fazer bravo e vendeu a parte que tinha dado de conserto ao herdeiro diante do corregedor, e está agora por apelação para o Reino, e a outra parte que lhe tinha ficado vendeu a Teodósio Faleiro, acima dito, e ficou sem nada.

Logo pegado na mesma Fajã, está outra vinha de Ana de Andrade e de Miguel Soares, seu genro, a qual venderam a Baltazar Velho de Andrade.

Mais adiante está outra vinha de Diogo Fernandes Faleiro, que ele fez, por ser de seu pai, Domingos Fernandes, que possuía do mar até o meio da terra por esta banda do Sul, terras que foram de Genes Curvelo, homem antigo e honrado na ilha. Este Diogo Fernandes e seus irmãos têm suas casas em cima da rocha, como um tiro de arcabuz fronteiras à Fajã, à qual se desce pela dita rocha por um caminho tão medonho e perigoso de descer, que quem olha para baixo perde a vista dos olhos, pelo que o mesmo caminho, por ser tal, é a guarda da vinha (ainda que não para os ladrões, que enrocham como cabras), da qual seu dono não tirava o vinho senão por mar, por causa da grande aspereza do caminho e agrura da rocha, mas já agora tem caminho de carro; dará esta vinha cada ano vinte pipas de bom vinho.

O mesmo Diogo Fernandes Faleiro tem na sua vinha, no meio da rocha feito, um lagar de uma só pedra, muito bem feito, em que faz todo o seu vinho, e o mesmo, no ano de mil e quinhentos e setenta e nove (porque não é bem passar com silêncio uma obra de tanto louvor), sendo de muita esterilidade, como haviam sido já outros atrás, de que ficaram os moradores da ilha tão atribulados e pobres, que não se podiam manter nela, vendo ele alguns parentes seus em semelhante aflição, os persuadiu que se quisessem sair daquela miséria e se fossem para o Brasil, para o que gastou com eles, provendo-os de todo o necessário para a sua embarcação, duzentos mil réis, e mais não sendo ele tão rico, que pudesse fazer tão grossa esmola, sem notável trabalho seu e despesa de sua fazenda, ajudando-os, e, além da dita despesa, com diligências e ocupações de sua pessoa e dos seus, de sua casa, a embarcar, animando-os com grande fervor e caridade.

Adiante, mais no cabo desta fajã, está um ilhéu que chamam o Castelo, por ser maior que o Castelete, ou o Penedo das Armas, e entra ao mar mais quantidade que ele, fazendo um recanto, como abrigo, onde se acolhem os navios com tempo oeste e noroeste. Deste Castelo ao Castelete, donde comecei, ficando no meio esta fajã, será perto de meia légua de costa a modo de baía, não muito grande, onde morre muito peixe e muitos lagostins e se acham muitas cracas e outros mariscos. Tem seu porto, onde saem batéis a tomar os vinhos que hão-de tirar por mar, porque ao longo dele tem caminho de carro, que corre toda a fajã, tão largo e fácil, que os bois trazem pipa por ele, cuja entrada é bem por junto do Castelo. Dão-se nesta fajã muitos melões, abóboras, pepinos, trigo e cevada, porque tem terra feita, mas as vinhas são em moledais, onde têm seus lagares muito bons; dão muitos figos, marmelos e boas maçãs e tudo o que lhe prantam.

Passando o dito Castelo, está logo junto o porto que se chama a Calheta, onde saem batéis que desta banda pescam, e tem suas cafuas, em que dormem os pescadores e recolhem seu pescado. Adiante está outra fajã, de vinhas mais velhas, que começou a prantar Domingos Fernandes Faleiro, e depois mandou vir da ilha Terceira um Francisco Anes, que lha acabou de prantar, e nela esteve muitos anos, com mulher e filhos; o qual homem, comendo e bebendo com seu suor regradamente, faleceu em idade de mais de cento e dez anos.

Saindo desta fajã para o Norte, nas terras feitas ao Campo da Marcela, por a haver nele, chama-se ali Santo Espírito, onde dizem os antigos que na ilha se disse a primeira missa do Espírito Santo, quando entraram nela, e dali ficou nomear-se ainda hoje em dia esta freguesia de Santo Espírito, sendo ela depois edificada, como agora está, da invocação da Purificação de Nossa Senhora, sem perder aquele nome antigo. E, por não achar neste dito campo conveniente lugar para povoação e vila, se foram a Santa Ana, como direi depois em seu lugar, adiante.

Aqui nesta fajã, pela banda do Ponente, se mete uma enseada à terra, em que está um pico que tem uma rocha mui alta, em cujo recanto está um pequeno porto, e dela, quando a maré é vazia, sai uma formosa água, e muito clara e doce, que se presume ser a da Fonte Grande, que acima na terra se sume e vai ali sair ao nível com o mar, como acima disse.

Deste recanto para o Ponente, onde se chama a Rocha Alta, por ser perto de cento e cinquenta braças de alto e mais, e a mais alta que há na ilha, está outra fajã de terra e vinha, que prantou um Fernão d’Álvares e agora é de seus herdeiros, onde mora Manuel Vaz Feio, natural desta ilha de São Miguel, por casar lá com uma sua filha e ser um dos herdeiros. O qual Fernão d’Álvares se diz que era um homem nobre, rico e abastado, e dizia que da dita sua fajã via a Terra Nova, dando os sinais e figuras dela, e foi casado com uma nobre mulher da geração dos Velhos, e dela teve sete filhos, homens muito lustrosos, cavaleiros, que se exercitavam muito em folgares e cavalarias de cavalos, e algumas filhas. E neste direito ao Norte está a igreja de Nossa Senhora da Purificação, que é a freguesia.

Adiante da dita Rocha Alta, tanto como um quarto de légua, está outra fajã, que se chama a Fajã de Afonso, de vinha, que pode dar três ou quatro pipas de vinho. E, logo além, onde se chama a Lomba da Gardeza, estão outras. E onde se chama o Cardal, estão também outras fajãs de vinhas, que dão três e quatro pipas de vinho, que são dos próprios herdeiros do dito Fernão d’Álvares. E mais avante está outra fajã de vinha, que dá duas pipas de vinho. E aqui se acaba a testada da fazenda que foi de Fernão d’Álvares.

Estas fajãs se chamavam antigamente as Fajãs dos Murtinhos, porque, antes de prantadas de vinhas, davam grandes murtinhos, bons e doces, e tantos, que traziam delas moios deles, pela bondade que tinham, e os ia apanhar muita gente para comer.

Entre estas fajãs está uma ribeira, que corre água todo o ano e se chama da Gardeza, por se chamar assim uma mulher que possuiu estas terras, de uma parte da dita ribeira. Correndo adiante, está uma ribeira chamada dos Eirós ou Esteios. E sai ao mar uma ponta, que se chama de Malbusca, uma légua do Castelete, atrás dito.

Mais adiante, como um tiro de besta, está outra fajã, de Pero Velho, filho que foi de Duarte Nunes, já abaixo do começo da rocha que se chama de Malbusca, cujo sítio, que também se chama Malbusca, como a rocha dele, é da freguesia de Santo Espírito e tem poucos moradores, afastados uns dos outros, como está da Vila uma légua e da sua freguesia meia, que lhe demora a Leste, pela terra dentro, junto do Castelete, onde comecei o princípio da ilha.

Corre esta rocha de Malbusca a pique, ao longo do mar, mui alta e temerosa, da qual se tira urzela, que apanham homens, arriscando suas vidas, metidos em cestos dependurados por cordas atadas em estacas metidas na terra, sobre a rocha, com uma ponta, e na outra atado o cesto em que se metem, e assim vão largando a corda por mão até chegarem onde querem, e, depois que têm seu saco cheio, alam-se pela corda; e outros vão atados pela cinta.

Não pude saber a razão do nome desta rocha de Malbusca, se não lho puseram por nela com tanto trabalho e perigo buscarem os homens e urzela. E logo está a ribeira do Gato, que é muito medonha.

No começo desta rocha de Malbusca, como ia dizendo, está a Fajã de Pero Velho, de mais de dois moios de terra e moledais, a qual foi mato de murtal e pau branco e outro arvoredo; tem vinhas que dão cinquenta pipas de vinho. E tem um ribeiro seco pelo meio, e, no princípio dela, do ribeiro para a banda do Nascente, deu Pero Velho, haverá vinte e quatro anos, um moio dela a Gonçalo Gardez, que a prantasse de meias, a qual prantou e depois partiram. E o dito Gardez e seus filhos possuem a sua parte, que caiu no recanto da rocha, da banda do Nascente, e o Pero Velho a sua, da parte do Ponente, junto de um ribeiro, que corre, de fontes do pé da rocha ao mar, por antre a vinha, e vai ter à porta de um lagar (onde o podem meter dentro por cales), que está feito junto de um porto, que, ainda que é tão estreito que os remos chegam às lagens, entram nos barcos muito à vontade, como de cais a pé enxuto, onde embarcam os vinhos das vinhas, por não haver caminho pela rocha acima, por onde passem os carros.

Nesta mesma fajã, que de ponta a ponta tem uma enseada não grande, fez o dito Pero Velho, que ainda vive, outras vinhas, que, por falecimento de sua mulher, herdaram seus filhos e genros; e, assim, em uma como em outra fajã se dão muitas abobras (sic), melões e pepinos e também algum trigo.

Desta Fajã de Pero Velho até Água de Alto, que já é na praia e será meia légua, vai a rocha, que chamam Ruiva, tão alta e íngreme que faz sombreiro, e com trabalho se podem ter as pombas pousadas nela, da qual cai uma fresca água, que vem de umas fontes de junto da serra e passa perto das casas de Nuno Fernandes e Pero Velho, que com ser pouca, como começa a cair, não dá mais na rocha, senão em baixo no calhau miúdo, salvo se o vento a rebate, e, pela grande altura donde cai, quando abaixo chega, quase toda vai espalhada em gotas. Defronte desta água, ao mar, estão umas baixas, que com a maré vazia quase se pode passar a algumas delas a pé, da terra, e a outras a nado, onde vão muitas vezes a folgar muitos da Vila em barcos, no verão, em uma pequena praia que tem (porque no Inverno bate o mar na rocha), onde acham muitos lagostins e caranguejos, e muito peixe e marisco, e são de muito passatempo.

Passadas as baixas, está a ribeira que chamam Água de Alto, porque dele cai em um pico grande que tem em meia rocha; e dali vai para o mar, vindo da serra, sair no canto de uma praia, da banda do Nascente, onde começam as vinhas da mesma praia, que está mui comprida de areia e começa logo, passando esta ribeira, e acaba pouco mais além de outra.

Da ribeira desta praia para a serra, antre estas duas ribeiras, há ladeiras lançantes e pouco íngremes, em que se fazem searas pelas faldras delas, e no mais são prantadas de vinhas, que foram de Duarte Nunes Velho e dão muito vinho; ficam para a banda da ribeira de Água de Alto, onde se chama Larache, por serem as terras chãs e bem assombradas, como a costa de Larache, de África. Defronte desta ribeira de Água de Alto está um ilhéu pequeno um tiro de pedra da terra. E no cabo destas vinhas de Larache está uma ribeira de todo o ano, que dá no mar, chamada a ribeira do Gato, da qual corre a costa, sem rocha, até a ribeira de Nossa Senhora dos Remédios.

A primeira vinha que houve nesta praia foi uma que fez um homem de Portugal, chamado de alcunha o Albardeiro. E neste canto, onde cai Água de Alto, está uma praia muito pequena, e uma furna nela, em que podem caber duzentos homens; jaz logo uma penedia ao longo do mar, e dela avante vai correndo a praia grande, antre a qual e a rocha está uma vinha de Duarte Nunes, que foi do Albardeiro, que ele depois de feita vendeu a Frei João, vigairo velho, e se foi da ilha.

A esta praia vem sair a outra ribeira, que tenho dito , rasa neste lugar, mas alta por cima da terra , que se chama a do Gato, sem se saber o porquê. Aqui está, junto das outras, outra vinha, que fez o dito Frei João, vigairo velho, irmão do pai de Frei Belchior Homem, depois de serem feitas as de Larache, a qual ele, depois de passado algum tempo, vendeu toda a Duarte Nunes, e agora as possui juntamente Nuno Fernandes, seu filho, e administrador de duas capelas que deixou, a modo de morgado, no filho mais velho, que renderão um ano por outro quinze até dezoito mil réis.

Adiante está outra vinha de um Sebastião Pires, que na ilha mataram os franceses, e agora possui sua mulher e filhos. Desta vinha até uma aldeia, tudo são terras de pão, que poderão ter até moio e meio somente.

Nesta aldeia da Praia, que será de quinze vizinhos, está uma ermida de Nossa Senhora dos Remédios, onde os tiveram muitos enfermos, que, indo ali em romaria, alcançaram saúde.

Diante desta igreja um tiro de pedra vem sair à praia uma ribeira, que se chama da Praia, vindo pelo Farrobo, onde há vinhas e pomares antigos, e outros que agora se prantam, a qual ribeira logo junto desta aldeia se parte em três: na do Farrobo, já dita, que corre do Norte, e outra do Meio, que vai ter a Castelo de Bodes e vem do Nordeste, e outra que traz sua corrente da parte de Lés-nordeste; e todas três não trazem muita água, mas duas delas juntas têm dois moinhos naquela pequena aldeia, que moem com água de ambas, e por isso esta ribeira se chama dos Moinhos da Praia, a qual praia é tudo areia, em que o mar anda sempre de tombo (?) ou de rolo, em uma grande baía de baixos limpos, onde ancoram muitas naus e navios; e dali vai dar em outra fajã de vinhas, que se chama a Prainha, tudo costa de areia, por esta ordem.

Passada esta ribeira, afastada dela como doze até quinze palmos, nasce uma fonte salobra, com estar do mar um tiro de besta, a qual cai de uma bica, onde se têm lavado muitos enfermos e cobram saúde, e, por isto e por estar ali perto da ermida, lhe chamam todos a Fonte de Nossa Senhora.

Correndo mais adiante, passada esta praia, se mete uma rocha não muito alta, nem comprida, e logo dois tiros de arcabuz está outra praia pequena, que se chama a Prainha, por diferença da outra maior, que atrás fica, sobre a qual estão ladeiras com muitas vinhas, uma das quais dizem prantar um Álvaro da Fonte, o Velho, neto de África Anes, homem liberal e honrado, cuja casa foi muito abastada e estalagem de muitos, assim da terra como de fora, e morreu já pobre por ser bom para todos. Esta vinha mandou renovar e prantar Gaspar Garcia, e nela deu um pedaço a Pero Francisco, seu genro, que vendeu o seu quinhão a um Francisco de Medina, ali estante na ilha e morador na da Madeira.

Perto corre a rocha lançada, com outras ladeiras de vinhas, as mais antigas que houve na ilha, por espaço de outros dois tiros de arcabuz, onde se chama o Figueiral, acima das quais vinhas, na rocha, se tira pedra, de que se faz muita cal na terra, a qual não há em nenhuma das outras ilhas dos Açores, ainda que não é tão boa como a que vem de outras partes. Tiramse também ali, na mesma pedreira, pedras de mós de mármore. E antre algumas destas pedras se acham pegadas cascas de marisco, de ameijas (sic) e ostras.

Chama-se o Figueiral, por haver ali muitas figueiras juntas, emboscadas, que dão tão bons figos, e a maior parte longares, que em todas estas ilhas os não há melhores, nem tão bons; mas são já figueiras muito velhas. Nesta fajã estão vinhas que dão uvas primeiro que todas as outras, as quais mandou prantar Álvaro da Fonte, acima dito, que foram as segundas que na ilha se fizeram; e, por estarem mais perto da Vila, fazem pouco vinho nelas, polas levarem a vender, e, se algum vinho se faz, é muito bom. As quais vinhas são agora de Gaspar Álvares e António Curvelo e podem render, forros, a seus donos dez mil réis. Daqui, por espaço de dois tiros de arcabuz, corre a rocha tão baixa que a maior parte se anda, que é de terras que foram de Rui Fernandes de Alpoem e agora são de Belchior de Sousa, filho de João Soares, terceiro Capitão que foi da ilha, onde, junto do mar, como em um capelo antre duas vinhas e a ponta do Marvão, estão duas furnas de greda, uma delas muito grande, assim de comprido como de altura, que se chama a Furna Velha, a que se não acha cabo; da qual (indo com candeias acesas por ser dentro obscura) se tira um barro fino, cinzento como sabão muito macio, que serve para lavar pano de cor, principalmente branco, e tirar nódoas dele; untando-as com a greda branda e mole e pondo o pano a secar ao Sol, secando-se, ele chupa e recolhe em si a graxa, ou azeite, ou qualquer outro licor que fez a nódoa, e, lavando-se depois o mesmo pano, fica sem ela. Junto a esta, está outra furna, que se chama a Nova, por se usar dela depois, em que também se tira mais greda, sem candeia.

Correndo a rocha baixa, perto como dois tiros de besta está uma ponta que se chama do Marvão, por haverem sido as terras acima dela de um Francisco Marvão, que dista mais de uma grande légua, pela terra, da ponta de Malbusca, onde estão as baixas, atrás ditas, e pelo mar menos. E antre estas duas pontas se faz uma grande baía.

EM QUE SE COMEÇA A DESCREVER EM CIRCUITO TODA A COSTA MARÍTIMA DA ILHA DE SANTA MARIA, COM A DISTÂNCIA DAS POVOAÇÕES E MAIS NOTÁVEIS PONTAS E BAÍAS E ILHÉUS QUE HÁ NELA, DO CASTELETE, QUE ESTÁ AO ORIENTE, PELA BANDA SUL, ATÉ A PONTA DO MARVÃO, JUNTO DA VILA DO PORTO

A ilha de Santa Maria está em altura de trinta e sete graus da parte do Norte setentrional, leste-oeste com o cabo de São Vicente, do Algarve, da qual, se deitarem uma linha direita a Leste, vai dar no dito cabo, do qual, pouco mais ou menos, distará duzentas e cinquenta léguas. Ao Norte dela demora a ilha de São Miguel, em que estamos, porque o morro do Nordeste desta está Norte e Sul com ela, e de toda ela demora ao Sueste do lugar da Povoação doze léguas, de terra a terra, e do porto de Vila Franca dezasseis, e da cidade vinte, de porto a porto.

Tem de compridão três léguas e de largura légua e meia, e por algumas partes uma; e terá em roda pouco mais de seis léguas, quase toda redonda, ou, por melhor dizer, de figura ovada.

Tem a compridão de Leste a Oeste, na parte do Oriente dela, uma ponta baixa ao mar, não comprida, e no cabo dela está um ilhéu redondo e alto, como pináculo, que parece torre ou castelo, e, por ser pequeno em respeito de outro maior, que adiante direi, lhe chamam Castelete. Deste Castelete, que está ao Leste, começa a compridão da ilha até as Lagoinhas, que estão a Oeste, da qual parte faz testa a ilha, das Lagoinhas até Água de Alto, e a Faneca, e Maldegolado (chamado assim pelo espaço que passa dela para a terra ser estreito) e Monte Gordo, assim chamado porque é terra alta e chã e tem feição de gorda. De maneira que, das Lagoinhas a Monte Gordo, não há determinação qual será a ponta da ilha, porque esta testa ou basis, que tem estes quatro nomes, é a ponta dela da parte de Oeste, ficando Monte Gordo da parte do Sul, e as Lagoinhas da parte do Norte desta mesma testa.

De uma parte e doutra, ao longo do Castelete, se acolhem em tempo de tormenta os navios a seu abrigo, dos ventos contrários; e a rocha dele é tão alcantilada, que muitas vezes se salvam ali, deitando a proiz em terra. E pegado nele, da banda do Sul, está uma calheta em que varam barcos e, fora, ancoram navios.

