Depois de ser feita por el-Rei a mercê da comenda a D. Francisco Coutinho, por morte de seu pai, a mãe D. Lianor de Mendanha, por o filho ser menor, a administrou muitos anos, como sua tutora. Foi esta senhora muito virtuosa e de muitas esmolas, porque no tempo das fomes em Lisboa estavam em sua casa os tabuleiros de pão cozido à porta para darem aos pobres, afora outras esmolas que fazia a pessoas particulares e a religiosos, pelo que dizem que assim lhe cresciam os bens em casa, que lhe aconteceu deixar as jarras de azeite vazias e depois as acharam cheias, como afirmavam pessoas da mesma casa.
Depois da morte desta D. Lianor de Mendanha, casou o filho, D. Francisco Coutinho, segundo comendador da ilha de Santa Maria, com uma irmã do Barão de Alvito, D. Rodrigo Lobo, que se chamava D. Filipa de Vilhena, mulher reverenda de corpo e formosa de rosto, em seu tempo, e de grande governo de sua casa, em que tudo com grande prudência lhe corria pela mão, como adiante direi. Casou D. Francisco com ela, e dois irmãos dela casaram com duas irmãs dele, um dos quais se chamava D. Filipe Lobo, que foi o mais bem disposto e gentil-homem que houve em seu tempo, e era trinchante de el-Rei, e depois foi à Mina e morreu lá, sendo casado com D. Joana Coutinha. O outro, que casou com D. Maria Coutinha, a que não soube o nome, foi pajem de el-Rei, do arremessão.
Houve outro irmão destes, que chamaram D. Francisco Lobo, que foi alcaide-mor de Campo Maior em Alentejo, na arraia de Castela, o qual foi homem de grande corpo e veio ser tão grosso, que se não deixava entender dos que não costumavam falar com ele, senão por intérprete, que sempre tinha detrás de si. Este casou com D. Branca, filha de Afonso Teles, alcaide-mor da mesma vila, o qual perdeu a alcaidaria por morte de um homem, que matou indevidamente, e o genro a houve de el-Rei D. João, terceiro do nome, por ser muito seu privado, e ficou por trinchante, por falecimento de seu irmão D. Filipe, o qual a deixou ao dito seu sogro, que a teve e possuiu até que faleceu. Houve desta D. Branca, sua mulher, uma filha que chamam D. Isabel, que foi casada com André de Sousa, alcaide-mor de Arronches, do qual houve um filho, e, sendo de pouco nascido, faleceu o pai, André de Sousa, e daí a pouco tempo levou Deus o menino para si; vendo-se a mãe desamparada do marido e filho, meteu-se freira no mosteiro da Madre de Deus, que está em Enxobregas, fora de Lisboa, pelo rio acima, adonde hoje em dia vive, dotada de tantas virtudes, que merece ter nome de profeta, como adiante direi.
Teve mais D. Francisco Lobo de sua mulher D. Branca quatro filhos e outra filha, dos quais o mais velho se chamou D. Manuel Lobo, que herdou a alcaidaria por falecimento de seu pai, e foi casado com D. Francisca, filha de Rui Carvalho, uma senhora muito virtuosa e de grandes esmolas; este foi com el-Rei D. Sebastião a África, donde não tornou, nem se sabem novas dele, mas as certas são ser morto, como todos os que até agora não aparecem. O segundo se chama D. António Lobo, mancebo bem disposto e de boas manhas, e muito gentil-homem, e muito mais o fora, se bexigas, de que foi muito doente, lhe não privaram a cor do rosto; este casou com D. Joana, filha de Pero de Mesquita, natural da cidade de Elvas, que foi por mestre do campo da artilharia com o dito Rei D. Sebastião, que também lá acabou a vida, para gozar da eterna, que seus feitos na ilha de Malta, de donde era comendador, bem merecem, segundo o juízo humano. O terceiro chamam D. Afonso, o qual foi para a Índia e lá anda usando da nobrezia e fidalguia de seus antepassados. O quarto chamam D. Diogo, que ao presente não sei aonde anda.
A derradeira filha, que houve, é hoje em dia prioresa do mosteiro da Anunciada de Lisboa, cuja fama, da dita prioresa, é tão grande, que por si soará melhor do que eu posso dizer, nem declarar. Esta santa religiosa, ainda que mui nobre em geração, é mui insigne com os dons e sinais do Esposo Celestial, os quais eu não vi, mas tenho fé por dito de muitos religiosos e pessoas dignas de crédito, que nas palmas das mãos viram uns sinais vermelhos, de dentro redondos, tamanhos como uma folha de rosa, e de fora em triângulo mais pequeno, mas não são chagas abertas com os cravos, como as do seráfico padre S. Francisco; as dos pés e lado podem-se piedosamente crer, porque ninguém lhas viu. Uma sua irmã está no mosteiro das Descalças da Madre de Deus, em Enxobregas, não de menos virtude e santidade; ainda que estes juízos só pertencem a Deus, o povo tem esta fé. Antre estas, de caminho direi de outras, que Deus manifestou nestes tempos em Lisboa, onde dizem que há outra religiosa na Esperança, que tem grandes prendas e revelações do Senhor. E outras há em muitas partes de grandes merecimentos e fama.