Adiante das calhetas estão algumas fajãs plantadas de vinhas, e no cimo delas, na terra feita, nasce uma fonte, chamada a Fonte Grande, de muita água, que logo na mesma terra se sume e vai por baixo da rocha e fajãs ao longo do mar, sem aparecer senão com a maré vazia; e as fajãs se chamam Fajãs da Fonte Grande, que agora são dos herdeiros de Domingos Fernandes. E esta e outras estão por esta ordem.

Logo, junto do Castelete, está uma ladeira, pela terra dentro, de Cristóvão Vaz Faleiro, que ele houve com o dito Castelete dos herdeiros da Maia, prantada de vinha nova que dá muito e bom vinho, como são quase todos os que cria aquela terra, que são quase como os da ilha da Madeira, por lhe ser semelhante o torrão e salão dela.

Indo do Castelete, pela banda do Sul, para Loeste até umas baixas, que estão debaixo de uma rocha chamada Ruiva, estão algumas fajãs ao longo do mar, a primeira das quais (que está da outra, acima dita, dois tiros de pedra de bom braço, e se chama da Maia, que foi uma honrada mulher de um nobre e rico homem) tem, no princípio, a primeira vinha, que nela prantou um Amador Lourenço, de meias, por lha dar assim Catarina Fernandes, a Maia, com este partido, e depois de prantada e feita, a partiram pelo meio, e a parte que à Maia caiu teve e possuiu até agora um Belchior Fernandes, seu herdeiro, e a do agricultor venderam seus herdeiros a Gaspar Fernandes, sapateiro, parte dela, e a outra tem um deles. Todas estas vinhas darão cada ano cem pipas de vinho, das melhores uvas que há nas ilhas, e dão muita fruta, figos, marmelos e pêssegos.

Daqui vai correndo para o Norte, até junto de Nossa Senhora das Candeias, uma ribeira Grande, que se chama assim, não por ela o ser, mas porque da banda da serra não há outra que tome mais água quando chove; esta corre sempre, no inverno com muita água e no verão com pouca, de algumas fontes que nela se recolhem; tem um salto muito grande na rocha, chegando sobre a Fajã, arriba do qual um tiro de besta estão umas casas antigas, com seu pomar, que foram de Catarina Fernandes, a Maia, chamada assim por ser filha de João da Maia, homem antigo e honrado, e casada com Álvaro Fernandes de Andrade, almoxarife que foi na mesma ilha, do qual ficaram nela os Andrades: Pedro de Andrade, Ana de Andrade, Maria de Andrade, Leonor de Andrade, Inês de Andrade, e outros filhos e filhas destes, que assim se chamam. Foi esta casa, que está perto da rocha, muito rica e abastada, onde estes antigos habitadores dela têm feito muitas esmolas a gente pobre e bom gasalhado aos ricos.

Foi esta Catarina Fernandes filha de Guilhelma Fernandes, que foi filha de África Anes e do sobredito Pedro Anes de Alpoem. Junto destas casas da Maia está um moinho ou azenha, que mói de represa, no inverno, nesta Ribeira Grande, que agora é de Ana de Andrade; a qual ribeira vai pela terra dentro, do Sueste até um pico, que se chama do Cavaleiro, que lhe fica ao Nor-noroeste. E agora é esta fazenda de Manuel Fernandes, filho de Domingos Fernandes.

Tornando à Fajã, logo passado o nascimento da dita ribeira Grande, estão umas vinhas muito grandes e boas, onde se faz o melhor vinho da ilha, que vendeu Pero de Andrade, em vida de sua mãe, que possuía a terra delas, a Pero Gonçalves, o Manso, e Pero Nunes, e outra de Teodósio Faleiro, alguns dos quais a prantaram de vinhas mui formosas e de muitas árvores, haverá perto de vinte anos. Depois de vendida a Pero Nunes e a Pero Gonçalves, o Manso, pôs-lhe demanda um herdeiro da Maia, com a qual se consertou o Manso sobre a sua ametade, largando uma parte ao dito herdeiro, mas o Pero Nunes, seguindo a demanda, foi ao Reino e venceu a causa, de cuja sentença ajudando-se o Manso, se tornou a fazer bravo e vendeu a parte que tinha dado de conserto ao herdeiro diante do corregedor, e está agora por apelação para o Reino, e a outra parte que lhe tinha ficado vendeu a Teodósio Faleiro, acima dito, e ficou sem nada.

Logo pegado na mesma Fajã, está outra vinha de Ana de Andrade e de Miguel Soares, seu genro, a qual venderam a Baltazar Velho de Andrade.

Mais adiante está outra vinha de Diogo Fernandes Faleiro, que ele fez, por ser de seu pai, Domingos Fernandes, que possuía do mar até o meio da terra por esta banda do Sul, terras que foram de Genes Curvelo, homem antigo e honrado na ilha. Este Diogo Fernandes e seus irmãos têm suas casas em cima da rocha, como um tiro de arcabuz fronteiras à Fajã, à qual se desce pela dita rocha por um caminho tão medonho e perigoso de descer, que quem olha para baixo perde a vista dos olhos, pelo que o mesmo caminho, por ser tal, é a guarda da vinha (ainda que não para os ladrões, que enrocham como cabras), da qual seu dono não tirava o vinho senão por mar, por causa da grande aspereza do caminho e agrura da rocha, mas já agora tem caminho de carro; dará esta vinha cada ano vinte pipas de bom vinho.

O mesmo Diogo Fernandes Faleiro tem na sua vinha, no meio da rocha feito, um lagar de uma só pedra, muito bem feito, em que faz todo o seu vinho, e o mesmo, no ano de mil e quinhentos e setenta e nove (porque não é bem passar com silêncio uma obra de tanto louvor), sendo de muita esterilidade, como haviam sido já outros atrás, de que ficaram os moradores da ilha tão atribulados e pobres, que não se podiam manter nela, vendo ele alguns parentes seus em semelhante aflição, os persuadiu que se quisessem sair daquela miséria e se fossem para o Brasil, para o que gastou com eles, provendo-os de todo o necessário para a sua embarcação, duzentos mil réis, e mais não sendo ele tão rico, que pudesse fazer tão grossa esmola, sem notável trabalho seu e despesa de sua fazenda, ajudando-os, e, além da dita despesa, com diligências e ocupações de sua pessoa e dos seus, de sua casa, a embarcar, animando-os com grande fervor e caridade.

Adiante, mais no cabo desta fajã, está um ilhéu que chamam o Castelo, por ser maior que o Castelete, ou o Penedo das Armas, e entra ao mar mais quantidade que ele, fazendo um recanto, como abrigo, onde se acolhem os navios com tempo oeste e noroeste. Deste Castelo ao Castelete, donde comecei, ficando no meio esta fajã, será perto de meia légua de costa a modo de baía, não muito grande, onde morre muito peixe e muitos lagostins e se acham muitas cracas e outros mariscos. Tem seu porto, onde saem batéis a tomar os vinhos que hão-de tirar por mar, porque ao longo dele tem caminho de carro, que corre toda a fajã, tão largo e fácil, que os bois trazem pipa por ele, cuja entrada é bem por junto do Castelo. Dão-se nesta fajã muitos melões, abóboras, pepinos, trigo e cevada, porque tem terra feita, mas as vinhas são em moledais, onde têm seus lagares muito bons; dão muitos figos, marmelos e boas maçãs e tudo o que lhe prantam.

Passando o dito Castelo, está logo junto o porto que se chama a Calheta, onde saem batéis que desta banda pescam, e tem suas cafuas, em que dormem os pescadores e recolhem seu pescado. Adiante está outra fajã, de vinhas mais velhas, que começou a prantar Domingos Fernandes Faleiro, e depois mandou vir da ilha Terceira um Francisco Anes, que lha acabou de prantar, e nela esteve muitos anos, com mulher e filhos; o qual homem, comendo e bebendo com seu suor regradamente, faleceu em idade de mais de cento e dez anos.

Saindo desta fajã para o Norte, nas terras feitas ao Campo da Marcela, por a haver nele, chama-se ali Santo Espírito, onde dizem os antigos que na ilha se disse a primeira missa do Espírito Santo, quando entraram nela, e dali ficou nomear-se ainda hoje em dia esta freguesia de Santo Espírito, sendo ela depois edificada, como agora está, da invocação da Purificação de Nossa Senhora, sem perder aquele nome antigo. E, por não achar neste dito campo conveniente lugar para povoação e vila, se foram a Santa Ana, como direi depois em seu lugar, adiante.

Aqui nesta fajã, pela banda do Ponente, se mete uma enseada à terra, em que está um pico que tem uma rocha mui alta, em cujo recanto está um pequeno porto, e dela, quando a maré é vazia, sai uma formosa água, e muito clara e doce, que se presume ser a da Fonte Grande, que acima na terra se sume e vai ali sair ao nível com o mar, como acima disse.

Deste recanto para o Ponente, onde se chama a Rocha Alta, por ser perto de cento e cinquenta braças de alto e mais, e a mais alta que há na ilha, está outra fajã de terra e vinha, que prantou um Fernão d’Álvares e agora é de seus herdeiros, onde mora Manuel Vaz Feio, natural desta ilha de São Miguel, por casar lá com uma sua filha e ser um dos herdeiros. O qual Fernão d’Álvares se diz que era um homem nobre, rico e abastado, e dizia que da dita sua fajã via a Terra Nova, dando os sinais e figuras dela, e foi casado com uma nobre mulher da geração dos Velhos, e dela teve sete filhos, homens muito lustrosos, cavaleiros, que se exercitavam muito em folgares e cavalarias de cavalos, e algumas filhas. E neste direito ao Norte está a igreja de Nossa Senhora da Purificação, que é a freguesia.

Adiante da dita Rocha Alta, tanto como um quarto de légua, está outra fajã, que se chama a Fajã de Afonso, de vinha, que pode dar três ou quatro pipas de vinho. E, logo além, onde se chama a Lomba da Gardeza, estão outras. E onde se chama o Cardal, estão também outras fajãs de vinhas, que dão três e quatro pipas de vinho, que são dos próprios herdeiros do dito Fernão d’Álvares. E mais avante está outra fajã de vinha, que dá duas pipas de vinho. E aqui se acaba a testada da fazenda que foi de Fernão d’Álvares.

Estas fajãs se chamavam antigamente as Fajãs dos Murtinhos, porque, antes de prantadas de vinhas, davam grandes murtinhos, bons e doces, e tantos, que traziam delas moios deles, pela bondade que tinham, e os ia apanhar muita gente para comer.

Entre estas fajãs está uma ribeira, que corre água todo o ano e se chama da Gardeza, por se chamar assim uma mulher que possuiu estas terras, de uma parte da dita ribeira. Correndo adiante, está uma ribeira chamada dos Eirós ou Esteios. E sai ao mar uma ponta, que se chama de Malbusca, uma légua do Castelete, atrás dito.

Mais adiante, como um tiro de besta, está outra fajã, de Pero Velho, filho que foi de Duarte Nunes, já abaixo do começo da rocha que se chama de Malbusca, cujo sítio, que também se chama Malbusca, como a rocha dele, é da freguesia de Santo Espírito e tem poucos moradores, afastados uns dos outros, como está da Vila uma légua e da sua freguesia meia, que lhe demora a Leste, pela terra dentro, junto do Castelete, onde comecei o princípio da ilha.

Corre esta rocha de Malbusca a pique, ao longo do mar, mui alta e temerosa, da qual se tira urzela, que apanham homens, arriscando suas vidas, metidos em cestos dependurados por cordas atadas em estacas metidas na terra, sobre a rocha, com uma ponta, e na outra atado o cesto em que se metem, e assim vão largando a corda por mão até chegarem onde querem, e, depois que têm seu saco cheio, alam-se pela corda; e outros vão atados pela cinta.

Não pude saber a razão do nome desta rocha de Malbusca, se não lho puseram por nela com tanto trabalho e perigo buscarem os homens e urzela. E logo está a ribeira do Gato, que é muito medonha.

No começo desta rocha de Malbusca, como ia dizendo, está a Fajã de Pero Velho, de mais de dois moios de terra e moledais, a qual foi mato de murtal e pau branco e outro arvoredo; tem vinhas que dão cinquenta pipas de vinho. E tem um ribeiro seco pelo meio, e, no princípio dela, do ribeiro para a banda do Nascente, deu Pero Velho, haverá vinte e quatro anos, um moio dela a Gonçalo Gardez, que a prantasse de meias, a qual prantou e depois partiram. E o dito Gardez e seus filhos possuem a sua parte, que caiu no recanto da rocha, da banda do Nascente, e o Pero Velho a sua, da parte do Ponente, junto de um ribeiro, que corre, de fontes do pé da rocha ao mar, por antre a vinha, e vai ter à porta de um lagar (onde o podem meter dentro por cales), que está feito junto de um porto, que, ainda que é tão estreito que os remos chegam às lagens, entram nos barcos muito à vontade, como de cais a pé enxuto, onde embarcam os vinhos das vinhas, por não haver caminho pela rocha acima, por onde passem os carros.

Nesta mesma fajã, que de ponta a ponta tem uma enseada não grande, fez o dito Pero Velho, que ainda vive, outras vinhas, que, por falecimento de sua mulher, herdaram seus filhos e genros; e, assim, em uma como em outra fajã se dão muitas abobras (sic), melões e pepinos e também algum trigo.

Desta Fajã de Pero Velho até Água de Alto, que já é na praia e será meia légua, vai a rocha, que chamam Ruiva, tão alta e íngreme que faz sombreiro, e com trabalho se podem ter as pombas pousadas nela, da qual cai uma fresca água, que vem de umas fontes de junto da serra e passa perto das casas de Nuno Fernandes e Pero Velho, que com ser pouca, como começa a cair, não dá mais na rocha, senão em baixo no calhau miúdo, salvo se o vento a rebate, e, pela grande altura donde cai, quando abaixo chega, quase toda vai espalhada em gotas. Defronte desta água, ao mar, estão umas baixas, que com a maré vazia quase se pode passar a algumas delas a pé, da terra, e a outras a nado, onde vão muitas vezes a folgar muitos da Vila em barcos, no verão, em uma pequena praia que tem (porque no Inverno bate o mar na rocha), onde acham muitos lagostins e caranguejos, e muito peixe e marisco, e são de muito passatempo.

Passadas as baixas, está a ribeira que chamam Água de Alto, porque dele cai em um pico grande que tem em meia rocha; e dali vai para o mar, vindo da serra, sair no canto de uma praia, da banda do Nascente, onde começam as vinhas da mesma praia, que está mui comprida de areia e começa logo, passando esta ribeira, e acaba pouco mais além de outra.

Da ribeira desta praia para a serra, antre estas duas ribeiras, há ladeiras lançantes e pouco íngremes, em que se fazem searas pelas faldras delas, e no mais são prantadas de vinhas, que foram de Duarte Nunes Velho e dão muito vinho; ficam para a banda da ribeira de Água de Alto, onde se chama Larache, por serem as terras chãs e bem assombradas, como a costa de Larache, de África. Defronte desta ribeira de Água de Alto está um ilhéu pequeno um tiro de pedra da terra. E no cabo destas vinhas de Larache está uma ribeira de todo o ano, que dá no mar, chamada a ribeira do Gato, da qual corre a costa, sem rocha, até a ribeira de Nossa Senhora dos Remédios.

A primeira vinha que houve nesta praia foi uma que fez um homem de Portugal, chamado de alcunha o Albardeiro. E neste canto, onde cai Água de Alto, está uma praia muito pequena, e uma furna nela, em que podem caber duzentos homens; jaz logo uma penedia ao longo do mar, e dela avante vai correndo a praia grande, antre a qual e a rocha está uma vinha de Duarte Nunes, que foi do Albardeiro, que ele depois de feita vendeu a Frei João, vigairo velho, e se foi da ilha.

A esta praia vem sair a outra ribeira, que tenho dito , rasa neste lugar, mas alta por cima da terra , que se chama a do Gato, sem se saber o porquê. Aqui está, junto das outras, outra vinha, que fez o dito Frei João, vigairo velho, irmão do pai de Frei Belchior Homem, depois de serem feitas as de Larache, a qual ele, depois de passado algum tempo, vendeu toda a Duarte Nunes, e agora as possui juntamente Nuno Fernandes, seu filho, e administrador de duas capelas que deixou, a modo de morgado, no filho mais velho, que renderão um ano por outro quinze até dezoito mil réis.

Adiante está outra vinha de um Sebastião Pires, que na ilha mataram os franceses, e agora possui sua mulher e filhos. Desta vinha até uma aldeia, tudo são terras de pão, que poderão ter até moio e meio somente.

Nesta aldeia da Praia, que será de quinze vizinhos, está uma ermida de Nossa Senhora dos Remédios, onde os tiveram muitos enfermos, que, indo ali em romaria, alcançaram saúde.

Diante desta igreja um tiro de pedra vem sair à praia uma ribeira, que se chama da Praia, vindo pelo Farrobo, onde há vinhas e pomares antigos, e outros que agora se prantam, a qual ribeira logo junto desta aldeia se parte em três: na do Farrobo, já dita, que corre do Norte, e outra do Meio, que vai ter a Castelo de Bodes e vem do Nordeste, e outra que traz sua corrente da parte de Lés-nordeste; e todas três não trazem muita água, mas duas delas juntas têm dois moinhos naquela pequena aldeia, que moem com água de ambas, e por isso esta ribeira se chama dos Moinhos da Praia, a qual praia é tudo areia, em que o mar anda sempre de tombo (?) ou de rolo, em uma grande baía de baixos limpos, onde ancoram muitas naus e navios; e dali vai dar em outra fajã de vinhas, que se chama a Prainha, tudo costa de areia, por esta ordem.

Passada esta ribeira, afastada dela como doze até quinze palmos, nasce uma fonte salobra, com estar do mar um tiro de besta, a qual cai de uma bica, onde se têm lavado muitos enfermos e cobram saúde, e, por isto e por estar ali perto da ermida, lhe chamam todos a Fonte de Nossa Senhora.

Correndo mais adiante, passada esta praia, se mete uma rocha não muito alta, nem comprida, e logo dois tiros de arcabuz está outra praia pequena, que se chama a Prainha, por diferença da outra maior, que atrás fica, sobre a qual estão ladeiras com muitas vinhas, uma das quais dizem prantar um Álvaro da Fonte, o Velho, neto de África Anes, homem liberal e honrado, cuja casa foi muito abastada e estalagem de muitos, assim da terra como de fora, e morreu já pobre por ser bom para todos. Esta vinha mandou renovar e prantar Gaspar Garcia, e nela deu um pedaço a Pero Francisco, seu genro, que vendeu o seu quinhão a um Francisco de Medina, ali estante na ilha e morador na da Madeira.

Perto corre a rocha lançada, com outras ladeiras de vinhas, as mais antigas que houve na ilha, por espaço de outros dois tiros de arcabuz, onde se chama o Figueiral, acima das quais vinhas, na rocha, se tira pedra, de que se faz muita cal na terra, a qual não há em nenhuma das outras ilhas dos Açores, ainda que não é tão boa como a que vem de outras partes. Tiramse também ali, na mesma pedreira, pedras de mós de mármore. E antre algumas destas pedras se acham pegadas cascas de marisco, de ameijas (sic) e ostras.