Uma beata do hábito dos Capuchos, vizinha que foi e muito devota da casa destas Descalças, que está em Lisboa, onde cada dia se confessava e comungava e fazia com muita devação as casulas e cheiros para os altares, e outras coisas para honra do culto divino, posto que seja mui pobre das coisas temporais, é mui rica de virtudes e alumiada com muitas revelações divinas, como diz o Apóstolo: — “Assaz é rico aquele que é pobre com Cristo”. A esta convém o que diz o profeta: — “Alevantou o Senhor o pobre da terra e do esterco para o colocar com os Príncipes do seu Reino”, pois chegou a ser amada do seu dulcíssimo Esposo; dele ouviu a suavíssima voz que se contém nos cânticos: — “Ponde-me por selo sobre vosso coração”, o qual nele imprimiu sua forma e figura inteiramente; e com este tão singular dom comungava cada dia, o que alguns não podendo sofrer, o denunciaram ao geral e ao arcebispo. E a seu confessor, para lhe não ser impedida a graça que com a frequência deste sacramento recebia, revelou o secreto que havia mais de oito anos que estava oculto. Mas, não se confiando com isto o arcebispo, fez por três vezes experiência, pondo-lhe sobre o coração uma pasta de cera, e em todas saiu na cera esculpida a imagem do seu Esposo Crucificado, com grande admiração de tamanho milagre. E dizem que a carne de fora, onde lhe põem a cera, não tem sinal algum, e na cera fica às vezes um Jesus impresso, com suas letras, e às vezes um crucifixo, pelo que se afirma que assim o tem imprimido no coração, donde vem ficar aquela forma de cera; e ainda dizem mais que denunciou à madre prioresa da Anunciada que se aparelhasse, que em dia de Santo Tomás havia de receber tão grande mercê, como lhe era revelado. E outros afirmam que sua irmã D. Isabel, do mosteiro da Madre de Deus, com espírito de profecia, por Deus lho revelar, lho mandou dizer pela dita beata, que depois se recolheu no mesmo mosteiro da Madre de Deus, de Enxobregas, porque todas três se comunicavam mui familiarmente, como servas esposas do Mui Alto. O qual, com seu exemplo, espertou tanto a devoção no coração dos fiéis, que todos, ou quase todos, querem comungar cada dia e frequentam as confissões e comunhão .
A mulher de D. Filipe ficou viúva muito moça e nunca mais casou, e vive com muita abstinência e virtude, fora das pompas e vaidades do mundo, andando por Lisboa visitando enfermos e hospitais, acudindo a muitas necessidades, assim corporais como espirituais, e nisto gasta a vida há muitos anos; de cujos filhos e filhas, destas irmãs, não trato, pelos não ter bem sabidos e por não fazer longo processo.
O segundo comendador da ilha de Santa Maria, D. Francisco Coutinho, houve de sua mulher, D. Filipa de Vilhena, cinco filhos e duas filhas, afora outros, que morreram, porque ele dizia que sua mulher parira vinte e duas vezes, entre moveduras e pariduras. Dos vivos, o primeiro se chamava D. Luís Coutinho, como o avô, que sucedeu a seu pai na comenda; o segundo D. Pedro; o terceiro D. Gonçalo; o quarto D. Bernardo; o quinto D. Hierónimo; e o sobrenome Coutinho; a mais velha, filha, de todos os irmãos se chama D. Joana de Vilhena; a segunda, que nasceu logo despós (sic) o primeiro, D. Antónia de Vilhena e é freira professa no mosteiro de Santa Clara de Santarém; outra mais velha, chamada D. Joana (sic) de Vilhena, casou depois da morte do pai com D. Miguel de Noronha, filho segundo de D. Afonso de Noronha, irmão do Marquês D. Pedro de Vila Real e filho do Marquês D. Fernando.
Foi este D. Afonso capitão em Cepta muitos anos, onde teve bons sucessos contra os mouros e fez muitas entradas nas suas terras, de que trouxe muitas presas boas, e era de maneira que os mouros acalentavam os meninos com ele, dizendo: — “Guarda de D. Afonso, o Torto!”, porque tinha este nome de alcunha, e depois foi vizo-rei da Índia, onde teve também prósperos sucessos, levando lá consigo um filho seu, mais velho, chamado D. Fernando, que foi capitão-mor do mar na Índia, estando lá seu pai, e houve no mesmo mar uma grande vitória, de que não sei as particularidades, mais que ouvir que pelejou com quarenta galés e as desbaratou com sós três galeões, que trazia de armada.