Chama-se o Figueiral, por haver ali muitas figueiras juntas, emboscadas, que dão tão bons figos, e a maior parte longares, que em todas estas ilhas os não há melhores, nem tão bons; mas são já figueiras muito velhas. Nesta fajã estão vinhas que dão uvas primeiro que todas as outras, as quais mandou prantar Álvaro da Fonte, acima dito, que foram as segundas que na ilha se fizeram; e, por estarem mais perto da Vila, fazem pouco vinho nelas, polas levarem a vender, e, se algum vinho se faz, é muito bom. As quais vinhas são agora de Gaspar Álvares e António Curvelo e podem render, forros, a seus donos dez mil réis. Daqui, por espaço de dois tiros de arcabuz, corre a rocha tão baixa que a maior parte se anda, que é de terras que foram de Rui Fernandes de Alpoem e agora são de Belchior de Sousa, filho de João Soares, terceiro Capitão que foi da ilha, onde, junto do mar, como em um capelo antre duas vinhas e a ponta do Marvão, estão duas furnas de greda, uma delas muito grande, assim de comprido como de altura, que se chama a Furna Velha, a que se não acha cabo; da qual (indo com candeias acesas por ser dentro obscura) se tira um barro fino, cinzento como sabão muito macio, que serve para lavar pano de cor, principalmente branco, e tirar nódoas dele; untando-as com a greda branda e mole e pondo o pano a secar ao Sol, secando-se, ele chupa e recolhe em si a graxa, ou azeite, ou qualquer outro licor que fez a nódoa, e, lavando-se depois o mesmo pano, fica sem ela. Junto a esta, está outra furna, que se chama a Nova, por se usar dela depois, em que também se tira mais greda, sem candeia.

Correndo a rocha baixa, perto como dois tiros de besta está uma ponta que se chama do Marvão, por haverem sido as terras acima dela de um Francisco Marvão, que dista mais de uma grande légua, pela terra, da ponta de Malbusca, onde estão as baixas, atrás ditas, e pelo mar menos. E antre estas duas pontas se faz uma grande baía.

Da ponta do Marvão se vai para o Ocidente, fazendo como baía uma entrada do mar para a terra, onde, de uma légua da serra, vem sair uma ribeira que, pela água que traz abastar para moendas, com que corre todo o ano, do Nordeste ao Su-sudoeste, e pela concavidade e largura que tem, se chama Grande, ainda que entra pouco pela ilha dentro, por se repartir em duas, e as duas em outros regatos e ribeiros, de frescas águas e fontes, que tem muitas da primeira, donde nasce até um tiro de besta do mar, acompanhada de uma banda e outra de muitos matos de murtas e ornada com muitos pomares, vinhas e hortas em ladeiras, que são altas, a maior parte delas, com cuja água moem oito moinhos, e toda corre por pedra até o mar, tirando algumas partes de limos e juncos, que a fazem mais saudosa, em que se fazem poços em que se criam muitos eirós, agriões e rabaças e outras ervas de outra sorte. E vai entrar no mar, em areia muito rasa, onde está um porto que foi o primeiro de que usaram os antigos habitadores da Vila, que ao longo desta ribeira está a dele tomou o nome de Vila do Porto. E chama-se o Porto Velho, por diferença de outro de que se agora servem, e é uma praia muito bem assombrada, que tem um poço, junto do mar, de água doce, onde se tomam muitos eirós e mugens, e, quando o mar anda bravo, entra por ele um pedaço.

Passada esta ribeira, que fica da banda de Leste da Vila, ou, por outro respeito, do Sueste, vem logo da parte de Oeste, ou do Noroeste, por outra razão, correndo também, não com tanta altura como a outra, somente no Inverno de enxurrada, ao longo da Vila, a entrar no mar em areia muito rasa, outra ribeira seca, que se chama do Sancho, porque parece que morou ali algum homem deste nome. E logo junta está outra da mesma maneira, que se chama dos Poços; e ambas vêm ter ao porto Novo, antre os quais portos, Velho e Novo, e ribeiras, a Grande e a do Sancho, está uma subida para um alto, ao nível com a terra, onde está situada a Vila da ilha de Santa Maria, que se chama Vila do Porto, pelo ter ali velho e bom e, depois, novo e melhor e bem assombrado.

Disse acima que uma ribeira está da banda de Leste da Vila, ou do Sueste, por outro respeito, e outra da parte do Noroeste, porque, respeitando a compridão da ilha, que corre Leste-Oeste, lhe fica a Vila da banda do Sudoeste, junto do mar, posta antre estas duas ribeiras, a Ribeira Grande, da banda do Sudoeste, e a Ribeira do Sancho, da parte do Noroeste.

Logo subindo pela ladeira, no princípio da Vila, junto do mar, sobre a rocha, está uma ermida de Nossa Senhora da Concepção, muito fresca, que, de qualquer parte que vem do mar, de fora para o porto, não se vê outra casa primeiro que ela, por boa entrada e estreia.

Tem esta Vila do Porto três ruas compridas, que correm direitas a esta ermida de Nossa Senhora de Concepção e ao porto, as quais começam do adro da igreja principal. A rua do meio, muito larga e formosa e de boa casaria, faz um cotovelo, pelo qual se não vê do adro da igreja principal a ermida da Concepção, que sobre o porto está, o que foi inadvertência dos primeiros edificadores, porque, vendo dali a dita ermida, ficava a rua com muito mais frescura.

As outras duas ruas não são tão povoadas por se antremeterem nelas paredes de muitas hortas e quintais e sarrados (sic), divididas estas três ruas com outras azinhagas e travessas.

Acima da igreja principal, para dentro da terra, ficam algumas casas, as mais delas de palha, em um caminho a modo de rua muito larga, que vai correndo antre sarrados e acabar antes que cheguem a uma ermida de Santo Antão, que está em um alto; da qual ermida para cima, ficam terras de pão e casais de homens que moram fora da Vila espalhados, pelo que tem a Vila mais de cem fogos, e com outros fregueses da mesma Vila, que a ela vêm ouvir missa, há na sua freguesia, que é a principal da ilha, trezentos e setenta e oito fogos, e almas de confissão mais de mil e trezentas . A igreja principal é da invocação da Assunção de Nossa Senhora (por se achar no mesmo dia a ilha), de naves, com quatro piares em vão, e muito bem assombrada, com um altar do apóstolo São Matias, que é padroeiro de toda a ilha, da banda do Evangelho, e outro de Nossa Senhora do Rosairo, da parte da Epístola. Tem também duas capelas, uma da banda do Sul, que mandou fazer Duarte Nunes Velho, com o altar de Jesus; a outra de Rui Fernandes de Alpoem, com o altar de Santa Catarina. Foi arrematada esta igreja Matriz, para se fazerem as paredes dela, a Estêvão da Ponte, por trezentos mil réis, e a carpintaria a João Roiz, carpinteiro, morador em Vila Franca, desta ilha de São Miguel, por noventa até cem mil réis, sendo vereadores na dita Vila, da mesma ilha de Santa Maria, João Tomé e Rui Fernandes, lavradores e homens principais da terra.

Há mais duas igrejas nesta vila, muito boas casas: uma, nomeada Espírito Santo e Misericórdia, onde se fazem muitas obras de caridade; outra de Nossa Senhora da Concepção, que está sobre a rocha e porto, como já disse.

O primeiro vigairo que houve nesta igreja, primeira e principal, foi Pedro Anes Galego, mas este não foi confirmado; serviu somente com carta de cura. Depois veio Frei João Afonso, com carta de confirmação, o qual era homem honrado e rico, e serviu muito tempo, por cujo falecimento houve a igreja Frei Belchior Homem, seu sobrinho, filho de um seu irmão, o qual Frei Belchior renunciou a dita igreja e houve-a um Henrique de Parada, o qual a não serviu, mas deu-a a Frei Fernando Margalho, com pensão de seis mil réis, que lhe pagava cada ano, ficando ele somente com dois moios de trigo, porque não tinha a igreja mais de renda naquele tempo.

Falecendo Frei Fernando, deu a igreja o bispo D. Jorge de Santiago a um Ascêncio Vaz, que nela era beneficiado e ouvidor na ilha, tirando-lhe a pensão dos seis mil réis e acrescentando-lhe outros seis, pelo que ficou com doze mil réis e dois moios de trigo de renda.

Por morte deste Ascêncio Vaz, houve a igreja João Nunes Velho, neto de Duarte Nunes Velho, o qual a serviu como dois anos e meio, sendo bispo D. Manuel de Almada, que lha deu.

Falecido João Nunes Velho, houve a dita igreja Baltazar de Paiva, homem nobre, dos principais desta ilha de São Miguel, e na cidade da Ponta Delgada havia sido cura muitos anos, por lha dar na cidade de Angra o bispo D. Nuno Álvares Pereira, acrescentada em trinta mil réis; e ele a serviu até agora, e foi ouvidor do eclesiástico na dita ilha, como quase ordinariamente o foram todos os vigairos da dita igreja principal, em seu tempo, tirando alguns em que houve alguma mudança e outros serviram este cargo, como depois o teve Belchior Homem e José Gonçalves, beneficiado na dita igreja, e o que ora é vigairo e ouvidor, o licenciado Francisco Álvares, bom letrado e virtuoso .

Pedro Anes, o Galego, que atrás fica dito, foi o primeiro beneficiado que houve nesta igreja; o segundo, um Fernão Afonso; o terceiro, Francisco Ribeiro; o quarto, João Anes; o quinto, Ascêncio Vaz; o sexto, Mendo Roiz; o sétimo, Manuel Afonso; o oitavo, Gaspar Lopes; o nono, Manuel de Andrade; o décimo, Bartolomeu Luís; o undécimo, Pero de Frielas; o duodécimo, Augostinho de Seixas; o décimo terceiro, José Gonçalves, que agora é ouvidor. E estes quatro derradeiros são os que agora servem, todos honrados e bons sacerdotes.

Acima desta igreja, quase defronte dela, está uma formosa fonte de três grandes canos de água, da qualidade de bom vinho, que quanto mais velho tanto mais gostoso, porque, tirada da mãe, quanto mais está fora tanto melhor se faz. E é muito de notar nesta ilha que, sendo tão pequena como é, com esta fonte, há nesta freguesia principal quarenta e cinco fontes, e na freguesia de Nossa Senhora da Serra outras quarenta e cinco, e na de Santa Bárbara vinte e três, que somam cento e treze, e todas estas estão em partes onde se podem aproveitar delas, algumas das quais são grandes e muito formosas e frescas, e a mor parte pequenas, mas correm todo o ano. E pelas rochas, ao longo do mar, há tantas que se não podem contar.

Acima da Vila, há nesta freguesia quatro ermidas: uma de Santo Antão, e mais adiante, pelo caminho, outra de São Pedro, e outra no cabo da ilha, ao Noroeste, de Nossa Senhora dos Anjos, e outra de Nossa Senhora dos Remédios, que já disse atrás, em um lugar que se chama a Praia, ao longo do mar, que fica a Leste da Vila.

É povoada esta Vila e toda a ilha de gente muito honrada, e muitos têm fidalguia por suas progénies, e outros por lianças de casamentos com os Capitães e seus filhos, de que nasceram fidalgos. Todos os homens honrados, naturais da terra, quase geralmente são altos de corpo, bem dispostos e bem proporcionados, de bons e graves rostos e boas fisionomias, presumptuosos (sic) e amigos de honra, como o deve ser qualquer homem honrado, por não fazer coisa menos do que dele se espera. E todos de tão grandes espíritos, que, se saíssem da mãe para África ou lugares de fronteira, fariam sem dúvida feitos honrosos e ganhariam grande nome, mas na ilha não são dados a muito trabalho, pelo que nela não há muitas coisas boas e curiosas que pudera haver, se se deram a isso, com que foram mais ricos do que são, pois a terra de si é fértil, posto que pequena, para tão nobre e tanta gente. As mulheres, pelo conseguinte, da mesma maneira são generosas e nobres, bem postas e discretas, com uma grave formosura e virtude, que lhe acrescenta sua nobreza.

A maior curiosidade que os homens têm, depois de enfadados de seus honestos trabalhos em suas fazendas, é de passatempos de caças na terra e de pescarias no mar, que vão em batéis fazer aos ilhéus, de pássaros e ovos, e outras na terra, e muitos e bons pesqueiros que há pela costa, junto da Vila e ao redor de toda a ilha, até tornar à mesma Vila, como são o de Fernando Afonso, chamado assim deste nome de um beneficiado que nele pescava muitas vezes, e outros que da mesma maneira e por outras razões alcançaram seus nomes, como Gonçalo Aires, o Ruivo, o Pesqueiro Alto, a Ponta da Forca, Malamerenda, o Cação, o Penedo de Lourenço, o Caranguejo, o Furado, a Ribeira Seca, o Poção, as Baixinhas, o Recanto do Ilhéu, o Pregador, o Frade, o Redondo, a Água do Chamusca, a Calheta de Braz Álvares, a Lagem do Barbeiro, a Calheta do Barbeiro, a Calheta do Sardo, a Pedra da Rachada, a Sarnacha, o Monteiro, o Crespo, o Vasco Afonso, Belchior Pais, Francisco Lopes, as Lagens da Fonte dos Vaqueiros, o Pendurado, o Joane, o Vale da Barca, os Mesteres, a Baixa do Lobaio, o Furado, o Cabrestante, Vasco Afonso, o Rosto, o Saltinho, a Barquinha, África Anes, o qual nome se tomou de uma mulher honrada, das primeiras que vieram à ilha, que foi mãe dos Jorges e de outra nobre gente, como já tenho contado; o ilhéu dos Frades, que está em Sant’Ana, da banda do Norte, onde se diz que saíram uns que estiveram ali junto, em Nossa Senhora dos Anjos.

Os Altares, os Corvos, o Pesqueiro de Rui Fernandes, filho da dita África Anes, o Maldegolado, o Pesqueiro do Pau, o Pinheiro, a Pedra Mole, a Ponta da Faneca, o Pesqueiro da Corda, as Baixas da Faneca, a Ribeira de Água de Alto, o Tamujal, as Baixas do Monte Gordo, o Furado de Gonçalo Afonso, o Pesqueiro dos Badejos, Salto de Cais, o Pesqueiro da Vaca, o Miradouro, o Furado, o Penedo Negro, a Ponta de João Luís, a Lagoa, a Ribeira dos Ladeiros, a Furna dos Lobos, a Ponta de Álvaro Pires, o Pesqueiro de João Fernandes, o Pesqueiro de João da Maia, o Pesqueiro de Lourenço Vaz, o Pesqueiro da Grota, o do Morro, o das Polombetas, o Ilhéu dos Matos, o Carregadouro, a Ponta Negra. E não é de tachar irem os homens buscar passatempos no mar, quando enfadam ou faltam os da terra, pois todos são lícitos, feitos sem prejuízo do próximo, e o do mar muito mais, para contemporizar com a fraca natureza, que com coisas diversas se contenta e engana.

DA DESCRIÇÃO DA VILA DO PORTO, DA ILHA DE SANTA MARIA, E DE ALGUMAS COISAS QUE HÁ NELA

Da ponta do Marvão se vai para o Ocidente, fazendo como baía uma entrada do mar para a terra, onde, de uma légua da serra, vem sair uma ribeira que, pela água que traz abastar para moendas, com que corre todo o ano, do Nordeste ao Su-sudoeste, e pela concavidade e largura que tem, se chama Grande, ainda que entra pouco pela ilha dentro, por se repartir em duas, e as duas em outros regatos e ribeiros, de frescas águas e fontes, que tem muitas da primeira, donde nasce até um tiro de besta do mar, acompanhada de uma banda e outra de muitos matos de murtas e ornada com muitos pomares, vinhas e hortas em ladeiras, que são altas, a maior parte delas, com cuja água moem oito moinhos, e toda corre por pedra até o mar, tirando algumas partes de limos e juncos, que a fazem mais saudosa, em que se fazem poços em que se criam muitos eirós, agriões e rabaças e outras ervas de outra sorte. E vai entrar no mar, em areia muito rasa, onde está um porto que foi o primeiro de que usaram os antigos habitadores da Vila, que ao longo desta ribeira está a dele tomou o nome de Vila do Porto. E chama-se o Porto Velho, por diferença de outro de que se agora servem, e é uma praia muito bem assombrada, que tem um poço, junto do mar, de água doce, onde se tomam muitos eirós e mugens, e, quando o mar anda bravo, entra por ele um pedaço.

Passada esta ribeira, que fica da banda de Leste da Vila, ou, por outro respeito, do Sueste, vem logo da parte de Oeste, ou do Noroeste, por outra razão, correndo também, não com tanta altura como a outra, somente no Inverno de enxurrada, ao longo da Vila, a entrar no mar em areia muito rasa, outra ribeira seca, que se chama do Sancho, porque parece que morou ali algum homem deste nome. E logo junta está outra da mesma maneira, que se chama dos Poços; e ambas vêm ter ao porto Novo, antre os quais portos, Velho e Novo, e ribeiras, a Grande e a do Sancho, está uma subida para um alto, ao nível com a terra, onde está situada a Vila da ilha de Santa Maria, que se chama Vila do Porto, pelo ter ali velho e bom e, depois, novo e melhor e bem assombrado.

Disse acima que uma ribeira está da banda de Leste da Vila, ou do Sueste, por outro respeito, e outra da parte do Noroeste, porque, respeitando a compridão da ilha, que corre Leste-Oeste, lhe fica a Vila da banda do Sudoeste, junto do mar, posta antre estas duas ribeiras, a Ribeira Grande, da banda do Sudoeste, e a Ribeira do Sancho, da parte do Noroeste.

Logo subindo pela ladeira, no princípio da Vila, junto do mar, sobre a rocha, está uma ermida de Nossa Senhora da Concepção, muito fresca, que, de qualquer parte que vem do mar, de fora para o porto, não se vê outra casa primeiro que ela, por boa entrada e estreia.

Tem esta Vila do Porto três ruas compridas, que correm direitas a esta ermida de Nossa Senhora de Concepção e ao porto, as quais começam do adro da igreja principal. A rua do meio, muito larga e formosa e de boa casaria, faz um cotovelo, pelo qual se não vê do adro da igreja principal a ermida da Concepção, que sobre o porto está, o que foi inadvertência dos primeiros edificadores, porque, vendo dali a dita ermida, ficava a rua com muito mais frescura.

As outras duas ruas não são tão povoadas por se antremeterem nelas paredes de muitas hortas e quintais e sarrados (sic), divididas estas três ruas com outras azinhagas e travessas.

Acima da igreja principal, para dentro da terra, ficam algumas casas, as mais delas de palha, em um caminho a modo de rua muito larga, que vai correndo antre sarrados e acabar antes que cheguem a uma ermida de Santo Antão, que está em um alto; da qual ermida para cima, ficam terras de pão e casais de homens que moram fora da Vila espalhados, pelo que tem a Vila mais de cem fogos, e com outros fregueses da mesma Vila, que a ela vêm ouvir missa, há na sua freguesia, que é a principal da ilha, trezentos e setenta e oito fogos, e almas de confissão mais de mil e trezentas . A igreja principal é da invocação da Assunção de Nossa Senhora (por se achar no mesmo dia a ilha), de naves, com quatro piares em vão, e muito bem assombrada, com um altar do apóstolo São Matias, que é padroeiro de toda a ilha, da banda do Evangelho, e outro de Nossa Senhora do Rosairo, da parte da Epístola. Tem também duas capelas, uma da banda do Sul, que mandou fazer Duarte Nunes Velho, com o altar de Jesus; a outra de Rui Fernandes de Alpoem, com o altar de Santa Catarina. Foi arrematada esta igreja Matriz, para se fazerem as paredes dela, a Estêvão da Ponte, por trezentos mil réis, e a carpintaria a João Roiz, carpinteiro, morador em Vila Franca, desta ilha de São Miguel, por noventa até cem mil réis, sendo vereadores na dita Vila, da mesma ilha de Santa Maria, João Tomé e Rui Fernandes, lavradores e homens principais da terra.

Há mais duas igrejas nesta vila, muito boas casas: uma, nomeada Espírito Santo e Misericórdia, onde se fazem muitas obras de caridade; outra de Nossa Senhora da Concepção, que está sobre a rocha e porto, como já disse.

O primeiro vigairo que houve nesta igreja, primeira e principal, foi Pedro Anes Galego, mas este não foi confirmado; serviu somente com carta de cura. Depois veio Frei João Afonso, com carta de confirmação, o qual era homem honrado e rico, e serviu muito tempo, por cujo falecimento houve a igreja Frei Belchior Homem, seu sobrinho, filho de um seu irmão, o qual Frei Belchior renunciou a dita igreja e houve-a um Henrique de Parada, o qual a não serviu, mas deu-a a Frei Fernando Margalho, com pensão de seis mil réis, que lhe pagava cada ano, ficando ele somente com dois moios de trigo, porque não tinha a igreja mais de renda naquele tempo.

Falecendo Frei Fernando, deu a igreja o bispo D. Jorge de Santiago a um Ascêncio Vaz, que nela era beneficiado e ouvidor na ilha, tirando-lhe a pensão dos seis mil réis e acrescentando-lhe outros seis, pelo que ficou com doze mil réis e dois moios de trigo de renda.

Por morte deste Ascêncio Vaz, houve a igreja João Nunes Velho, neto de Duarte Nunes Velho, o qual a serviu como dois anos e meio, sendo bispo D. Manuel de Almada, que lha deu.

Falecido João Nunes Velho, houve a dita igreja Baltazar de Paiva, homem nobre, dos principais desta ilha de São Miguel, e na cidade da Ponta Delgada havia sido cura muitos anos, por lha dar na cidade de Angra o bispo D. Nuno Álvares Pereira, acrescentada em trinta mil réis; e ele a serviu até agora, e foi ouvidor do eclesiástico na dita ilha, como quase ordinariamente o foram todos os vigairos da dita igreja principal, em seu tempo, tirando alguns em que houve alguma mudança e outros serviram este cargo, como depois o teve Belchior Homem e José Gonçalves, beneficiado na dita igreja, e o que ora é vigairo e ouvidor, o licenciado Francisco Álvares, bom letrado e virtuoso .

Pedro Anes, o Galego, que atrás fica dito, foi o primeiro beneficiado que houve nesta igreja; o segundo, um Fernão Afonso; o terceiro, Francisco Ribeiro; o quarto, João Anes; o quinto, Ascêncio Vaz; o sexto, Mendo Roiz; o sétimo, Manuel Afonso; o oitavo, Gaspar Lopes; o nono, Manuel de Andrade; o décimo, Bartolomeu Luís; o undécimo, Pero de Frielas; o duodécimo, Augostinho de Seixas; o décimo terceiro, José Gonçalves, que agora é ouvidor. E estes quatro derradeiros são os que agora servem, todos honrados e bons sacerdotes.

Acima desta igreja, quase defronte dela, está uma formosa fonte de três grandes canos de água, da qualidade de bom vinho, que quanto mais velho tanto mais gostoso, porque, tirada da mãe, quanto mais está fora tanto melhor se faz. E é muito de notar nesta ilha que, sendo tão pequena como é, com esta fonte, há nesta freguesia principal quarenta e cinco fontes, e na freguesia de Nossa Senhora da Serra outras quarenta e cinco, e na de Santa Bárbara vinte e três, que somam cento e treze, e todas estas estão em partes onde se podem aproveitar delas, algumas das quais são grandes e muito formosas e frescas, e a mor parte pequenas, mas correm todo o ano. E pelas rochas, ao longo do mar, há tantas que se não podem contar.

Acima da Vila, há nesta freguesia quatro ermidas: uma de Santo Antão, e mais adiante, pelo caminho, outra de São Pedro, e outra no cabo da ilha, ao Noroeste, de Nossa Senhora dos Anjos, e outra de Nossa Senhora dos Remédios, que já disse atrás, em um lugar que se chama a Praia, ao longo do mar, que fica a Leste da Vila.

É povoada esta Vila e toda a ilha de gente muito honrada, e muitos têm fidalguia por suas progénies, e outros por lianças de casamentos com os Capitães e seus filhos, de que nasceram fidalgos. Todos os homens honrados, naturais da terra, quase geralmente são altos de corpo, bem dispostos e bem proporcionados, de bons e graves rostos e boas fisionomias, presumptuosos (sic) e amigos de honra, como o deve ser qualquer homem honrado, por não fazer coisa menos do que dele se espera. E todos de tão grandes espíritos, que, se saíssem da mãe para África ou lugares de fronteira, fariam sem dúvida feitos honrosos e ganhariam grande nome, mas na ilha não são dados a muito trabalho, pelo que nela não há muitas coisas boas e curiosas que pudera haver, se se deram a isso, com que foram mais ricos do que são, pois a terra de si é fértil, posto que pequena, para tão nobre e tanta gente. As mulheres, pelo conseguinte, da mesma maneira são generosas e nobres, bem postas e discretas, com uma grave formosura e virtude, que lhe acrescenta sua nobreza.

A maior curiosidade que os homens têm, depois de enfadados de seus honestos trabalhos em suas fazendas, é de passatempos de caças na terra e de pescarias no mar, que vão em batéis fazer aos ilhéus, de pássaros e ovos, e outras na terra, e muitos e bons pesqueiros que há pela costa, junto da Vila e ao redor de toda a ilha, até tornar à mesma Vila, como são o de Fernando Afonso, chamado assim deste nome de um beneficiado que nele pescava muitas vezes, e outros que da mesma maneira e por outras razões alcançaram seus nomes, como Gonçalo Aires, o Ruivo, o Pesqueiro Alto, a Ponta da Forca, Malamerenda, o Cação, o Penedo de Lourenço, o Caranguejo, o Furado, a Ribeira Seca, o Poção, as Baixinhas, o Recanto do Ilhéu, o Pregador, o Frade, o Redondo, a Água do Chamusca, a Calheta de Braz Álvares, a Lagem do Barbeiro, a Calheta do Barbeiro, a Calheta do Sardo, a Pedra da Rachada, a Sarnacha, o Monteiro, o Crespo, o Vasco Afonso, Belchior Pais, Francisco Lopes, as Lagens da Fonte dos Vaqueiros, o Pendurado, o Joane, o Vale da Barca, os Mesteres, a Baixa do Lobaio, o Furado, o Cabrestante, Vasco Afonso, o Rosto, o Saltinho, a Barquinha, África Anes, o qual nome se tomou de uma mulher honrada, das primeiras que vieram à ilha, que foi mãe dos Jorges e de outra nobre gente, como já tenho contado; o ilhéu dos Frades, que está em Sant’Ana, da banda do Norte, onde se diz que saíram uns que estiveram ali junto, em Nossa Senhora dos Anjos.

Os Altares, os Corvos, o Pesqueiro de Rui Fernandes, filho da dita África Anes, o Maldegolado, o Pesqueiro do Pau, o Pinheiro, a Pedra Mole, a Ponta da Faneca, o Pesqueiro da Corda, as Baixas da Faneca, a Ribeira de Água de Alto, o Tamujal, as Baixas do Monte Gordo, o Furado de Gonçalo Afonso, o Pesqueiro dos Badejos, Salto de Cais, o Pesqueiro da Vaca, o Miradouro, o Furado, o Penedo Negro, a Ponta de João Luís, a Lagoa, a Ribeira dos Ladeiros, a Furna dos Lobos, a Ponta de Álvaro Pires, o Pesqueiro de João Fernandes, o Pesqueiro de João da Maia, o Pesqueiro de Lourenço Vaz, o Pesqueiro da Grota, o do Morro, o das Polombetas, o Ilhéu dos Matos, o Carregadouro, a Ponta Negra. E não é de tachar irem os homens buscar passatempos no mar, quando enfadam ou faltam os da terra, pois todos são lícitos, feitos sem prejuízo do próximo, e o do mar muito mais, para contemporizar com a fraca natureza, que com coisas diversas se contenta e engana.

Merecem as singularíssimas virtudes do senhor D. Luís de Figueiredo ficar em perpétua memória dos que vierem, contra o duro fado do esquecimento, por benefício e obra das boas letras; convida a ilustre cópia do subjecto os altos entendimentos apurados gastar na gravidade da História as suas devidas horas de compor. Movido do resplendor com que se vêem, quis entrar no conto dos que notam com uma linha breve o rio Nilo e quase com um ponto a grande Roma. Neste sumário, que agora lhe presento, direi do nobilíssimo tronco de que procede, da pátria que deu princípio ao nascimento do imortal nome que em as letras tem, dos abalizados serviços a Sua Majestade feitos, do trono e dignidade em que reside, se minhas forças bastarem subir tanto, que venha conseguir o que prometo.

Promovido D. Hierónimo Barreto de ordinário do Funchal à grave prelacia dos Algarves, eram presentes na memória da Católica Majestade os serviços, que nas ilhas dos Açores, metido este senhor no meio das alterações passadas, arriscando pessoa e vida, lhe fizera, e o nome de tantas virtudes e letras, de informações tiradas por ordem dos antepassados Reis, que nos secretos anais do Tombo se guardavam. Respeitadas estas coisas que nele se juntaram, o presentou no bispado das ilhas da Madeira e Porto Santo, deliberado de o levantar, havendo conjunção, a maiores prémios.

Na ilha de Santa Maria, posta no Mar Oceano, no fertilíssimo quinto clima, que no número dos mais de abundância tem o principado, sita na altura do cabo de São Vicente, em trinta e sete graus, nasceu este senhor; certo, pequena na circunferência que a rodeia, grande na honra de ser primeira que lhes ministrou o vital alento com que respiramos. Foram seus progenitores Miguel de Figueiredo de Lemos, fidalgo muito principal dos Figueiredos, que por cominuação (sic) de tempos foram vice-reis, bispos e grandes destes reinos, cuja memória em os sucessores do nome anda com alguma parte do valor passado, e dos Lemos, ilustríssima família de Galiza, que, por socorro vinda à conquista de Portugal, no esforço das armas adquiriu honrosos títulos de grandeza; o qual senhor, deixada sua pátria, trazia requerimento de quem era, e com eles andava com a corte. E por causa de chegado parentesco com D. Filipa de Vilhena, mulher de D. Francisco Coutinho, comendador de Santa Maria, com negócios de muita importância, requerido por eles veio à ilha.

Contente do alegre sítio da formosa terra, movido do singularíssimo parecer e dotes da senhora Inês Nunes Velha, da ilustre descendência dos Costas, que dos Infantes de Aragão trazem o antiquíssimo solar de sua fidalguia, e dos Capitães, que do tempo que se descobriu a ilha, governam e mandam o estado dela, por matrimónio juntos vivem em glória da geração que têm. Esta morosa e eficaz razão obrigou este senhor, pospostos do Reino os despachos e pretensões que tinha, viver em deleitosa paz naquela ilha, sem prosseguir o primeiro intento de servir el-Rei, nem andar na sua corte. Esteve Inês Nunes sem trabalhos de emprenhar os primeiros anos do casamento; devia ser poderosa causa natural que o impedisse, ou que as grandes e raras coisas costumam esperar acomodado tempo para vir ao mundo. Temerosas algumas suas parentas que com a idade corresse juntamente a ocasião do parto, respondia, movida de incógnita e não sabida influência, esperar na misericórdia do Sumo Deus ter filhos, e no número destes um que havia de ser bispo, verdadeiro pronóstico do que agora vemos.

Foi primogénito; veio à luz deste nosso miserável mundo na era do Senhor de mil e quinhentos e quarenta e quatro, a vinte e um de Agosto, celebradíssimo dia de Santo Anastácio, e, por nova regeneração no grémio da Igreja, em o mesmo que aquele grande espantoso bispo Santo Agostinho, com felicíssima vitória do terreno mundo, entrou nos paços da celeste glória. O templo em que recebeu a sagrada água do baptismo se chama Nossa Senhora da Assunção; do mesmo nome é a metropolitana do Funchal em que agora governa a primeira prelacia; são correspondências, a nós secretas, de espantosa e rara maravilha a quem com ânimo curioso as ponderar.

Os primeiros anos de sua tenra idade foram regulados de uma natural modéstia e discrição.

E no tempo que começam outros quase conhecer os pais, deixados por ele os risos da inconstante meninice, entrou no rigor do mestre e da escola; com pronta viveza discorrendo a veracidade das letras, em poucos anos aprendeu a ler, passando a maravilhosa invenção do escrever, poderoso e único remédio contra a miserável perda da memória dos mal lembrados homens. De doze anos começou dar obra aos ásperos preceitos da Gramática, na doutrina de um entendido mestre, que com muito louvor aos filhos dos nobres lia as humanas letras, acquirido (sic) quanto dele se podia alcançar, entender, falar e escrever latim.

Antepondo seu pai as certas esperanças que mostrava ao tenro e vivo amor com que o queria, o mandou a Lisboa ao Colégio de Santo Antão, a estudar Retórica e Grego, ornamento e glória da latina língua. Desembarcado nos braços de seus parentes, nos mimos que todos lhe faziam, espantados em tão pequena idade parecerem tantas mostras do que prometia, entrou nas classes, e com incansável zelo da eloquência, passou em poucos meses os mais antigos e graves delas. E no exercício de compor verso e prosa, excedendo com muito louvor a todos, ganhou os melhores lugares e os prémios. Acabados dois anos, julgado no parecer dos padres meretíssimo de qualquer ciência, mandou seu pai que fosse a Coimbra estudar Cânones, presságio da dignidade que havia depois ter. Não bastaram danadas ocasiões daquela imensa cidade de Lisboa a profanar o casto recolhimento de seu peito, antes, avisado com as mostras da perdição que via, realçou em maior altura de virtude. E metido no meio de tantos males, vivia solitário com só Deus e com os livros.

Chegado à mãe das letras, vendo quanto convinha responderem as mais virtudes à nobreza dos parentes que junto de Coimbra possuem seus morgados, no senhorio de Góes, da Trofa, de Besteiros, de Recardães e outras vilas sitas no contorno, vendo-se no teatro do mundo, ausente do grave entendimento de seu pai, regra em a qual sempre vivera, propôs consigo anexar ao respeito de quem era altíssima cópia de virtudes, e, no preceder dos anos que nas escolas teve, correram sempre juntos recolhimento e gravidade a um quase infinito cuidado de tratar os livros. E, para terem melhor ordem estas coisas e alcançar o fim que pretendia, de toda vontade se resignou no singular valor do príncipe S. Pedro, a que de menino teve particular amor e devação (sic) e com muita instância lhe pedia dispusesse sua vida no verdadeiro caminho da salvação. A grave cópia de tantas obras o levantaram ao cume de um supremo nome.

Nem nos limites sós da Universidade discorreu o resplendor de seus louvores; chegou à notícia dos nossos reis e, além do mar, passou às ilhas que chamamos dos Açores. Nas portas dos Gerais, junto aos mestres, nas conferências postas dos ouvintes, no declarar de textos intrincados, no fácil responder aos argumentos se via nele claro a rara subtileza do engenho e quão bem empregara as horas do estudo.

Nunca o pardo ar da noite o achou fora da casa em que pousava, nem a manhã com a claridade o ergueu da preguiçosa cama em que dormia; mas antecipava recolher-se com a casta modéstia do viver honesto, e com a vigilância do estudo defraudava ao sono o limitado tempo. Passados os mais doctos do seu curso, chegou igualar opositores que no dividoso (sic) Marte das cadeiras têm esperança de conseguir vitória.

Correram nestas coisas cinco anos, tempo em que, publicamente, os que o têm cursado mostram por defendidas conclusões ao rigoroso juízo das Escolas quanto por razão dos livros acquiriram, dificultoso acto no parecer de todos, primeiro público exame que se tem, responder aos argumentos dos doctores e condiscípulos, que pretendem de vencer, incerteza da memória que, divertida, de leve ocasião desaparece, lastimosa vergonha do que sustenta. Vencidos todos estes medos, valorosissimamente defendeu os dificultosos passos das graves conclusões; e por todos foi julgado de uma rara habilidade subtilíssima.

Na reputação deste louvor passou um ano. No sexto, teve o segundo acto mais solene: dentro de vinte e quatro horas interpretar um texto por sorte dado no espantoso número de tantos que os sagrados cânones têm, lição de ponto de uma hora inteira na venerada presença das Escolas, assistindo a pessoa do rector, de pronto responder às dúvidas arguidas de seus mestres e outros que procuram cobrar crédito; e, por fim, o duro escrutínio da provação, votos secretos com que os lentes julgam se admitem ao desejado grau o que sustenta. Temor produz a muitos este exame; neste senhor não houve que temer; seguro com o ímpeto e veemência da lição, tirando do sorteado texto as puras e sinceras conclusões, confundiu das outras o miserável erro; desatou o nó dos argumentos, mostrando o claro sentido da verdade. De modo que por meritíssimo lhe concederam os aprovados graus, sem discrepância, com sumo prazer e aplauso dos circunstantes, dando-lhe faculdade de poder, publicamente, expor e ler nas Escolas quaisquer livros dos sagrados cânones. Os seguintes dois anos que restavam do número dos octo que, por instituto, se requerem de pessoal residência nos estudos, todos empregou no geral das leis, da muita conveniência e parentesco que estes dois direitos em si têm: canónico e civil.

No meio tempo que com infinita vigilância trabalhava penetrar o incerto e duvidoso intento dos legistas, el-Rei D. Sebastião, movido por justíssimos respeitos, deliberou que a ilha de São Miguel, apartada da assistência do prelado, tivesse um eminente e grave homem que, com zelo de justiça, ministrasse o eclesiástico governo. Logo o insulano bispo das Terceiras, D. Gaspar de Faria, por fama que dele teve e estimulado por el-Rei, lhe escreveu viesse possuir o cargo. Negócio era de muita importância, honroso e soberano, se os desegnos de seu intento tiveram os limites postos em fins arrazoados. Acudiram por sua parte os lentes das Escolas, e, quase de comum sentimento, acudiram os ouvintes. Respondeu que aceitar o mando seria interromper o felice curso de seus estudos; acabados eles, faria Nosso Senhor o que fosse mais servido, e o grave entendimento de seu pai lhe dispusesse.

Levado de maior ímpeto de fervor, procurava nestes anos alcançar, por meio do seu amado príncipe São Pedro, despacho de sua salvação, solicitado (sic) com lágrimas o ajudasse conhecer que ordem teria de viver que fosse accepta nos olhos do amor divino. Nestes pensamentos empregava o restante de seus estudos; nestas inteligências ocupava as horas livres do cansado ócio literário. E, como de natureza tivesse aborrecimento grande a vícios profanos seculares, no interior sentia um ignícolo (sic) e devota inclinação do hábito de São Pedro. Entradas as férias (tempo que cessam as escolas e os estudantes, livres do contínuo e áspero jugo das lições, recreiam os ânimos cansados em ocupações honestas), veio a Lisboa visitar D. Luís Coutinho, seu parente, que por morte de D. Francisco Coutinho, seu pai, sucedera no estado da casa e do morgado. Este senhor era um dos mais abalizados mancebos de seu tempo, no brio da pessoa, na cortesania do paço, no conhecimento de latim e matemáticas, que aprendera, na ilustreza do sangue, em todo o Reino principal.