Foi também este D. Afonso mordomo-mor da Infanta D. Maria e faleceu, sendo de muita idade, de ar, ou para melhor dizer, de parlesia, que lhe deu a terceira vez há poucos anos.
Ficaram a este D. Afonso quatro filhos e uma filha, chamada D. Catarina d’Eça , que foi casada com o filho mais velho do Conde de Tentuguel (sic) e morreu de parto sem lhe ficar herdeiro. A mulher deste D. Afonso se chamou D. Maria d’Eça , que foi também uma nobre senhora.
O filho mais velho do mesmo D. Afonso e de D. Maria d’Eça , sua mulher, chamam D. Fernando de Menezes; o segundo D. Miguel de Noronha, casado com D. Joana de Vilhena, filha de D. Francisco, segundo comendador, de que falamos, a qual foi das mais formosas de seu tempo e ainda agora o é, e D. Miguel, o marido, um dos quatro coronéis que foram com el- Rei D. Sebastião na guerra de África.
O filho terceiro de D. Afonso, que chamam D. Jorge de Noronha, é casado com uma D. Isabel, cujo sobrenome não sei, filha de Antão Martins de Câmara, Capitão da Praia, da ilha Terceira, mas há muitos anos que não fazem vida ambos, por culpa de D. Jorge; ela é mulher de grande virtude.
O quarto filho deste D. Afonso, chamam D. João d’Eça , é clérigo e bom pregador e prior de Torres Novas.

Está dada a ilha de Santa Maria em comenda há muitos anos, e o comendador dela tem todos os rendimentos, como el-Rei tem nas outras ilhas, tirando as entradas, que são de el-Rei, e não há senhor nenhum no Reino que as tenha. Rende a ilha, uns anos por outros, dois mil e quinhentos cruzados, de que o Capitão tem a redízima, e a demasia é do comendador, com obrigação de dar todo o necessário às igrejas, como são ornamentos e as mais coisas necessárias para se celebrar e ministrar o culto divino.
Além disso, paga a dita comenda trinta mil réis ao vigairo da igreja de Nossa Senhora da Assunção da Vila do Porto, e a cada um de quatro beneficiados, que há nela, dez cruzados e moio e meio de trigo, e ao tesoureiro um moio de trigo e dois mil réis em dinheiro, e para despesas da tesouraria vinte cruzados, e dez à fábrica da igreja. E ao vigário de Nossa Senhora da Purificação da Serra vinte mil réis de ordenado e dois mil réis da tesouraria, e um marco de prata de uma capela, que se diz aos sábados, pelas almas dos Infantes que descobriram as ilhas e tiveram o mestrado de Cristo. E ao vigairo da igreja de Santa Bárbara outros vinte e quatro mil e quatrocentos réis. Paga ao almoxarife, que agora é Tomé de Magalhães, homem generoso, discreto e virtuoso, dois moios de trigo, e a seu escrivão, dois mil réis, afora o que costuma dar a seus feitores. De maneira que lhe poderão ficar em cada um ano, uns anos por outros, quinhentos mil réis forros.
De princípio se arrendavam nesta ilha de Santa Maria os dízimos por el-Rei, que era mestre da Cavalaria de Cristo, de cujo mestrado ela é. Depois a deu el-Rei D. Manuel em comenda dos dízimos, somente em cento e vinte mil réis, como diz a carta de mercê ao primeiro comendador que foi dela, que se chamou D. Luís Coutinho, filho do Conde de Marialva, irmão do derradeiro Conde que houve, que foi o que casou a filha com o Infante D. Fernando, irmão de el-Rei D. João, o terceiro do nome, e morreram ambos sem deixarem herdeiros; por onde o condado ficou à Coroa, ainda que um D. Francisco Coutinho, de Santarém, anda em demanda com el-Rei sobre isso e tem tiradas algumas coisas, mas ainda el-Rei está de posse do condado.
D. Luís Coutinho, primeiro comendador da ilha de Santa Maria, foi o terceiro ou quarto filho do Conde, seu pai, e, quando el-Rei lhe deu esta comenda, tinha ele um juro de noventa mil réis, o qual largou a el-Rei quando o fez comendador. Foi casado com D. Lianor de Mendanha, filha ou neta daquele alcaide-mor que agasalhou a el-Rei D. Afonso de Portugal, quinto do nome, no seu castelo, quando foi a batalha de Touro com el-Rei D. Fernando de Aragão sobre a herança do Reino de Castela, onde ambos os Reis foram desbaratados e se acolheram sem um saber do outro, el-Rei de Aragão a Samora, e el-Rei de Portugal ao castelo deste alcaide, de que vou dizendo, cujo nome não alcancei. E o Príncipe D. João, filho deste Rei D. Afonso, ficou nesta batalha por vencedor, sem o pai o saber, e depois foi Rei de Portugal, chamado el-Rei D. João, o segundo.