Ambos conferiam e comunicavam seu intento. D. Luís, medindo por vara de prudência humana o valor e crédito de sua pessoa, afirma estar mais à vista da sua nobreza e letras um singular despacho do Desembargo, e, após este, o do Paço, mais altos e subidos fins que podem dar as letras. Facilitava com grande número de senhores que naquele tempo, de sua geração, na corte residia: o Conde de Sortelha, guarda-mor de el-Rei, o Regedor, com tantos filhos, o Barão de Alvito, Duarte Lemos, senhor de Trofa, e outros muitos, que da parte de seu pai o conheciam por parente; e quanto, por via da Ecclesia, primeiro correriam alguns anos que pudesse subir ao alto cume de um bom despacho, incertas esperanças vagarosas, e, entanto, na residência de uma abadia passar vida solitário; probabilidade tinham estas razões e quase convenciam, incerto, no escolher; muitas vezes repugnava antepor o mundano estado, perigoso a aquietação santa do divino bem; e, mal firme, escreveu a seu pai que, pois lhe tocava a resolução do caso, determinasse em breve qual ordem seguiria.

Acabadas as férias, tornou a Coimbra prosseguir o tempo dos estudos, e, com a meditação dos livros, foram nele resfriando as duras lembranças que lhe aconselharam que não fosse clérigo. Deixando tudo nas mãos de Deus, ante quem fervoradas lágrimas de bom desejo alcançam sempre singular remédio, em breve espaço de tempo, das Ilhas lhe deram cartas de seu pai, nas quais o persuadia e brandamente aconselhava que fosse sacerdote, dizendo mandasse logo do ordinário de Coimbra informação da vida, costumes, letras, para lhe poder mandar as reverendas. Resoluto neste parecer, mandou as mais honrosas cláusulas de abonação, que em outras, da mesma sorte, se acham de pessoas principalíssimas; contestes os lentes na suficiência dos estudos, disseram maravilhas, verdade por tantos anos conhecida.

Presentadas que foram ao prelado, com altíssimo espanto ficou vendo tão grande cópia de virtudes a tanta multidão de letras vinculada. Temeroso que, no Reino, os que assistem no governo do Estado lançassem dele mão, tratou com seu pai o mandasse vir, e com eficácia de palavras o queria quase convencer, dizendo que com trazer o filho a suas ilhas se segurava da contínua inquietação de o ter ausente e lograria por espaço de seus dias a sua desejada presença em amorosa paz; e os despachos do Reino eram tais, segundo ele sabia, que os passou tardios e vagarosos de alcançar, e, por fim, perdidas esperanças de nunca mais o ver, ficava em perpétua dor e saudade.

Miguel de Figueiredo, um dos entendidos homens de nosso tempo, respondeu que não parecia razão de o divertir do certo caminho que levava, e em que sua suficiência o pusera, para vir morar as ilhas, honesta sepultura de fidalgos; que no Reino havia e se achavam bastantes prémios a quaisquer virtudes; e que seu irmão, António Lemos, prior de Recardães, pretendia renunciar nele o priorado, que em rendimentos excedia com grandíssima vantagem quanto as ilhas lhe podiam dar, havendo muita cópia de parentes, a cujo parecer o remetera, que aprovaram esta opinião. Desenganado o bispo, determina por outra via buscar meio com que forçado viesse ter às ilhas, dando-lhe licença de tomar no Reino ordens de Epístola e Evangelho, reservando as de missa para si, com desculpa de querer a honra de as dar de sua mão.

Enquanto passavam nas Terceiras estas coisas, acabaram em Coimbra os dois anos de continuar as lições de Leis e, com a licença das ordens que lhe chegou das ilhas, partiu na volta do Porto Alegre tomar as de Epístola do bispo D. André de Noronha, com altíssima devação e reverência de sua vontade própria os votos acceptando, que as sacras tem anexas de pureza e castidade, que perfetissimamente guarda de sua mocidade.

Tornou a Coimbra dar o desejado fim a seus estudos e fez o último acto de aprovação, derradeiro nos trabalhos das Escolas. Espantosa foi a grandeza dele, que por muitos tempos retratado na memória dos ouvintes andou posto. Acabada a obrigação dos cursos e acabados de trilhar os bancos dos Gerais, na Universidade não havia que fazer. E por não querer seguir Escolas, nem perigosas esperanças de pretender cadeiras, com grande mágoa dos estudantes e saudade do apartamento deles, se veio a Lisboa com intento de requerer despacho.

Arribada achou a armada que vai esperar as naus da Índia na derrota das Terceiras; parece desejosa de o levar em si, na qual juntamente arribaram dois seus parentes, que, findos os negócios do Reino, passavam ao descanso de suas casas. Desejosos estes fidalgos de o levar às ilhas, contenderam com as melhores e urgentes palavras que puderam de o persuadir que com eles embarcasse, propondo a cómoda passage (sic) da segura armada, o fácil e brando tornar nela, a deleitosa vista de seus pais e seus irmãos, da sua doce e desejada Pátria, e de todas as mais ilhas, ocupadas nas esperanças de o poder ver. Acrescentavam que, nesta pressurosa viagem, de caminho não interrompia o tardio curso do despacho; antes, recreiado com a suave vista dos seus domésticos, poderia facilitar o grave peso do requerer, e que parecia indigno de quem era tão amoroso e brando, ausente por tantos anos de seus pais, perder a oferecida ocasião de os ir ver, e que, havidos os despachos que esperava, ficaria, porventura, excluído da acomodada conjunção de se embarcar. Movido destas aparências de razões, deu conta a seus parentes que faria; aconselhado por eles que se fosse, logo no mesmo dia embarcou.

Guiaram prósperos ventos, que cursaram, aos levantados mares das Terceiras os nossos armados galeões; desembarcado, de São Miguel em Vila Franca, passados poucos dias de visitas, foi a Santa Maria ver seus pais.

Chegando-se as têmporas de São Mateus, nas quais determinava tomar ordens de Evangelho, passou com este desígnio à Terceira, onde residia o bispo, que o esperava, e agradecer-lhe de o escolher, do número de alguns, no importante cargo de São Miguel, e justificar-se de o não aceitar, movido do parecer de seus parentes, de cuja opinião, por mandado de seu pai, se governava, e por haver muito tempo que intendia esperarem na corte o desejado fim de seus estudos, querendo-se Sua Alteza servir dele; e, posto que, forçado, não pudesse satisfazer em todo a vontade de Sua Senhoria, ficava na obrigação e cargo da mercê que lhe fizera, com tanto amor o eleger na mais iminente (sic) coisa que as ilhas davam, o que, cognoscendo, serviria da vida em qualquer estado que o tempo lho ordenasse.

Muitos eram os conceptos que este prelado tinha da pessoa deste senhor, muito compreendera das relações que vira, muito levou a fama descobridora às orelhas de todas aquelas ilhas; muito mais, sem comparação, se cognecia (sic) de prudência e de valor, quando com ele particularmente se tratava; e foi julgado, do gravíssimo juízo deste bispo, meritíssimo da honra que agora tem. E, com as ordens de Epístola, o fez prior de uma das principais paróquias da Ponta Delgada, em São Miguel, colegiada de suficiente número de benefícios, e o assinou por administrador do eclesiástico foro em toda a ilha. O que ele, importunado de seus domésticos, aceitou, quase convencido do muito amor com que lho pediram.

Mostrou o glorioso Príncipe ser de sua mão feita esta eleição, e a do sagrado nome de São Pedro se chama a mesma freguesia, a fim de na devação afervorado, pudesse por seu meio alcançar outros diferentes títulos de grandeza. Um ano a teve o bispo sem prover, esperando deste senhor a desejada vinda.

Aceitado o cargo, se partiu na volta de São Miguel; chegando no solene dia do miraculoso São Francisco, foi com muito alvoroço recebido e de todos os principais fidalgos visitado, parentes que, da parte de sua mãe, na ilha moram; passados os dias de cumprimentos, ocupado no governo que aceitou, com suma verdade ministrou justiça, reprimiu dos vícios a semente, pacificou os nascidos ódios, castigou delitos, introduziu nos danados ânimos virtudes e reformou a ilha em um novo estado de viver, que, sem ficarem culpas sem castigo, ficavam todos devendo o brando modo de castigar.

Tem este senhor, com outras singularíssimas virtudes de que é dotado — para governo e mando de coisas altas (particular e raríssimo dom da Natureza), não se aquietar a quaisquer razões, inda que prováveis pareçam e aparentes, até que o claro lume da verdade lhe ilustre com seus raios o entendimento, que logo por ele é conhecida.

Ocupado nestas obras boas, serviu-se Deus levar ao descanso da Glória a ditosa alma do bispo D. Gaspar, com grandíssima mágoa e sentimento de todo povo. Ficaram as ilhas sem pastor, e o senhor D. Luís com ordens de Epístola, sem mais graus. Forçado foi tornar ao Reino, e dispostas em concerto suas coisas, havido cómoda passage, se embarcou.

Chegado a salvamento, tomou as sacras ordens que lhe faltavam, e já feito sacerdote, de conselho de seus parentes, falou a el-Rei D. Sebastião, relatando a nobreza de sua pessoa, a dependência dos merecimentos de seus avós, a comum fama de suas letras, os grandes serviços que fizera no administrar do cargo que, de seu mandado, tivera no governo de São Miguel.

El-Rei, que primeiro dele tinha alguns conceptos, com muito amor o agasalhou, mostras grandes de lhe fazer mercê, e o remeteu ao Doctor Paulo Afonso, por cuja mão corriam os despachos, e mandou que desse, segundo ordem destes Reinos, os papéis. Muito folgou o Doctor de o conhecer e, com a natural prudência de que foi dotado, intendeu a correspondência da pessoa a já sabida informação, que do tempo das Escolas se tomara.

Avantajada, depois, foi, e de muito maior crédito e valia, vendo tantos e tão principais senhores, seus parentes, que por ele intercediam. E por o desembargo, que na petição pedia, no igualar ao valor e crédito de quem era, o despachou por capelão-fidalgo com a melhor e mais honrosa moradia que se costuma a dar aos nobles que na Capela servem, enquanto se não oferecia coisa que conformasse com seus quilates.

Levado (havido este despacho) de altos desejos de ver seu tio e do amor e criação que teve nas Escolas, partiu, forçado destas coisas, caminho de Coimbra; com muito alvoroço entrou no antigo domicílio das boas letras, nos Gerais, em que bebeu o leite dos sagrados cânones, na honesta conversação dos estudantes, nas domésticas paredes que, atentas, sem rumor, ouviram as blandas (sic) vozes de quando estudava.

Passados em Coimbra alguns dias, foi a Recardães a ver seu tio, claríssima pessoa, por vida e por costumes, a cuja casa outras vezes fora recrear o cansado corpo de frequentar Escolas e satisfazer a obrigação do parentesco. Em santa e suave companhia passaram os dias que foram juntos; do Céu eram os colóquios e as vontades, quando, por via de parentes, teve da corte aviso que o licenciado Marcos Teixeira, mandado por el-Rei, tirava dele secreta e sumária informação de testemunhas graves; que não era tempo andar ausente do despacho, que, vistos estes termos, estava perto de se concluir.

Despedido com lágrimas do tio, segundo requeria o negócio apressado se veio a Lisboa.

Falou a Marcos Teixeira, que com particular contentamento o avisou que se visse com Paulo Afonso, em cuja mão ficaram seus papéis, e que neles acharia um bom despacho. Procediam estas informações, tiradas de um oculto desegno de el-Rei, disposto a mandar às Índias dois inquisidores ministrar o cargo do Santo Ofício, e os negócios terem expedição melhor.

Entre alguns que de todo Reino igualaram ao preso, de tão supremo mando com multidão de virtudes acquiridas, foi este senhor nomeado por um deles, e logo no Conselho assentado que fosse o presidente; ordenadas estas coisas, restava só saber ao certo de sua vontade, de que a conclusão da ida dependia. Quando se viram o doctor e ele, lhe perguntou se passaria o mar com despacho muito avantajado do que pretendia, em honra e dignidade. Respondeu que, perto, se fosse acomodada parte, sim; em remota, oferecida a perigos de uma comprida e vagarosa viagem, se não atreveria, por indisposto e subjecto a uns erráticos fervores de cólera, que, algumas vezes, o molestam, e das devidas saudades de seus pais, que não sofriam tão longo apartamento.

Pesaroso ficou Paulo Afonso de não aceitar tão eminente e supremo cargo, que se dá por último fim de bastantíssimos serviços; e lhe disse que as inconstâncias do incerto mar mostravam tanto vigor e força nas distâncias que demoravam perto quanto nas afastadas partes da esfera, e que a providência dos homens acudiria com maiores remédios a maiores riscos, e, nas esperanças de um bom despacho, as pessoas de sua qualidade se aventuravam a contínuos trabalhos para ter descanso, e ele, levando o melhor que se podia dar a um homem fidalgo (tendo, no princípio do requerer, o que muitos não alcançam no cabo de grandes anos), parecia ir contra o intento de quem era, e em certo modo retardar o ditoso curso de seu merecimento e resfriar a vontade do Príncipe, desejoso de o levantar a maior prémio.

Quanto ao insulto dos humores que sentia, não ocasionavam navegar a quem fosse gasalhado na melhor câmara da mais segura nau, e que, no seu risonho e alegre aspecto, não se viam alterações mudadas, que denunciassem internos males, antes de uma complexão (sic) digna de quem era. Não bastaram razões ao remover da dura e deliberada opinião, antes assentou de todo de se não embarcar.

Acabados os desegnos da missão e passadas algumas intercadências de tempo, posto que breves, concluíram no Conselho do Estado fosse provido no número dos inquisidores que residem no Santo Ofício destes Reinos, pelo que se escreveu logo ao Cardeal D. Henrique, maior inquisidor nestes Reinos, sobre ele e suas partes; levou este recado o secretário do cargo ao Cardeal, a Évora, detendo-se por alguns dias a resposta, por estar o Infante de caminho, a se ver com Sua Alteza, que o esperava.

Fizeram-se neste meio tempo prestes os navios da armada, que vão às ilhas esperar as naus, em que ele, feito sacerdote, pretendia ir visitar suas ovelhas, e com devotos sacrifícios honrar os piedosos sepulcros de seus maiores. Desejava isto muito; deviam de ser maiores as esperanças dos seus, nas ilhas, de o ver. Tardava a resposta de Évora; na armada havia grande pressa de partir. Metido no meio de dois extremos: a vagarosa vinda do Cardeal e o vento próspero que os convidava. O despachador dizia estar tudo concluído na vinda do Infante, que por momentos se esperava. O tempo tinha as vergas de alto e a gente dentro.

Assentaram que fosse, visto a determinação que mostrava ter de chegar às ilhas, compor necessárias coisas que dizia ficarem lá em aberto; mas, querendo-se Sua Alteza em suficiente cargo de sua pessoa servir dele, logo tornaria. Avindo deste modo, mandou embarcar os pagens e o fato nos navios que estavam para dar à vela.

Sabido dos consultores do Reino que partia e o bispado sede-vacante ficar só, lhe mandaram provisões de que el-Rei era contente da sua sobreintendência em São Miguel e se haveria neste governo, que muito importava por servido, com particular memória de lhe fazer mercê.

Embarcado, as velas quase dadas, pedindo todos a Deus viagem, chegou o Cardeal aquele dia, à tarde, a Lisboa; logo amanhecendo, deram aviso que se não embarcasse, e o acharam embarcado; ele, que todas as suas coisas primeiro conferia, que se deliberasse na resolução do apressado responder; consultado Braz Soares, Capitão de Santa Maria, seu parente, que em sua companhia embarcara, respondeu que, oprimido das angústias do tempo, não era já possíbil tornar a terra, nem desembarcar o fato, recolhido em lugar seguro; mas que tornar seria breve, acabando dar ordem a certas coisas que muito importavam. Ordenava Deus isto a fim de o fazer bispo, que em tantos cargos oferecidos em nenhum quietou, nem aceitar quis, posto que grandes e de singular valor; antes, por ele rejeitados, ficaram sem efeito.

Chegado a Terceira, recebido com sumo contentamento dos insulanos, propôs executar os cargos que levava, com tanta inteireza e verdade de justiça, que mudaram muitos o abuso de seguir os vícios no estado novo de viver quieto.

Enquanto gastava o tempo na reformação dos costumes, foi no Reino provido de (sic) D. Pedro de Castilho por bispo das Terceiras, fidalgo montanhês, de muita erudição e santidade, o qual, depois de poucos dias, vindo ao bispado, morreu o adeão que na Sé servia. Sabia este ordinário quanto no Reino montavam a fama e nobreza deste senhor e o conhecimento das Escolas, em que ambos foram contemporâneos; logo o nomeou na dignidade, avisando el-Rei da promoção; mandou a Roma buscar as letras e, vindas, tomou posse com altíssima satisfação do povo.

Passados neste meio tempo alguns dias, quis D. Pedro, por obrigação do cargo, visitar em pessoa as outras ilhas do bispado, e o levou consigo por visitador, mostrando confiar tanto no uso e entendimento do seu governo, que por igual com ele reapartia o peso de visitar.

Tanto que partiram da Terceira, o mal entendido povo (infelice e abominábil caso), de falsas aparências enganando, errava no conhecimento da verdade com infame parecer, julgando senhor daquele estado quem, de ordinária via de justiça, nele não tinha alguma parte; e cegos na sorte de escolher, de modo confundiram da mísera república a união, que, excluído o verdadeiro jugo do seu Rei, em triste rebelião ficaram postos.

Tomaram estas miseráveis novas do alevantamento das Terceiras ao bispo e a este senhor na sua mesma pátria. Ambos tiveram profundíssimas lágrimas de sentimento; choravam ambos à comum lástima de tanto povo, ambos se doíam de ver uma das mais frequentadas ilhas que o mar inclui, residência do bispado, universal porto do mundo todo, deliberada e posta em se perder.

Logo se tornaram a São Miguel, acomodada parte de acudir aos públicos desatinos do incerto vulgo e conservar na verdadeira e leal opinião aquela, maior no sítio e rendimentos. Em chegando, o fez o bispo vicário (sic) geral e provisor, para com dobradas forças resistir aos iminentes perigos que ameaçavam.

Entanto, os discordes ânimos da Terceira, passados os limites da razão, traziam no mar navios a roubar, metiam na pátria estrangeiros, pagavam à sua custa guarnições, tinham contínua ordem de vigias, fortificavam as praias, impossibilitavam passos que podiam dar entrada aos imigos e, com horrenda confusão de pareceres, ardiam em confusos pareceres.

Juntaram a tantos males maiores outros, roubando os cansados navios que, oprimidos do longo fastio da viagem, demandavam com desejo aquele porto, em refeição e prémio do trabalho.

Vistos tão grandes insultos do infelice gado, procuraram os pastores, por meio de contínuas orações, aplacar a ira do Omnipotente irado e, por humanos meios, restaurar na perdida lealdade os errados entendimentos do miserábil povo. Tentados em vão quaisquer repairos, aplicados remédios sem proveito, nunca fizeram alto em seu desegno (sic); antes da bebida peçonha alienados, tratavam as duras armas em que tinham postas falsas aparências de vitória.

Desconfiados de neles haver emenda, o ordinário bispo avisou que se queria depressa embarcar; havida do Reino a licença, mandaram que ficasse este senhor com o mando do bispado, que por Roma lhe queriam confirmar.

E, esperando-se tempo para ir, e segura embarcação em que passasse, partiu de França D. António, com ajuda de perdidos luteranos, a fortificar de novo aquelas ilhas, que tomaram sua voz e defendiam o injusto nome que lhe tinham dado; e trazia razoada cópia de soldados.

Vindo a São Miguel, achou nele pouco fruto, por causa destes senhores o terem conservado na devida obediência.

Sabidas estas coisas de Sua Majestade, mandou o Marquês de Santa Cruz acudisse aos insultos daquelas ilhas e desbaratasse o imigo, ousando esperar, que lá andava. Satisfez o Marquês a este cargo e, com poder e força de menos velas, desbaratou a armada populosa de França, ficando a maior parte dela nas mãos do vencedor.

Domesticadas em parte estas coisas, o bispo se embarcou. Quisera o senhor D. Luís acompanhá-lo, mas, advertido que a um deles convinha ficar com a pesada carga do governo, se aquietou, e o bispo, delegando nele o poder que tinha, o deixou por universal senhor do eclesiástico foro.

Chegado D. Pedro a Lisboa, deu conta a el-Rei do estado em que ficavam as alterações das ilhas, dos artifícios que ele e este senhor tiveram para abrandar a obstinada dureza dos alevantados, quantos foram os trabalhos que ambos padeceram, quantas vezes arriscaram as vidas na concórdia de tão grandes males; e dizia este prelado que na prudente indústria deste senhor se salvaram muitos do miserábil fogo de rebelião; contentíssimo ficou Sua Majestade de o saber, e entender que na sua mão ficavam as rédeas do bispado.

Enquanto ele nas ilhas se ocupava sacrificar a vida no amor de el-Rei, foi no Reino levantado D. Pedro dos trabalhos passados ao prémio de Leiria, e dada no Conselho ordem que por Roma fosse o senhor D. Luís confirmado na administração das Terceiras.

Enquanto estas coisas corriam desta sorte, não bastou a horrenda vista de tantas mortes, nem o mísero destroço da vencida armada, aos mal intendidos insulanos a renderem as armas na clemência do verdadeiro príncipe; antes, com dobrado ódio da obstinação primeira, rejeitaram os sãos conselhos que deste senhor lhe foram dados e de novo tornaram refazer à perda da rota que tiveram.

Durou um ano inteiro este abominável erro sem ter remédio, até que Sua Majestade, vendo que se tentavam em vão tantos remédios, determinou com rigorosa justiça da espada castigar os principais autores da discórdia e mandou ao mesmo Marquês de Santa Cruz com uma poderosa armada que os vencesse. Chegou primeiro o Marquês a São Miguel, submetida ao mando de Sua Majestade, a tomar inteligência do que passava, e recrear a gente dos trabalhos que tiveram na viagem, e informar-se de alguns ocultos desegnos, se os havia, que fizesse a efeito do negócio.

Assentou convir ao serviço de Sua Majestade ficar o senhor D. Luís em S. Miguel, enquanto a sentença do rigoroso Marte definia a qual das partes convinha ter vitória. Necessitado de ficar, proveu em seu lugar por ouvidor eclesiástico da cidade de Angra ao padre Luís A’lvares de Maiorga, cónego que, então, era da mesma Sé, pessoa de confiança e crédito, digno do cargo que levava.

Tomada por força de armas a Terceira, e vencidos os que nunca se deixaram submeter à eficacíssima força da razão, ficando postos no rigor da guerra e debaixo dos miseráveis insultos dos soldados, sabida a contentíssima nova da vitória, rendidas primeiro graças do sucesso, este senhor se embarcou na volta de Angra. Ao tempo de chegar, achou o Marquês já embarcado; grandes foram as alegrias que tiveram e no pouco espaço que se viram: a muitos fez conceder as vidas no último perigo de chegar a morte, a outros as fazendas, por direito da guerra já perdidas. Tiveram outros, por sua intercessão, os merecidos prémios de sua lealdade. No que tocava ao eclesiástico foro de seu governo, de maneira se houve no executar justiça que, sem ficar algum sem ter castigo, nenhum se agravou da dura pena. A excelência destas obras nos duros pectos dos capitães espanhóis fizeram impressão.

Tanto que a vencedora armada, com próspero sucesso, chegou à desejada praia de Lisboa, nos principais senhores correu logo a veloce fama do que este senhor fizera no serviço de Sua Majestade, e com quanta justiça e santidade regera o canónico mando de sete ilhas, e na singular ordem que inventara em confirmar o povo, ainda mal são da passada chaga, num firme pressuposto de nunca mais cair. Todos prognosticaram os prémios que de tantos serviços se esperavam; o Cardeal , quase vencido do que até os mesmos soldados publicavam das virtudes e saber deste senhor, particularmente o amava, e todos os mais senhores, por cujo entendimento os negócios do Reino se governa, sabidas suas coisas, eram muito seus amigos.

Nos primeiros navios que, depois de reduzida, do Reino foram à Terceira, por cartas do bispo de Leiria e pessoas nobres e parentes, foi deles avisado quanto nos olhos de Sua Majestade eram formosos os serviços que lhe havia feitos e que em breve tempo se veria, no prémio que esperavam, a certeza deles.

Vagara neste meio tempo o bispado de Cepta; logo se suspeitou que o queriam prover nele; mas, sucedendo a vagatura do das ilhas da Madeira e Porto Santo, tão formoso no mundo, o proveu nele, que fora, havia poucos anos, arcebispado de todo o marítimo domínio que os nossos reinos têm em tão remotas partes espalhado. Promulgada a eleição em Março de oitenta e cinco, Sua Majestade o avisou, com muitas palavras de louvor, viesse dar ordem a suas letras.

Chegadas as novas às Terceiras, foram dos insulanos festejadas com sumo alvoroço e estranho gozo; logo a palreira fama, discorrendo, levou por todas as ilhas à comum alegria do bispado a honra universal que lhe era feita, ser de todas elas o primeiro bispo. Misturavam alguns com os plazeres as saudosas lembranças do passado, sincero amor com que os tratara no tempo que com eles residira.

 Havida conjunção de vir à Corte, no mês de Augusto se embarcou em uma armada que da Mina vinha.

Chegado a salvamento, foi recebido do Príncipe Cardeal e mais senhores com altíssimo gasalhado e muitas honras, e de parte de Sua Majestade lhe disseram a boa informação que dele tinha, e quanto foram aceitos seus serviços, e que muita parte deles, excedendo o modo da mercê, ficavam esperando maior prémio. Os que assistem no governo do Estado o recolheram com assaz contentamento; os parentes com infinito amor e gasalhado. Só D. Luís Coutinho não viu este desejado gosto, da rigorosa morte oprimido nos funestos campos do mal fortunado Alcácer.

Puderam-se com razão engrandecer as verdadeiras provas, que em todas ilhas e no Reino se tiraram da antiga ilustre descendência dos seus maiores, por tantas fidedignas testemunhas aprovada, de inumeráveis anos a esta parte virem seus avós sem nota que macular pudesse a conhecida nobreza desta geração, antes perpetuada no valor e honra; nestes Reinos adquiriram títulos de grandes, e, porventura, o que não creio de malícia ou inveja alguém cuidar, que em parte sobrepujam estes louvores da verdade, que se pede na História, de menos resplendor do que escreveu. Busque na Casa do Tombo originais e as verdadeiras fontes dos instrumentos e neles achará o lume certo desta claridade; e, se ainda duvidar, não faz acaso, que da formosura do Febo não abate a miserável vista do animal da noite que, enquanto o dia dura, da luz foge, contente com as trevas do ar pardo. Atónitos ficaram os que as viram: do ilustre tronco de seus avós; da muita erudição de suas letras, de tão vários exames apurada; do saber e entendimento no governo dos anos de seu cargo.

Estas e outras muitas coisas que a Católica Majestade entendia e a Universidade toda, lentes e doctores, com grandíssimo aplauso comprobaram, escreveu ao Sumo Pontífice, quando na prelacia do Funchal o presentou. E nosso Santíssimo Senhor, nas letras em que o declarara por bispo destas ilhas, diz que o levanta a tão supremo lugar de santidade, movido da informação que dele tem, de muita nobreza e fidalguia, e papéis fidedignos destes reinos, nobreza confirmada por testemunho dos dois monarcas que sobre si sustentam o grave peso da religião cristã.

Em Outubro seguinte, partiu para Roma o correio que levou estes recados. A cinco de Março do ano de oitenta e seis chegaram as bulas a Lisboa. No dia seguinte, que foi de Cinza, por ordem do secretário Lopo Soares, lhe foram mandadas as desejadas novas, estando aos ofícios na Ecclésia de Santa Catarina de Monte Sinai. Quis Deus mostrar quanto o agradara ser electo, que com as lembranças que se costumam dar na criação dos Papas, da velocidade da vida, da glória que em fumo se desfaz, de pressurosa passage (sic) a dar conta, no dia em que a nossa Sagrada Mãe celebra com cinza estas memórias lhe foram as letras dadas do bispado, e de licença do Príncipe Cardeal, no último de Março, domingo que fora da Rosa, ele que no suave cheiro da virtude havia de ser outra, com aplauso de toda a Corte, no venerábil mosteiro da Trindade, foi ungido e consagrado.

Muitas foram para dizer, indignas de tão pequeno âmbito de lugar, as coisas deste dia: a majestade do que passou, as sacras cerimónias do ofício, o profundíssimo pego de devação com que foi feito, o quase infinito concurso do mundo abreviado de Lisboa. Alguns, tratando a vida deste senhor na viva voz de seus escritos, dirão estas grandezas por extenso, levando a memória do que passou ao resplandecente Céu eternizada. No soleníssimo acto, presidiu D. Manuel de Seabra, bispo que foi de Cepta e agora o é da Capela, assistentes o novo de Cepta, D. Diogo Correia, e o bispo dezelandês que, ausente do abominábil perigo de Inglaterra, vive em nossos Reinos em paz católica.

Nem só em os divinos ofícios se mostrou a majestade do dia em que foi sagrado; mas, acabados eles, no sumptuoso e magnífico banquete, nas mesas abundantíssimas de pescados, na ordem e aparato que se teve, passou a diversidade de iguarias muito avante de quaisquer desejos, e já, por fim, mostravam as que vinham quanto a pródiga gula inventou.

Acudiu a nossa ilha ao prazer comum com as delícias celebradas de seus mimos, que a fazem em toda a parte nomeada; e com diferente cópia de licores mitigou a sede dos convidados.

Excedia o número de todos a cópia de cento e cinquenta pessoas, nobres e fidalgos, de obrigação de parentesco, D. Hierónimo Coutinho, D. Hierónimo Lobo, D. Emanuel de Castro, D. Afonso de Noronha, e alguns outros; os mais consumiu a dura sorte africana nas casas de Sortelha, do Barão , do Regedor . Tiradas as mesas, descansou sua senhoria do trabalho passado. Recolhido, agradeceu ao Sumo Fazedor a cópia das mercês.

 Mandou logo à ilha tomar posse, foram delegados no negócio D. Francisco Henriques, adeão, e o doctor Gonçalo Gomes, mestre-escola, insignes ambos, um no sangue de seus avós, outro na notícia das sagradas letras. A cinco de Maio, domingo em que se cantava o devotíssimo Evangelho Ego sum Pastor bonus (porque tal havia de ser), tomaram posse na presença da nobreza do Funchal, com muito contentamento de todo povo.

Enquanto se aparelhava uma zabra, que se fazia prestes para o trazer à ilha, foi do Cardeal chamado domingo de Ramos, e com muita devação e majestade fez nesse dia o pontifical da Capela. E, logo, quinta-feira da Semana Santa, administrou com muitas lágrimas os Santos Ofícios na Capela. E dia dos Sagrados Príncipes dos Apóstolos teve outro pontifical. Os mais dias, antes de partir, gastou em procurar mercês ao virtuoso clero do Funchal, ou, com mãos abertas, fazer muitas a quem as demandava.

Aparelhada a zabra, embarcado, ficou na corte um geral e altíssimo sentimento, e a todos seus parentes muita saudade. Veio em sua companhia uma nau que navegava ao comércio do Brasil. Não tiveram no mar vista de cossairos, antes alguns, que juntos destes mares andavam, esperando achar presa, um dia primeiro se acolheram, lançados da boa fortuna deste senhor.

Chegou em pouco tempo a sua ilha, a quatro dias contados de Augusto.

Espantosas foram as alegrias com que no Funchal o receberam, dignas de quem era e dignas da nobreza da cidade. Acrescentou muito no aparato destas festas a presença de Tristão Vaz da Veiga, capitão e governador do Estado de Machico, generalíssimo nas ilhas da Madeira e Porto Santo, que, por ilustreza de sangue, invencíbil ânimo, gravíssimos e espantosos feitos nas partes de Ásia e África, é das mais eminentes e principais pessoas de nossos tempos, que, com muito alvoroço embarcado, o foi buscar ao navio, com outros muitos fidalgos que o seguiram, e João Daranda, capitão do Presídio, foi com ele.

Trazido a terra, na borda de água o esperava o reverendíssimo Cabido e o mais clero do Funchal, os juízes e vereadores, com o resplendor da fidalguia desta ilha; junto deles a companhia de soldados, com infinita multidão de povo de toda sorte. A salva de artilharia que disparou a fortaleza, a roda viva de arcabuzes e mosquetes, o repicar de sinos, danças, festas, invenções, as comuns vozes de alegria, por longo espaço dispergidas (sic), soavam em remotas partes.

Trazia o barco, em que veio a terra, as mais nobres pessoas de toda a ilha e as principais dignidades que o foram lá buscar. Posto em terra, de geolhos, diante da sacra veneração da Cruz, que com gravíssima pompa lhe foi apresentada, acabada, se recolheu em um pálio de brocado, e com grandíssima majestade o levaram ao trono da sua santa Sé, com as costumadas e devidas cerimónias. Prostrado diante do diviníssimo Sacramento, deu imortais graças ao Senhor de o trazer de tantos perigos a seguro e tranquilo porto de descanso e do estranho contentamento, que em todos via, de o terem por prelado e por senhor.

O que mais nesta soleníssima entrada aconteceu, quanto com sua vinda reformou, a brandura e santidade com que procede, as contínuas esmolas que vai dando, as excelentíssimas coisas que tem feitas, o grande e espantoso fruto das pregações, a veemência das palavras, o levar após si os corações, os institutos e leis de reformar, a singular ordem e assento de proceder — fica tudo reservado para mais subida cópia de palavras e autores graves, de maior concepto.

DO CONTRAPONTO QUE FEZ O INSIGNE DOUTOR DANIEL DA COSTA SOBRE A VIDA, COSTUMES E GRANDEZA DE D. LUÍS DE FIGUEIREDO DE LEMOS, BISPO DO FUNCHAL

Merecem as singularíssimas virtudes do senhor D. Luís de Figueiredo ficar em perpétua memória dos que vierem, contra o duro fado do esquecimento, por benefício e obra das boas letras; convida a ilustre cópia do subjecto os altos entendimentos apurados gastar na gravidade da História as suas devidas horas de compor. Movido do resplendor com que se vêem, quis entrar no conto dos que notam com uma linha breve o rio Nilo e quase com um ponto a grande Roma. Neste sumário, que agora lhe presento, direi do nobilíssimo tronco de que procede, da pátria que deu princípio ao nascimento do imortal nome que em as letras tem, dos abalizados serviços a Sua Majestade feitos, do trono e dignidade em que reside, se minhas forças bastarem subir tanto, que venha conseguir o que prometo.

Promovido D. Hierónimo Barreto de ordinário do Funchal à grave prelacia dos Algarves, eram presentes na memória da Católica Majestade os serviços, que nas ilhas dos Açores, metido este senhor no meio das alterações passadas, arriscando pessoa e vida, lhe fizera, e o nome de tantas virtudes e letras, de informações tiradas por ordem dos antepassados Reis, que nos secretos anais do Tombo se guardavam. Respeitadas estas coisas que nele se juntaram, o presentou no bispado das ilhas da Madeira e Porto Santo, deliberado de o levantar, havendo conjunção, a maiores prémios.

Na ilha de Santa Maria, posta no Mar Oceano, no fertilíssimo quinto clima, que no número dos mais de abundância tem o principado, sita na altura do cabo de São Vicente, em trinta e sete graus, nasceu este senhor; certo, pequena na circunferência que a rodeia, grande na honra de ser primeira que lhes ministrou o vital alento com que respiramos. Foram seus progenitores Miguel de Figueiredo de Lemos, fidalgo muito principal dos Figueiredos, que por cominuação (sic) de tempos foram vice-reis, bispos e grandes destes reinos, cuja memória em os sucessores do nome anda com alguma parte do valor passado, e dos Lemos, ilustríssima família de Galiza, que, por socorro vinda à conquista de Portugal, no esforço das armas adquiriu honrosos títulos de grandeza; o qual senhor, deixada sua pátria, trazia requerimento de quem era, e com eles andava com a corte. E por causa de chegado parentesco com D. Filipa de Vilhena, mulher de D. Francisco Coutinho, comendador de Santa Maria, com negócios de muita importância, requerido por eles veio à ilha.

Contente do alegre sítio da formosa terra, movido do singularíssimo parecer e dotes da senhora Inês Nunes Velha, da ilustre descendência dos Costas, que dos Infantes de Aragão trazem o antiquíssimo solar de sua fidalguia, e dos Capitães, que do tempo que se descobriu a ilha, governam e mandam o estado dela, por matrimónio juntos vivem em glória da geração que têm. Esta morosa e eficaz razão obrigou este senhor, pospostos do Reino os despachos e pretensões que tinha, viver em deleitosa paz naquela ilha, sem prosseguir o primeiro intento de servir el-Rei, nem andar na sua corte. Esteve Inês Nunes sem trabalhos de emprenhar os primeiros anos do casamento; devia ser poderosa causa natural que o impedisse, ou que as grandes e raras coisas costumam esperar acomodado tempo para vir ao mundo. Temerosas algumas suas parentas que com a idade corresse juntamente a ocasião do parto, respondia, movida de incógnita e não sabida influência, esperar na misericórdia do Sumo Deus ter filhos, e no número destes um que havia de ser bispo, verdadeiro pronóstico do que agora vemos.

Foi primogénito; veio à luz deste nosso miserável mundo na era do Senhor de mil e quinhentos e quarenta e quatro, a vinte e um de Agosto, celebradíssimo dia de Santo Anastácio, e, por nova regeneração no grémio da Igreja, em o mesmo que aquele grande espantoso bispo Santo Agostinho, com felicíssima vitória do terreno mundo, entrou nos paços da celeste glória. O templo em que recebeu a sagrada água do baptismo se chama Nossa Senhora da Assunção; do mesmo nome é a metropolitana do Funchal em que agora governa a primeira prelacia; são correspondências, a nós secretas, de espantosa e rara maravilha a quem com ânimo curioso as ponderar.

Os primeiros anos de sua tenra idade foram regulados de uma natural modéstia e discrição.

E no tempo que começam outros quase conhecer os pais, deixados por ele os risos da inconstante meninice, entrou no rigor do mestre e da escola; com pronta viveza discorrendo a veracidade das letras, em poucos anos aprendeu a ler, passando a maravilhosa invenção do escrever, poderoso e único remédio contra a miserável perda da memória dos mal lembrados homens. De doze anos começou dar obra aos ásperos preceitos da Gramática, na doutrina de um entendido mestre, que com muito louvor aos filhos dos nobres lia as humanas letras, acquirido (sic) quanto dele se podia alcançar, entender, falar e escrever latim.

Antepondo seu pai as certas esperanças que mostrava ao tenro e vivo amor com que o queria, o mandou a Lisboa ao Colégio de Santo Antão, a estudar Retórica e Grego, ornamento e glória da latina língua. Desembarcado nos braços de seus parentes, nos mimos que todos lhe faziam, espantados em tão pequena idade parecerem tantas mostras do que prometia, entrou nas classes, e com incansável zelo da eloquência, passou em poucos meses os mais antigos e graves delas. E no exercício de compor verso e prosa, excedendo com muito louvor a todos, ganhou os melhores lugares e os prémios. Acabados dois anos, julgado no parecer dos padres meretíssimo de qualquer ciência, mandou seu pai que fosse a Coimbra estudar Cânones, presságio da dignidade que havia depois ter. Não bastaram danadas ocasiões daquela imensa cidade de Lisboa a profanar o casto recolhimento de seu peito, antes, avisado com as mostras da perdição que via, realçou em maior altura de virtude. E metido no meio de tantos males, vivia solitário com só Deus e com os livros.