Este D. Luís Coutinho, primeiro comendador da ilha, houve de sua mulher, D. Lianor de Mendanha, um filho chamado D. Francisco Coutinho, que lhe sucedeu na comenda, e duas filhas, uma chamada D. Joana Coutinha e a outra D. Maria Coutinha. E foi homem de que el- Rei folgava de se servir. E dizem que foi à Índia, ou por capitão-mor das naus da viagem, ou de alguma delas. Foi também a Sabóia com a Infanta.
Faleceu este comendador D. Luís Coutinho (segundo se diz), de morte supitânea e ficou D. Francisco, seu filho, muito moço; e dizem que se dissimulou a morte do pai um dia, para que el-Rei desse a comenda ao filho, dizendo que estava mal, sem quererem dizer que era morto, para que não houvesse algum invejoso, que se atravessasse a pedi-la, como algumas vezes acontece; e desta maneira houve a comenda D. Francisco Coutinho, depois da morte de seu pai, D. Luís Coutinho.

Depois de partido o sargento-mor da ilha de São Miguel, ainda que o Grão-capitão Francisco do Rego de Sá requeria que lhe dessem gente e artilharia para sua nau e outros navios, oferecendo-se a pelejar com os cossairos, arreceando Rui Gonçalves da Câmara, Capitão-mor desta ilha de São Miguel, que não era caça tão pequena nau e navios, ir cometer umas naus tão poderosas e alterosas como eram as dos imigos, com parecer de todos se ordenou que o socorro fosse desembarcar a terra, para dela lançarem os contrários, sem pelejar com eles, pois não havia navios de porte para isso.
E sendo electo por capitão-mor da gente, que havia de ir ao socorro, Francisco de Arruda da Costa, fidalgo escrito nos Livros de el-Rei, homem, por seus grandes espíritos, de esforçado ânimo e, por sua prudência e discrição e grandiosa condição, digno de grandes e honrosos cargos, se aparelhou com muita pressa e diligência de todo o necessário para um tal encontro, assim de artilharia, armas e munições como de mantimentos, levando consigo a Sebastião da Costa, seu filho, e João de Melo, seu genro, mui nobre fidalgo; indo também a este socorro, em sua companhia, muitos homens fidalgos e honrados, muito valentes e esforçados, que para isso de sua livre vontade se ofereceram, como foram André Botelho, filho de Jorge Nunes Botelho, Henrique Moniz, cavaleiro de África, António de Benavides, Cristóvão Cordeiro, o Moço, Brás Coelho, Pero Roiz de Sousa, seu irmão, filhos de Baltazar Roiz de Sousa, de Santa Clara, João de Frias, filho do licenciado Bartolomeu de Frias, Ambrósio Nogueira, filho de Estêvão Nogueira, João Pacheco, filho de Marcos Fernandes, António Mendes, filho de João de Arruda da Costa, Amador Fernandes, irmão de Sebastião Luís, que foi cativo no Cabo de Guel com o Capitão Manuel de Câmara, onde pelejou como mui esforçado cavaleiro, António Botelho, escrivão da Câmara da mesma cidade da Ponta Delgada, Hierónimo Mendes, filho de António Mendes, Gaspar Camelo, o Moço, sobrinho de Jorge Camelo, Aires Pires Correia, filho de Gaspar Correia, que foi juiz dos órfãos na dita cidade da Ponta Delgada, e neto de Lourenço Aires, e Manuel Lobo, filho de Francisco Lobo, Luís Mendes Vitória, feitor do Católico Rei D. Filipe de Castela, João de Robles, espanhol, casado na mesma cidade, muito esforçado, valente e destro nas armas, e outra gente nobre, e vinte e sete cavouqueiros, arcabuzeiros, que estavam servindo a el-Rei na fortaleza desta ilha, e outros muitos, que podiam ser por todos duzentos homens de peleja, afora a gente do mar, os quais, sendo preparados, se partiram terça-feira à tarde, sete dias de Agosto, em um navio, em que levavam a artilharia e seis berços, um só dos quais levava trinta e nove homens.
Com este socorro (que aproveitara muito, se chegara a tempo), à meia-noite seguinte da mesma terça-feira, em que se embarcaram os cossairos com o aviso que tiveram do negro da terra, que se foi com eles, da ajuda que desta terra se esperava, chegaram à ilha de Santa Maria e, não podendo com a tormenta sair no porto de Sant’Ana, correram pela banda do Norte e foram desembarcar no de São Lourenço à quarta-feira, duas horas ante-manhã, e daí foram, com a maior pressa que podiam, marchando por terra, com carros de artilharia e suas armas, duas léguas pela serra até chegarem à Vila do Porto, a tempo que estavam recolhidos os imigos daquela noite. E entraram na Vila com as bandeiras baixas para ver se tornavam, porque estavam ainda ancorados o galeão e nau e lancha e duas caravelas, uma de José Gonçalves, mareante, morador na cidade da Ponta Delgada desta ilha de São Miguel, e outra do Algarve, que os franceses tinham todas carregadas de fato e mantimentos, os quais, vendo dali, donde estavam surtos, um navio que vinha da ilha da Madeira muito empegado, longe ao mar, da banda do Sudoeste, alevantando âncora, se fizeram à vela, levando as caravelas consigo; o qual navio eles tomaram e, descarregando e despejando nele a caravela de José Gonçalves, a largaram, a qual veio depois ter à cidade da Ponta Delgada com os homens do navio roubado, porque os das caravelas ficaram na ilha de Santa Maria, por fugirem, vendo ir para si a lancha o domingo pela manhã, quando entraram em terra e a tomaram.
Neste tempo, na mesma quarta-feira e na quinta seguinte chegaram nove navios da ilha da Madeira, com muito dinheiro, a buscar trigo, a que o capitão Francisco de Arruda mandou avisar que se recolhessem ao porto da dita Vila, onde os teve dez dias, no fim dos quais os trouxe consigo ao porto da cidade da Ponta Delgada, vindo por todas catorze velas, sc. os nove navios e o em que fora da armada, e quatro barcos, por ter mandado dantes de aviso à mesma cidade da Ponta Delgada os outros que dela levara.
Na mesma quarta-feira, pela manhã, quando chegou o capitão Francisco de Arruda com sua gente ao porto da Vila, mandou tirar debaixo do mar uma rodela de aço do capitão dos imigos, e nove arcabuzes, e duas alabardas, e uma adaga, e achou no mesmo porto muito fato da terra e algumas rezes, que, com a pressa de se embarcarem, pelo aviso do socorro, deixaram os franceses à borda da água, onde se embarcou um barco deles com a mesma pressa, sem se achar na Vila coisa viva, nem galinha, nem galo, nem cão, nem gato, senão somente um bugio de Belchior Homem, que eles não mataram, cuidando de o levar, e com a pressa do embarcar o deixaram; achando também o dito capitão Francisco de Arruda a praça, ruas e casas juncadas de buchos de porcos e de outras alimárias, e muitas porcelanas e outras peças e bandejas da Índia, quebradas pelas ruas, porque (parece) as quebravam pelas não poderem levar e por não aproveitarem para os da terra.
E estando o domingo seguinte às duas horas andadas da noite ceando, vindo os da vigia gritando que eram chegados os franceses e uma lancha a terra, mandando com este rebate o capitão Francisco de Arruda tocar arma, se alevantaram todos das mesas e, acudindo ao porto e a outras partes onde se presumia poderem sair imigos, acharam que era um patacho que vinha de Arguim, do Cabo Branco, carregado de cação; e todos acudiram, postos em ordem pelo capitão Francisco de Arruda, com muito ânimo e desejo de pelejar, e, sendo já três horas da noite, mandou-lhe o dito capitão atirar com um falcão. Gritaram os do patacho, dizendo que eram castelhanos de paz e, então, os mandou reconhecer com batéis, que trouxeram um homem dele à terra, com que acharam ser assim como diziam, e se aquietaram todos.
Esteve o capitão Francisco de Arruda na ilha de Santa Maria (como tenho dito), por falta de tempo, dez dias com toda a gente que levou, agasalhando-a à sua custa com grande liberalidade e vontade, como sempre costuma ter para todos, de que é tido e julgado por príncipe na condição grandiosa que nele para grandes e pequenos resplandece, com que gastou de sua fazenda nesta viagem, em serviço de Deus e dos próximos e moradores da ilha de Santa Maria, quatrocentos cruzados, como tem feito e faz outros gastos grandes, assim em sua casa, como fora dela, outras muitas vezes, em qualquer honroso feito ou necessidade que se oferece. E, passados os dez dias que estiveram na terra, se partiram, e, acabados doze, chegaram ao porto da cidade da Ponta Delgada desta ilha de São Miguel, com as ditas catorze velas, em que trazia os nove navios da ilha da Madeira, que livrou dos imigos, porque, se ele não fora, todos houveram de ser tomados e roubados, vindo mais descontentes que alegres, por lhe escapar dantre as mãos uma ocasião tão bem oferecida e mal lograda. Com cuja chegada se aquietaram os corações de suas mulheres e parentes, que, como gente virtuosa, andavam fazendo muitas devações, romarias e orações por eles.