Chegado à mãe das letras, vendo quanto convinha responderem as mais virtudes à nobreza dos parentes que junto de Coimbra possuem seus morgados, no senhorio de Góes, da Trofa, de Besteiros, de Recardães e outras vilas sitas no contorno, vendo-se no teatro do mundo, ausente do grave entendimento de seu pai, regra em a qual sempre vivera, propôs consigo anexar ao respeito de quem era altíssima cópia de virtudes, e, no preceder dos anos que nas escolas teve, correram sempre juntos recolhimento e gravidade a um quase infinito cuidado de tratar os livros. E, para terem melhor ordem estas coisas e alcançar o fim que pretendia, de toda vontade se resignou no singular valor do príncipe S. Pedro, a que de menino teve particular amor e devação (sic) e com muita instância lhe pedia dispusesse sua vida no verdadeiro caminho da salvação. A grave cópia de tantas obras o levantaram ao cume de um supremo nome.

Nem nos limites sós da Universidade discorreu o resplendor de seus louvores; chegou à notícia dos nossos reis e, além do mar, passou às ilhas que chamamos dos Açores. Nas portas dos Gerais, junto aos mestres, nas conferências postas dos ouvintes, no declarar de textos intrincados, no fácil responder aos argumentos se via nele claro a rara subtileza do engenho e quão bem empregara as horas do estudo.

Nunca o pardo ar da noite o achou fora da casa em que pousava, nem a manhã com a claridade o ergueu da preguiçosa cama em que dormia; mas antecipava recolher-se com a casta modéstia do viver honesto, e com a vigilância do estudo defraudava ao sono o limitado tempo. Passados os mais doctos do seu curso, chegou igualar opositores que no dividoso (sic) Marte das cadeiras têm esperança de conseguir vitória.

Correram nestas coisas cinco anos, tempo em que, publicamente, os que o têm cursado mostram por defendidas conclusões ao rigoroso juízo das Escolas quanto por razão dos livros acquiriram, dificultoso acto no parecer de todos, primeiro público exame que se tem, responder aos argumentos dos doctores e condiscípulos, que pretendem de vencer, incerteza da memória que, divertida, de leve ocasião desaparece, lastimosa vergonha do que sustenta. Vencidos todos estes medos, valorosissimamente defendeu os dificultosos passos das graves conclusões; e por todos foi julgado de uma rara habilidade subtilíssima.

Na reputação deste louvor passou um ano. No sexto, teve o segundo acto mais solene: dentro de vinte e quatro horas interpretar um texto por sorte dado no espantoso número de tantos que os sagrados cânones têm, lição de ponto de uma hora inteira na venerada presença das Escolas, assistindo a pessoa do rector, de pronto responder às dúvidas arguidas de seus mestres e outros que procuram cobrar crédito; e, por fim, o duro escrutínio da provação, votos secretos com que os lentes julgam se admitem ao desejado grau o que sustenta. Temor produz a muitos este exame; neste senhor não houve que temer; seguro com o ímpeto e veemência da lição, tirando do sorteado texto as puras e sinceras conclusões, confundiu das outras o miserável erro; desatou o nó dos argumentos, mostrando o claro sentido da verdade. De modo que por meritíssimo lhe concederam os aprovados graus, sem discrepância, com sumo prazer e aplauso dos circunstantes, dando-lhe faculdade de poder, publicamente, expor e ler nas Escolas quaisquer livros dos sagrados cânones. Os seguintes dois anos que restavam do número dos octo que, por instituto, se requerem de pessoal residência nos estudos, todos empregou no geral das leis, da muita conveniência e parentesco que estes dois direitos em si têm: canónico e civil.

No meio tempo que com infinita vigilância trabalhava penetrar o incerto e duvidoso intento dos legistas, el-Rei D. Sebastião, movido por justíssimos respeitos, deliberou que a ilha de São Miguel, apartada da assistência do prelado, tivesse um eminente e grave homem que, com zelo de justiça, ministrasse o eclesiástico governo. Logo o insulano bispo das Terceiras, D. Gaspar de Faria, por fama que dele teve e estimulado por el-Rei, lhe escreveu viesse possuir o cargo. Negócio era de muita importância, honroso e soberano, se os desegnos de seu intento tiveram os limites postos em fins arrazoados. Acudiram por sua parte os lentes das Escolas, e, quase de comum sentimento, acudiram os ouvintes. Respondeu que aceitar o mando seria interromper o felice curso de seus estudos; acabados eles, faria Nosso Senhor o que fosse mais servido, e o grave entendimento de seu pai lhe dispusesse.

Levado de maior ímpeto de fervor, procurava nestes anos alcançar, por meio do seu amado príncipe São Pedro, despacho de sua salvação, solicitado (sic) com lágrimas o ajudasse conhecer que ordem teria de viver que fosse accepta nos olhos do amor divino. Nestes pensamentos empregava o restante de seus estudos; nestas inteligências ocupava as horas livres do cansado ócio literário. E, como de natureza tivesse aborrecimento grande a vícios profanos seculares, no interior sentia um ignícolo (sic) e devota inclinação do hábito de São Pedro. Entradas as férias (tempo que cessam as escolas e os estudantes, livres do contínuo e áspero jugo das lições, recreiam os ânimos cansados em ocupações honestas), veio a Lisboa visitar D. Luís Coutinho, seu parente, que por morte de D. Francisco Coutinho, seu pai, sucedera no estado da casa e do morgado. Este senhor era um dos mais abalizados mancebos de seu tempo, no brio da pessoa, na cortesania do paço, no conhecimento de latim e matemáticas, que aprendera, na ilustreza do sangue, em todo o Reino principal.

Ambos conferiam e comunicavam seu intento. D. Luís, medindo por vara de prudência humana o valor e crédito de sua pessoa, afirma estar mais à vista da sua nobreza e letras um singular despacho do Desembargo, e, após este, o do Paço, mais altos e subidos fins que podem dar as letras. Facilitava com grande número de senhores que naquele tempo, de sua geração, na corte residia: o Conde de Sortelha, guarda-mor de el-Rei, o Regedor, com tantos filhos, o Barão de Alvito, Duarte Lemos, senhor de Trofa, e outros muitos, que da parte de seu pai o conheciam por parente; e quanto, por via da Ecclesia, primeiro correriam alguns anos que pudesse subir ao alto cume de um bom despacho, incertas esperanças vagarosas, e, entanto, na residência de uma abadia passar vida solitário; probabilidade tinham estas razões e quase convenciam, incerto, no escolher; muitas vezes repugnava antepor o mundano estado, perigoso a aquietação santa do divino bem; e, mal firme, escreveu a seu pai que, pois lhe tocava a resolução do caso, determinasse em breve qual ordem seguiria.

Acabadas as férias, tornou a Coimbra prosseguir o tempo dos estudos, e, com a meditação dos livros, foram nele resfriando as duras lembranças que lhe aconselharam que não fosse clérigo. Deixando tudo nas mãos de Deus, ante quem fervoradas lágrimas de bom desejo alcançam sempre singular remédio, em breve espaço de tempo, das Ilhas lhe deram cartas de seu pai, nas quais o persuadia e brandamente aconselhava que fosse sacerdote, dizendo mandasse logo do ordinário de Coimbra informação da vida, costumes, letras, para lhe poder mandar as reverendas. Resoluto neste parecer, mandou as mais honrosas cláusulas de abonação, que em outras, da mesma sorte, se acham de pessoas principalíssimas; contestes os lentes na suficiência dos estudos, disseram maravilhas, verdade por tantos anos conhecida.

Presentadas que foram ao prelado, com altíssimo espanto ficou vendo tão grande cópia de virtudes a tanta multidão de letras vinculada. Temeroso que, no Reino, os que assistem no governo do Estado lançassem dele mão, tratou com seu pai o mandasse vir, e com eficácia de palavras o queria quase convencer, dizendo que com trazer o filho a suas ilhas se segurava da contínua inquietação de o ter ausente e lograria por espaço de seus dias a sua desejada presença em amorosa paz; e os despachos do Reino eram tais, segundo ele sabia, que os passou tardios e vagarosos de alcançar, e, por fim, perdidas esperanças de nunca mais o ver, ficava em perpétua dor e saudade.

Miguel de Figueiredo, um dos entendidos homens de nosso tempo, respondeu que não parecia razão de o divertir do certo caminho que levava, e em que sua suficiência o pusera, para vir morar as ilhas, honesta sepultura de fidalgos; que no Reino havia e se achavam bastantes prémios a quaisquer virtudes; e que seu irmão, António Lemos, prior de Recardães, pretendia renunciar nele o priorado, que em rendimentos excedia com grandíssima vantagem quanto as ilhas lhe podiam dar, havendo muita cópia de parentes, a cujo parecer o remetera, que aprovaram esta opinião. Desenganado o bispo, determina por outra via buscar meio com que forçado viesse ter às ilhas, dando-lhe licença de tomar no Reino ordens de Epístola e Evangelho, reservando as de missa para si, com desculpa de querer a honra de as dar de sua mão.

Enquanto passavam nas Terceiras estas coisas, acabaram em Coimbra os dois anos de continuar as lições de Leis e, com a licença das ordens que lhe chegou das ilhas, partiu na volta do Porto Alegre tomar as de Epístola do bispo D. André de Noronha, com altíssima devação e reverência de sua vontade própria os votos acceptando, que as sacras tem anexas de pureza e castidade, que perfetissimamente guarda de sua mocidade.

Tornou a Coimbra dar o desejado fim a seus estudos e fez o último acto de aprovação, derradeiro nos trabalhos das Escolas. Espantosa foi a grandeza dele, que por muitos tempos retratado na memória dos ouvintes andou posto. Acabada a obrigação dos cursos e acabados de trilhar os bancos dos Gerais, na Universidade não havia que fazer. E por não querer seguir Escolas, nem perigosas esperanças de pretender cadeiras, com grande mágoa dos estudantes e saudade do apartamento deles, se veio a Lisboa com intento de requerer despacho.

Arribada achou a armada que vai esperar as naus da Índia na derrota das Terceiras; parece desejosa de o levar em si, na qual juntamente arribaram dois seus parentes, que, findos os negócios do Reino, passavam ao descanso de suas casas. Desejosos estes fidalgos de o levar às ilhas, contenderam com as melhores e urgentes palavras que puderam de o persuadir que com eles embarcasse, propondo a cómoda passage (sic) da segura armada, o fácil e brando tornar nela, a deleitosa vista de seus pais e seus irmãos, da sua doce e desejada Pátria, e de todas as mais ilhas, ocupadas nas esperanças de o poder ver. Acrescentavam que, nesta pressurosa viagem, de caminho não interrompia o tardio curso do despacho; antes, recreiado com a suave vista dos seus domésticos, poderia facilitar o grave peso do requerer, e que parecia indigno de quem era tão amoroso e brando, ausente por tantos anos de seus pais, perder a oferecida ocasião de os ir ver, e que, havidos os despachos que esperava, ficaria, porventura, excluído da acomodada conjunção de se embarcar. Movido destas aparências de razões, deu conta a seus parentes que faria; aconselhado por eles que se fosse, logo no mesmo dia embarcou.

Guiaram prósperos ventos, que cursaram, aos levantados mares das Terceiras os nossos armados galeões; desembarcado, de São Miguel em Vila Franca, passados poucos dias de visitas, foi a Santa Maria ver seus pais.

Chegando-se as têmporas de São Mateus, nas quais determinava tomar ordens de Evangelho, passou com este desígnio à Terceira, onde residia o bispo, que o esperava, e agradecer-lhe de o escolher, do número de alguns, no importante cargo de São Miguel, e justificar-se de o não aceitar, movido do parecer de seus parentes, de cuja opinião, por mandado de seu pai, se governava, e por haver muito tempo que intendia esperarem na corte o desejado fim de seus estudos, querendo-se Sua Alteza servir dele; e, posto que, forçado, não pudesse satisfazer em todo a vontade de Sua Senhoria, ficava na obrigação e cargo da mercê que lhe fizera, com tanto amor o eleger na mais iminente (sic) coisa que as ilhas davam, o que, cognoscendo, serviria da vida em qualquer estado que o tempo lho ordenasse.

Muitos eram os conceptos que este prelado tinha da pessoa deste senhor, muito compreendera das relações que vira, muito levou a fama descobridora às orelhas de todas aquelas ilhas; muito mais, sem comparação, se cognecia (sic) de prudência e de valor, quando com ele particularmente se tratava; e foi julgado, do gravíssimo juízo deste bispo, meritíssimo da honra que agora tem. E, com as ordens de Epístola, o fez prior de uma das principais paróquias da Ponta Delgada, em São Miguel, colegiada de suficiente número de benefícios, e o assinou por administrador do eclesiástico foro em toda a ilha. O que ele, importunado de seus domésticos, aceitou, quase convencido do muito amor com que lho pediram.

Mostrou o glorioso Príncipe ser de sua mão feita esta eleição, e a do sagrado nome de São Pedro se chama a mesma freguesia, a fim de na devação afervorado, pudesse por seu meio alcançar outros diferentes títulos de grandeza. Um ano a teve o bispo sem prover, esperando deste senhor a desejada vinda.

Aceitado o cargo, se partiu na volta de São Miguel; chegando no solene dia do miraculoso São Francisco, foi com muito alvoroço recebido e de todos os principais fidalgos visitado, parentes que, da parte de sua mãe, na ilha moram; passados os dias de cumprimentos, ocupado no governo que aceitou, com suma verdade ministrou justiça, reprimiu dos vícios a semente, pacificou os nascidos ódios, castigou delitos, introduziu nos danados ânimos virtudes e reformou a ilha em um novo estado de viver, que, sem ficarem culpas sem castigo, ficavam todos devendo o brando modo de castigar.

Tem este senhor, com outras singularíssimas virtudes de que é dotado — para governo e mando de coisas altas (particular e raríssimo dom da Natureza), não se aquietar a quaisquer razões, inda que prováveis pareçam e aparentes, até que o claro lume da verdade lhe ilustre com seus raios o entendimento, que logo por ele é conhecida.

Ocupado nestas obras boas, serviu-se Deus levar ao descanso da Glória a ditosa alma do bispo D. Gaspar, com grandíssima mágoa e sentimento de todo povo. Ficaram as ilhas sem pastor, e o senhor D. Luís com ordens de Epístola, sem mais graus. Forçado foi tornar ao Reino, e dispostas em concerto suas coisas, havido cómoda passage, se embarcou.

Chegado a salvamento, tomou as sacras ordens que lhe faltavam, e já feito sacerdote, de conselho de seus parentes, falou a el-Rei D. Sebastião, relatando a nobreza de sua pessoa, a dependência dos merecimentos de seus avós, a comum fama de suas letras, os grandes serviços que fizera no administrar do cargo que, de seu mandado, tivera no governo de São Miguel.

El-Rei, que primeiro dele tinha alguns conceptos, com muito amor o agasalhou, mostras grandes de lhe fazer mercê, e o remeteu ao Doctor Paulo Afonso, por cuja mão corriam os despachos, e mandou que desse, segundo ordem destes Reinos, os papéis. Muito folgou o Doctor de o conhecer e, com a natural prudência de que foi dotado, intendeu a correspondência da pessoa a já sabida informação, que do tempo das Escolas se tomara.

Avantajada, depois, foi, e de muito maior crédito e valia, vendo tantos e tão principais senhores, seus parentes, que por ele intercediam. E por o desembargo, que na petição pedia, no igualar ao valor e crédito de quem era, o despachou por capelão-fidalgo com a melhor e mais honrosa moradia que se costuma a dar aos nobles que na Capela servem, enquanto se não oferecia coisa que conformasse com seus quilates.

Levado (havido este despacho) de altos desejos de ver seu tio e do amor e criação que teve nas Escolas, partiu, forçado destas coisas, caminho de Coimbra; com muito alvoroço entrou no antigo domicílio das boas letras, nos Gerais, em que bebeu o leite dos sagrados cânones, na honesta conversação dos estudantes, nas domésticas paredes que, atentas, sem rumor, ouviram as blandas (sic) vozes de quando estudava.

Passados em Coimbra alguns dias, foi a Recardães a ver seu tio, claríssima pessoa, por vida e por costumes, a cuja casa outras vezes fora recrear o cansado corpo de frequentar Escolas e satisfazer a obrigação do parentesco. Em santa e suave companhia passaram os dias que foram juntos; do Céu eram os colóquios e as vontades, quando, por via de parentes, teve da corte aviso que o licenciado Marcos Teixeira, mandado por el-Rei, tirava dele secreta e sumária informação de testemunhas graves; que não era tempo andar ausente do despacho, que, vistos estes termos, estava perto de se concluir.

Despedido com lágrimas do tio, segundo requeria o negócio apressado se veio a Lisboa.

Falou a Marcos Teixeira, que com particular contentamento o avisou que se visse com Paulo Afonso, em cuja mão ficaram seus papéis, e que neles acharia um bom despacho. Procediam estas informações, tiradas de um oculto desegno de el-Rei, disposto a mandar às Índias dois inquisidores ministrar o cargo do Santo Ofício, e os negócios terem expedição melhor.

Entre alguns que de todo Reino igualaram ao preso, de tão supremo mando com multidão de virtudes acquiridas, foi este senhor nomeado por um deles, e logo no Conselho assentado que fosse o presidente; ordenadas estas coisas, restava só saber ao certo de sua vontade, de que a conclusão da ida dependia. Quando se viram o doctor e ele, lhe perguntou se passaria o mar com despacho muito avantajado do que pretendia, em honra e dignidade. Respondeu que, perto, se fosse acomodada parte, sim; em remota, oferecida a perigos de uma comprida e vagarosa viagem, se não atreveria, por indisposto e subjecto a uns erráticos fervores de cólera, que, algumas vezes, o molestam, e das devidas saudades de seus pais, que não sofriam tão longo apartamento.

Pesaroso ficou Paulo Afonso de não aceitar tão eminente e supremo cargo, que se dá por último fim de bastantíssimos serviços; e lhe disse que as inconstâncias do incerto mar mostravam tanto vigor e força nas distâncias que demoravam perto quanto nas afastadas partes da esfera, e que a providência dos homens acudiria com maiores remédios a maiores riscos, e, nas esperanças de um bom despacho, as pessoas de sua qualidade se aventuravam a contínuos trabalhos para ter descanso, e ele, levando o melhor que se podia dar a um homem fidalgo (tendo, no princípio do requerer, o que muitos não alcançam no cabo de grandes anos), parecia ir contra o intento de quem era, e em certo modo retardar o ditoso curso de seu merecimento e resfriar a vontade do Príncipe, desejoso de o levantar a maior prémio.

Quanto ao insulto dos humores que sentia, não ocasionavam navegar a quem fosse gasalhado na melhor câmara da mais segura nau, e que, no seu risonho e alegre aspecto, não se viam alterações mudadas, que denunciassem internos males, antes de uma complexão (sic) digna de quem era. Não bastaram razões ao remover da dura e deliberada opinião, antes assentou de todo de se não embarcar.

Acabados os desegnos da missão e passadas algumas intercadências de tempo, posto que breves, concluíram no Conselho do Estado fosse provido no número dos inquisidores que residem no Santo Ofício destes Reinos, pelo que se escreveu logo ao Cardeal D. Henrique, maior inquisidor nestes Reinos, sobre ele e suas partes; levou este recado o secretário do cargo ao Cardeal, a Évora, detendo-se por alguns dias a resposta, por estar o Infante de caminho, a se ver com Sua Alteza, que o esperava.