Depois dos imigos serem idos e Francisco de Arruda da Costa, capitão da gente do socorro, tornado com ela a esta ilha de São Miguel, uma segunda-feira, ao Sol posto, perto de vinte dias depois de ser saqueada a Vila, tornou uma grande nau de cossairos à dita ilha de Santa Maria com uma lancha e, chegando ao porto, ancorou logo nele, mas, sendo perto de meia-noite, se alevantou e foi com um bordo ao mar, e, como foi manhã, andando a nau à vela, veio a lancha cometer o porto, chegando tão perto de terra como um tiro de arcabuz, fazendo muito por entrar na ilha, e a nau na sua esteira. O qual cometimento vendo o Capitão Pero Soares de Sousa, mandou a Baltazar Velho de Andrade, natural da cidade do Porto, fidalgo de cota de armas, casado na dita ilha, homem principal, com perto de sessenta homens, que defendesse a desembarcação aos imigos, que vinham ao porto direitos, os quais, como viram a gente posta em ordem para lhe resistirem, tornaram atrás, aonde a nau vinha e, depois de estarem nela espaço de uma hora, tornou a lancha com um barco a cometer a terra, e, indo correndo a costa para a banda Leste, foram deitar gente na ponta de Malbusca, duas léguas da Vila, a que acudiram alguns homens aí moradores e outros que da Vila foram ao longo da costa para lhe defenderem a desembarcação, querendo sair em terra, e, vendo que desembarcavam, acudiram depressa, fazendo-os tornar a embarcar às arcabuzadas para onde a nau andava, que logo foi seu caminho, sem mais ser vista.
Presume-se ser esta nau a maior das que tomaram a Vila e que a mais pequena era ida com o despojo que dela levaram, e esta grande tornava a tomar terra para se fornecer de algumas coisas necessárias, e principalmente de água, porque o tempo que estiveram na ilha não foi mais que para recolher o que nela acharam, e nem para isso o tiveram, porque ainda lhe ficaram muitas coisas que puderam levar, e algumas delas entrouxadas que não levaram, por o tempo lhe não dar lugar, pela pressa com que se embarcaram.
Também se suspeita que, desta segunda vez que esta nau se foi da ilha de Santa Maria, tomou o galeão S. Lourenço, em que este mesmo ano veio Rui Gonçalves de Câmara, Capitão desta ilha de São Miguel, que viera da armada em companhia de D. Pedro de Almeida, que aquele ano veio por capitão-mor às ilhas. Este D. Pero é filho de D. Lopo de Almeida e irmão do ilustríssimo D. Jorge, arcebispo benemérito que foi de Lisboa , e é casado com uma filha de D. Francisco Pereira; esteve por embaixador em Castela, homem de muito nome.
Vinha por capitão do galeão S. Lourenço Cristóvão Juzarte, homem fidalgo, natural das partes da Índia e soldado de muitos anos e muito esforçado, e, por ser tal, tinha nome “Tigre” de alcunha; e indo-se D. Pedro, capitão-mor, para o Regno, em companhia de três naus da Índia que achou, ficou o Cristóvão Juzarte por capitão-mor da armada que ficava, a que outros capitães não quiseram obedecer, pela qual razão se tomou o galeão, pelejando esforçadamente o capitão e alguns criados de el-Rei, que iam nele. A mais gente dizem que deixou de pelejar por verem o capitão ferido, de que morreu daí a poucos dias em poder dos imigos, e outros muitos mortos e feridos, de maneira que se renderam, o que não fizeram, se o capitão não fora ferido de feridas mortais e os mais criados de el-Rei, que com ele pelejaram.
Ainda que não deixou de haver algum descuido, que é certo em portugueses, e se não houvesse, antre alguns deles, desejosos de querer mandar, desprezarem-se de obedecer, cuidando cada um que é mais para ser obedecido, segundo são determinados, e têm por pundonor não tornar atrás no que uma vez emprendem (sic), a que querem de verdade poor o rosto, de maravilha, ou nunca seriam vencidos, e sempre ficariam vencedores

Da ilha de Santa Maria apareceram no mar quinta-feira, dois de Novembro de mil e quinhentos e oitenta e nove anos, duas naus, sem chegarem em todo dia a ela, e a sextafeira seguinte eram já passadas ao Sul do porto, e na volta do mar se iam, dando mostras de não fazerem conta da terra, tanto que só se divisava aquela grande nau em que ia o Conde de Nortimborlão (sic), que assim dizem tem o título.
O Capitão da ilha, Brás Soares de Sousa, como é experimentado e acordado na guerra, temendo-se de algum engano, deu ordem que a gente fosse a repousar, e, tendo vigia no mar, deram vista de três barcaças, duas grandes e uma pequena, a tempo que se pôde bem pôr em ordem o que convinha; chegaram somente uma grande barcaça e uma lancha a terra, e houveram vista de dois navios que no porto estavam, chegados do Brasil, carregados de açúcar, pau e outras coisas, um dos quais estava fora do sítio donde podia ser defendido, porque o Capitão mandou aos mestres que se recolhessem para dentro, e, por este vir todo seguro, não quis arriscar a se perder na terra, antes, desamparando, se acolheu a gente, deixando-o ao imigo.
Quiseram os ingreses, com suas mostras de arcabuzaria, mosquetaria, piques e alabardas, fazer entrada em terra, e, a voltas disso, entraram dentro no navio, aonde o Capitão mandou a sua gente lhe atirassem, assim com arcabuzes como com os berços e falcões, bem cheios de pedras, que dentro nele e nas barcaças faziam efeito.
E, porque eles estavam senhores do navio que mais perto da terra estava, desceu o Capitão Brás Soares de Sousa do alto donde está a artilharia abaixo ao porto e, fazendo lançar dois barcos ao mar, com o ímpeto da gente desampararam os ingreses a presa, deIxando dentro nela alguns arcabuzes, alabardas, piques, e remos e quantidade de pólvora, que prestou para o outro dia se lhe dar combate, e se foram acolhendo com grande pressa.
Parece que o número de gente que viria nestas duas barcaças (porque a outra, por pesada, não chegou a tempo) deviam ser como cento e cinquenta homens, gente lustrosa e tão animosa e valente, como bem deram mostras do atrevimento que tiveram.
Ao voltar na embarcação pequena, se não deu vista de mais de seis ou sete homens botando todos os quartos, que para água traziam, ao mar; se tornaram às naus, durando este combate, sempre travado, uma hora e meia, sem se fazer mais dano em terra que um só homem, que ficou morto.
Ao segundo dia, pela manhã, vieram duas naus mais pequenas a ancorar no porto, muito perto das trincheiras, donde atiraram quase sessenta peças de artilharia, que por a Vila deram em algumas casas, mas sem dano notável.
Destas naus partiu um pequeno barco a terra, parecendo que vinha com prumo a sondar a altura do porto, a que, com alguns arcabuzes que de uma ponta atiraram, parece mataram dois homens, e os viram cair; e logo se tornaram para as naus, donde, passado pouco espaço, se começou a gente a embarcar em duas grandes barcaças e duas lanchas mais pequenas, todos com muita ordem, indo pelo meio piqueiros e alabardeiros, e por fora os mosqueteiros e arcabuzeiros. Deram, então, de uma das naus uma bandeira de campo à grande barcaça, e, depois, tornada a subir, lhe deram outra, que parecia ter armas, ou as do conde ou reais, a qual foi posta na proa. Começando a marchar para a terra, ao som de seis trombetas e das caixas que por cima das cabeças dos homens se tangiam, não havendo lugar para elas caberem, chegados a um passo, começaram dar suas surriadas com tanto ímpeto e terror, que fazia espanto; e por o lugar e sítio ser de altas rochas , o eco dava mais matéria de estrondo.
Estava neste sítio e estância uma companhia de gente, que afirma o capitão dela, André de Sousa, teria como cinquenta arcabuzeiros e outros tantos piqueiros, a quem mandou o Capitão-mor, seu sobrinho, que não atirassem, nem se atirou até eles não chegarem a terra.
E saltando o primeiro homem, houve dois sinais; um foi que o padre Manuel Curvelo , pessoa nobre, de boa vida e costumes, tirada a imagem de Nossa Senhora da Conceição, se pôs no alto da rocha e sítio, animando com palavras os soldados e tanto lhe causou ânimo e ao imigo medo, que, logo em dando o Capitão o outro sinal e começando a dar cárregas de arcabuzaria, pouco prestaram mais os imigos.
E um soldado, a quem se acabou a pólvora, se chegou ao seu capitão, André de Sousa (que o fez valorosamente em aquele conflito), pedindo-lha; respondeu que a não havia e, amostrando-lhe as pedras com que devia de atirar, começou este, acompanhado de alguns, a fazer tiros com elas e tão importantes, que os mesmos, que com arcabuzes tiravam, deixandoos das mãos, arremeteram às pedradas, que não pouco fruto fizeram.
Logo se começaram a retirar as lanchas mais pequenas, e com ímpeto tirado de fraqueza se foram acolhendo sem esperar pelas outras; então, saltou um em terra e, pondo os ombros à barcaça grande, que encalhada estava, a botou, ainda que de terra o derribaram com uma pedra, e, recolhendo-o dentro, se foram para fora com menos alarido do que para a terra trouxeram. A este tempo que eles se foram para fora, foi esta grande barcaça descaindo tanto para a costa, que, se a não socorreram outras, se perderam por falta de gente que a governasse e remasse; e se afirma abaterem a bandeira e como arrasto a levavam, e se travou com a volta que às naus chegou briga em uma nau, que de terra bem se julgou, a qual veio a tanto, que um dos que na nau estava, arremetendo com fúria, se lançou ao mar, e com muita tristeza se foram na volta das outras naus.