Fizeram-se neste meio tempo prestes os navios da armada, que vão às ilhas esperar as naus, em que ele, feito sacerdote, pretendia ir visitar suas ovelhas, e com devotos sacrifícios honrar os piedosos sepulcros de seus maiores. Desejava isto muito; deviam de ser maiores as esperanças dos seus, nas ilhas, de o ver. Tardava a resposta de Évora; na armada havia grande pressa de partir. Metido no meio de dois extremos: a vagarosa vinda do Cardeal e o vento próspero que os convidava. O despachador dizia estar tudo concluído na vinda do Infante, que por momentos se esperava. O tempo tinha as vergas de alto e a gente dentro.

Assentaram que fosse, visto a determinação que mostrava ter de chegar às ilhas, compor necessárias coisas que dizia ficarem lá em aberto; mas, querendo-se Sua Alteza em suficiente cargo de sua pessoa servir dele, logo tornaria. Avindo deste modo, mandou embarcar os pagens e o fato nos navios que estavam para dar à vela.

Sabido dos consultores do Reino que partia e o bispado sede-vacante ficar só, lhe mandaram provisões de que el-Rei era contente da sua sobreintendência em São Miguel e se haveria neste governo, que muito importava por servido, com particular memória de lhe fazer mercê.

Embarcado, as velas quase dadas, pedindo todos a Deus viagem, chegou o Cardeal aquele dia, à tarde, a Lisboa; logo amanhecendo, deram aviso que se não embarcasse, e o acharam embarcado; ele, que todas as suas coisas primeiro conferia, que se deliberasse na resolução do apressado responder; consultado Braz Soares, Capitão de Santa Maria, seu parente, que em sua companhia embarcara, respondeu que, oprimido das angústias do tempo, não era já possíbil tornar a terra, nem desembarcar o fato, recolhido em lugar seguro; mas que tornar seria breve, acabando dar ordem a certas coisas que muito importavam. Ordenava Deus isto a fim de o fazer bispo, que em tantos cargos oferecidos em nenhum quietou, nem aceitar quis, posto que grandes e de singular valor; antes, por ele rejeitados, ficaram sem efeito.

Chegado a Terceira, recebido com sumo contentamento dos insulanos, propôs executar os cargos que levava, com tanta inteireza e verdade de justiça, que mudaram muitos o abuso de seguir os vícios no estado novo de viver quieto.

Enquanto gastava o tempo na reformação dos costumes, foi no Reino provido de (sic) D. Pedro de Castilho por bispo das Terceiras, fidalgo montanhês, de muita erudição e santidade, o qual, depois de poucos dias, vindo ao bispado, morreu o adeão que na Sé servia. Sabia este ordinário quanto no Reino montavam a fama e nobreza deste senhor e o conhecimento das Escolas, em que ambos foram contemporâneos; logo o nomeou na dignidade, avisando el-Rei da promoção; mandou a Roma buscar as letras e, vindas, tomou posse com altíssima satisfação do povo.

Passados neste meio tempo alguns dias, quis D. Pedro, por obrigação do cargo, visitar em pessoa as outras ilhas do bispado, e o levou consigo por visitador, mostrando confiar tanto no uso e entendimento do seu governo, que por igual com ele reapartia o peso de visitar.

Tanto que partiram da Terceira, o mal entendido povo (infelice e abominábil caso), de falsas aparências enganando, errava no conhecimento da verdade com infame parecer, julgando senhor daquele estado quem, de ordinária via de justiça, nele não tinha alguma parte; e cegos na sorte de escolher, de modo confundiram da mísera república a união, que, excluído o verdadeiro jugo do seu Rei, em triste rebelião ficaram postos.

Tomaram estas miseráveis novas do alevantamento das Terceiras ao bispo e a este senhor na sua mesma pátria. Ambos tiveram profundíssimas lágrimas de sentimento; choravam ambos à comum lástima de tanto povo, ambos se doíam de ver uma das mais frequentadas ilhas que o mar inclui, residência do bispado, universal porto do mundo todo, deliberada e posta em se perder.

Logo se tornaram a São Miguel, acomodada parte de acudir aos públicos desatinos do incerto vulgo e conservar na verdadeira e leal opinião aquela, maior no sítio e rendimentos. Em chegando, o fez o bispo vicário (sic) geral e provisor, para com dobradas forças resistir aos iminentes perigos que ameaçavam.

Entanto, os discordes ânimos da Terceira, passados os limites da razão, traziam no mar navios a roubar, metiam na pátria estrangeiros, pagavam à sua custa guarnições, tinham contínua ordem de vigias, fortificavam as praias, impossibilitavam passos que podiam dar entrada aos imigos e, com horrenda confusão de pareceres, ardiam em confusos pareceres.

Juntaram a tantos males maiores outros, roubando os cansados navios que, oprimidos do longo fastio da viagem, demandavam com desejo aquele porto, em refeição e prémio do trabalho.

Vistos tão grandes insultos do infelice gado, procuraram os pastores, por meio de contínuas orações, aplacar a ira do Omnipotente irado e, por humanos meios, restaurar na perdida lealdade os errados entendimentos do miserábil povo. Tentados em vão quaisquer repairos, aplicados remédios sem proveito, nunca fizeram alto em seu desegno (sic); antes da bebida peçonha alienados, tratavam as duras armas em que tinham postas falsas aparências de vitória.

Desconfiados de neles haver emenda, o ordinário bispo avisou que se queria depressa embarcar; havida do Reino a licença, mandaram que ficasse este senhor com o mando do bispado, que por Roma lhe queriam confirmar.

E, esperando-se tempo para ir, e segura embarcação em que passasse, partiu de França D. António, com ajuda de perdidos luteranos, a fortificar de novo aquelas ilhas, que tomaram sua voz e defendiam o injusto nome que lhe tinham dado; e trazia razoada cópia de soldados.

Vindo a São Miguel, achou nele pouco fruto, por causa destes senhores o terem conservado na devida obediência.

Sabidas estas coisas de Sua Majestade, mandou o Marquês de Santa Cruz acudisse aos insultos daquelas ilhas e desbaratasse o imigo, ousando esperar, que lá andava. Satisfez o Marquês a este cargo e, com poder e força de menos velas, desbaratou a armada populosa de França, ficando a maior parte dela nas mãos do vencedor.

Domesticadas em parte estas coisas, o bispo se embarcou. Quisera o senhor D. Luís acompanhá-lo, mas, advertido que a um deles convinha ficar com a pesada carga do governo, se aquietou, e o bispo, delegando nele o poder que tinha, o deixou por universal senhor do eclesiástico foro.

Chegado D. Pedro a Lisboa, deu conta a el-Rei do estado em que ficavam as alterações das ilhas, dos artifícios que ele e este senhor tiveram para abrandar a obstinada dureza dos alevantados, quantos foram os trabalhos que ambos padeceram, quantas vezes arriscaram as vidas na concórdia de tão grandes males; e dizia este prelado que na prudente indústria deste senhor se salvaram muitos do miserábil fogo de rebelião; contentíssimo ficou Sua Majestade de o saber, e entender que na sua mão ficavam as rédeas do bispado.

Enquanto ele nas ilhas se ocupava sacrificar a vida no amor de el-Rei, foi no Reino levantado D. Pedro dos trabalhos passados ao prémio de Leiria, e dada no Conselho ordem que por Roma fosse o senhor D. Luís confirmado na administração das Terceiras.

Enquanto estas coisas corriam desta sorte, não bastou a horrenda vista de tantas mortes, nem o mísero destroço da vencida armada, aos mal intendidos insulanos a renderem as armas na clemência do verdadeiro príncipe; antes, com dobrado ódio da obstinação primeira, rejeitaram os sãos conselhos que deste senhor lhe foram dados e de novo tornaram refazer à perda da rota que tiveram.

Durou um ano inteiro este abominável erro sem ter remédio, até que Sua Majestade, vendo que se tentavam em vão tantos remédios, determinou com rigorosa justiça da espada castigar os principais autores da discórdia e mandou ao mesmo Marquês de Santa Cruz com uma poderosa armada que os vencesse. Chegou primeiro o Marquês a São Miguel, submetida ao mando de Sua Majestade, a tomar inteligência do que passava, e recrear a gente dos trabalhos que tiveram na viagem, e informar-se de alguns ocultos desegnos, se os havia, que fizesse a efeito do negócio.

Assentou convir ao serviço de Sua Majestade ficar o senhor D. Luís em S. Miguel, enquanto a sentença do rigoroso Marte definia a qual das partes convinha ter vitória. Necessitado de ficar, proveu em seu lugar por ouvidor eclesiástico da cidade de Angra ao padre Luís A’lvares de Maiorga, cónego que, então, era da mesma Sé, pessoa de confiança e crédito, digno do cargo que levava.

Tomada por força de armas a Terceira, e vencidos os que nunca se deixaram submeter à eficacíssima força da razão, ficando postos no rigor da guerra e debaixo dos miseráveis insultos dos soldados, sabida a contentíssima nova da vitória, rendidas primeiro graças do sucesso, este senhor se embarcou na volta de Angra. Ao tempo de chegar, achou o Marquês já embarcado; grandes foram as alegrias que tiveram e no pouco espaço que se viram: a muitos fez conceder as vidas no último perigo de chegar a morte, a outros as fazendas, por direito da guerra já perdidas. Tiveram outros, por sua intercessão, os merecidos prémios de sua lealdade. No que tocava ao eclesiástico foro de seu governo, de maneira se houve no executar justiça que, sem ficar algum sem ter castigo, nenhum se agravou da dura pena. A excelência destas obras nos duros pectos dos capitães espanhóis fizeram impressão.

Tanto que a vencedora armada, com próspero sucesso, chegou à desejada praia de Lisboa, nos principais senhores correu logo a veloce fama do que este senhor fizera no serviço de Sua Majestade, e com quanta justiça e santidade regera o canónico mando de sete ilhas, e na singular ordem que inventara em confirmar o povo, ainda mal são da passada chaga, num firme pressuposto de nunca mais cair. Todos prognosticaram os prémios que de tantos serviços se esperavam; o Cardeal , quase vencido do que até os mesmos soldados publicavam das virtudes e saber deste senhor, particularmente o amava, e todos os mais senhores, por cujo entendimento os negócios do Reino se governa, sabidas suas coisas, eram muito seus amigos.

Nos primeiros navios que, depois de reduzida, do Reino foram à Terceira, por cartas do bispo de Leiria e pessoas nobres e parentes, foi deles avisado quanto nos olhos de Sua Majestade eram formosos os serviços que lhe havia feitos e que em breve tempo se veria, no prémio que esperavam, a certeza deles.

Vagara neste meio tempo o bispado de Cepta; logo se suspeitou que o queriam prover nele; mas, sucedendo a vagatura do das ilhas da Madeira e Porto Santo, tão formoso no mundo, o proveu nele, que fora, havia poucos anos, arcebispado de todo o marítimo domínio que os nossos reinos têm em tão remotas partes espalhado. Promulgada a eleição em Março de oitenta e cinco, Sua Majestade o avisou, com muitas palavras de louvor, viesse dar ordem a suas letras.

Chegadas as novas às Terceiras, foram dos insulanos festejadas com sumo alvoroço e estranho gozo; logo a palreira fama, discorrendo, levou por todas as ilhas à comum alegria do bispado a honra universal que lhe era feita, ser de todas elas o primeiro bispo. Misturavam alguns com os plazeres as saudosas lembranças do passado, sincero amor com que os tratara no tempo que com eles residira.

Havida conjunção de vir à Corte, no mês de Augusto se embarcou em uma armada que da Mina vinha.

Chegado a salvamento, foi recebido do Príncipe Cardeal e mais senhores com altíssimo gasalhado e muitas honras, e de parte de Sua Majestade lhe disseram a boa informação que dele tinha, e quanto foram aceitos seus serviços, e que muita parte deles, excedendo o modo da mercê, ficavam esperando maior prémio. Os que assistem no governo do Estado o recolheram com assaz contentamento; os parentes com infinito amor e gasalhado. Só D. Luís Coutinho não viu este desejado gosto, da rigorosa morte oprimido nos funestos campos do mal fortunado Alcácer.

Puderam-se com razão engrandecer as verdadeiras provas, que em todas ilhas e no Reino se tiraram da antiga ilustre descendência dos seus maiores, por tantas fidedignas testemunhas aprovada, de inumeráveis anos a esta parte virem seus avós sem nota que macular pudesse a conhecida nobreza desta geração, antes perpetuada no valor e honra; nestes Reinos adquiriram títulos de grandes, e, porventura, o que não creio de malícia ou inveja alguém cuidar, que em parte sobrepujam estes louvores da verdade, que se pede na História, de menos resplendor do que escreveu. Busque na Casa do Tombo originais e as verdadeiras fontes dos instrumentos e neles achará o lume certo desta claridade; e, se ainda duvidar, não faz acaso, que da formosura do Febo não abate a miserável vista do animal da noite que, enquanto o dia dura, da luz foge, contente com as trevas do ar pardo. Atónitos ficaram os que as viram: do ilustre tronco de seus avós; da muita erudição de suas letras, de tão vários exames apurada; do saber e entendimento no governo dos anos de seu cargo.

Estas e outras muitas coisas que a Católica Majestade entendia e a Universidade toda, lentes e doctores, com grandíssimo aplauso comprobaram, escreveu ao Sumo Pontífice, quando na prelacia do Funchal o presentou. E nosso Santíssimo Senhor, nas letras em que o declarara por bispo destas ilhas, diz que o levanta a tão supremo lugar de santidade, movido da informação que dele tem, de muita nobreza e fidalguia, e papéis fidedignos destes reinos, nobreza confirmada por testemunho dos dois monarcas que sobre si sustentam o grave peso da religião cristã.

Em Outubro seguinte, partiu para Roma o correio que levou estes recados. A cinco de Março do ano de oitenta e seis chegaram as bulas a Lisboa. No dia seguinte, que foi de Cinza, por ordem do secretário Lopo Soares, lhe foram mandadas as desejadas novas, estando aos ofícios na Ecclésia de Santa Catarina de Monte Sinai. Quis Deus mostrar quanto o agradara ser electo, que com as lembranças que se costumam dar na criação dos Papas, da velocidade da vida, da glória que em fumo se desfaz, de pressurosa passage (sic) a dar conta, no dia em que a nossa Sagrada Mãe celebra com cinza estas memórias lhe foram as letras dadas do bispado, e de licença do Príncipe Cardeal, no último de Março, domingo que fora da Rosa, ele que no suave cheiro da virtude havia de ser outra, com aplauso de toda a Corte, no venerábil mosteiro da Trindade, foi ungido e consagrado.

Muitas foram para dizer, indignas de tão pequeno âmbito de lugar, as coisas deste dia: a majestade do que passou, as sacras cerimónias do ofício, o profundíssimo pego de devação com que foi feito, o quase infinito concurso do mundo abreviado de Lisboa. Alguns, tratando a vida deste senhor na viva voz de seus escritos, dirão estas grandezas por extenso, levando a memória do que passou ao resplandecente Céu eternizada. No soleníssimo acto, presidiu D. Manuel de Seabra, bispo que foi de Cepta e agora o é da Capela, assistentes o novo de Cepta, D. Diogo Correia, e o bispo dezelandês que, ausente do abominábil perigo de Inglaterra, vive em nossos Reinos em paz católica.

Nem só em os divinos ofícios se mostrou a majestade do dia em que foi sagrado; mas, acabados eles, no sumptuoso e magnífico banquete, nas mesas abundantíssimas de pescados, na ordem e aparato que se teve, passou a diversidade de iguarias muito avante de quaisquer desejos, e já, por fim, mostravam as que vinham quanto a pródiga gula inventou.

Acudiu a nossa ilha ao prazer comum com as delícias celebradas de seus mimos, que a fazem em toda a parte nomeada; e com diferente cópia de licores mitigou a sede dos convidados.

Excedia o número de todos a cópia de cento e cinquenta pessoas, nobres e fidalgos, de obrigação de parentesco, D. Hierónimo Coutinho, D. Hierónimo Lobo, D. Emanuel de Castro, D. Afonso de Noronha, e alguns outros; os mais consumiu a dura sorte africana nas casas de Sortelha, do Barão , do Regedor . Tiradas as mesas, descansou sua senhoria do trabalho passado. Recolhido, agradeceu ao Sumo Fazedor a cópia das mercês.

Mandou logo à ilha tomar posse, foram delegados no negócio D. Francisco Henriques, adeão, e o doctor Gonçalo Gomes, mestre-escola, insignes ambos, um no sangue de seus avós, outro na notícia das sagradas letras. A cinco de Maio, domingo em que se cantava o devotíssimo Evangelho Ego sum Pastor bonus (porque tal havia de ser), tomaram posse na presença da nobreza do Funchal, com muito contentamento de todo povo.

Enquanto se aparelhava uma zabra, que se fazia prestes para o trazer à ilha, foi do Cardeal chamado domingo de Ramos, e com muita devação e majestade fez nesse dia o pontifical da Capela. E, logo, quinta-feira da Semana Santa, administrou com muitas lágrimas os Santos Ofícios na Capela. E dia dos Sagrados Príncipes dos Apóstolos teve outro pontifical. Os mais dias, antes de partir, gastou em procurar mercês ao virtuoso clero do Funchal, ou, com mãos abertas, fazer muitas a quem as demandava.

Aparelhada a zabra, embarcado, ficou na corte um geral e altíssimo sentimento, e a todos seus parentes muita saudade. Veio em sua companhia uma nau que navegava ao comércio do Brasil. Não tiveram no mar vista de cossairos, antes alguns, que juntos destes mares andavam, esperando achar presa, um dia primeiro se acolheram, lançados da boa fortuna deste senhor.

Chegou em pouco tempo a sua ilha, a quatro dias contados de Augusto.

Espantosas foram as alegrias com que no Funchal o receberam, dignas de quem era e dignas da nobreza da cidade. Acrescentou muito no aparato destas festas a presença de Tristão Vaz da Veiga, capitão e governador do Estado de Machico, generalíssimo nas ilhas da Madeira e Porto Santo, que, por ilustreza de sangue, invencíbil ânimo, gravíssimos e espantosos feitos nas partes de Ásia e África, é das mais eminentes e principais pessoas de nossos tempos, que, com muito alvoroço embarcado, o foi buscar ao navio, com outros muitos fidalgos que o seguiram, e João Daranda, capitão do Presídio, foi com ele.

Trazido a terra, na borda de água o esperava o reverendíssimo Cabido e o mais clero do Funchal, os juízes e vereadores, com o resplendor da fidalguia desta ilha; junto deles a companhia de soldados, com infinita multidão de povo de toda sorte. A salva de artilharia que disparou a fortaleza, a roda viva de arcabuzes e mosquetes, o repicar de sinos, danças, festas, invenções, as comuns vozes de alegria, por longo espaço dispergidas (sic), soavam em remotas partes.

Trazia o barco, em que veio a terra, as mais nobres pessoas de toda a ilha e as principais dignidades que o foram lá buscar. Posto em terra, de geolhos, diante da sacra veneração da Cruz, que com gravíssima pompa lhe foi apresentada, acabada, se recolheu em um pálio de brocado, e com grandíssima majestade o levaram ao trono da sua santa Sé, com as costumadas e devidas cerimónias. Prostrado diante do diviníssimo Sacramento, deu imortais graças ao Senhor de o trazer de tantos perigos a seguro e tranquilo porto de descanso e do estranho contentamento, que em todos via, de o terem por prelado e por senhor.

O que mais nesta soleníssima entrada aconteceu, quanto com sua vinda reformou, a brandura e santidade com que procede, as contínuas esmolas que vai dando, as excelentíssimas coisas que tem feitas, o grande e espantoso fruto das pregações, a veemência das palavras, o levar após si os corações, os institutos e leis de reformar, a singular ordem e assento de proceder — fica tudo reservado para mais subida cópia de palavras e autores graves, de maior concepto.