Ficaram em terra muitos de seus arcabuzes e mosquetes, piques, alabardas, espadas e uma trombeta; e depois foram saindo do mar, pouco a pouco, muitas armas, que são de muita estima. E pela tristeza que levaram e afirmarem pessoas que este Conde ia pessoalmente a todas as empresas, se conjectura que acabaria ali, o que parece ser assim, porque a gente que vinha nas barcaças toda era muito lustrosa.
Outras vezes foi cometida a terra com naus armadas e lanchas de contrários, a que o valoroso Capitão Brás Soares com muito saber respondeu, e com grande esforço seu e dos moradores dela acudiu, apostados todos a morrer por sua defensão, o que vendo os imigos, se tornaram a recolher, sem ousarem desembarcar.

Como o Capitão Pero Soares de Sousa viu a força e número dos imigos e a Vila deles possuída, logo no mesmo domingo fez esquipar um barco, que estava varado a Sant’Ana, e mandou nele um seu cunhado, Rodrigo de Baeça, castelhano de nação, que fora casado com uma sua irmã, a esta ilha de São Miguel pedir socorro. E, chegando ele à segunda-feira seguinte, às duas horas depois de meio-dia, à cidade da Ponta Delgada, desta dita ilha de São Miguel, deu a triste nova ao Capitão Manuel da Câmara, o qual, no próprio dia e hora, mandou logo com muita pressa chamar alguns dos principais homens da dita cidade, antre os quais foram Francisco de Arruda da Costa e o Grão-capitão Francisco do Rego de Sá, João de Melo, fidalgo, André Botelho, Baltazar Rebelo, Pero Álvares, cunhado do corregedor Manuel Álvares; o seu ouvidor; o dr. António de Almeida e o licenciado Gaspar Leitão, juiz de fora, Simão do Quental, sargento-mor desta ilha de São Miguel e capitão do número de Sua Alteza, Cristóvão de Crasto, também capitão do número de Sua Alteza, Francisco Dosouro (sic) , que fora sargento-mor desta ilha, Diogo Lopes, feitor que fora de Sua Alteza, e outros nobres e honrados cidadãos. Os quais, todos juntos em conselho, foram de parecer que com toda a brevidade se socorresse a ilha de Santa Maria.
E perguntando o Capitão-mor Manuel da Câmara a Simão do Quental, sargento-mor, quem levaria a gente a seu cargo, disse ele que ninguém a podia levar melhor que ele, pois o entendia bem, e que para o tal tempo e ocasião que estava oferecido e esperava o honrasse, dando-lhe o que tanto desejava. E não lhe respondendo o Capitão-mor a seu propósito, por certos inconvenientes, elegeram a Francisco de Arruda da Costa por capitão-mor do socorro.
Com a qual eleição desesperado o sargento-mor Simão do Quental do que pedia, pretendeu buscar alguma invenção proveitosa, para que em tal ocasião pudesse mostrar os desejos que tinha de servir a Deus e a seu Rei; e, entendendo que o socorro não era possível fazer-se prestes em menos espaço de dois dias, disse ao Capitão-mor Manuel de Câmara que a Vila se tomara ao domingo, quando todos dormiam, e os moradores dela não podiam fazer mais que fugir com as calças nas mãos, e que forçadamente deviam de ter as armas perdidas e a gente havia de andar escondida e espalhada pelos matos por não ter com que se defender, e que o socorro, que esperavam desta ilha, não era poderoso, para que, sem mais ajuda, se pudesse livremente dar batalha aos franceses, pelo que a ele, sargento-mor, lhe parecia bem (porque entendia que o melhor da guerra era soprar e comer e, assim, o requeria a ele Capitão-mor que à própria hora lhe mandasse dar arcabuzes, pólvora e pelouros para se partir logo no barco que trouxera a nova, somente com seu tambor e um filho, chamado António do Quental, para ajuntar e armar a mais gente que pudesse e tê-la em ordem, para que, quando chegasse o socorro, todos juntos melhor e mais seguramente pudessem tomar vingança daqueles hereges, que tão profanadas tinham as igrejas de Deus e saqueada a Vila, com algumas mortes dos vizinhos dela.
Este parecer do sargento-mor foi aprovado por bom pelo Capitão Manuel de Câmara e por todos os mais que ali estavam presentes, ainda que não por todos, como é costume acontecer em ajuntamento de muitos e diversos juízes; e na mesma hora, sem dilação alguma, foram dados os arcabuzes, pólvora e pelouros que pedia, com que logo se embarcou com muita diligência na segunda-feira à tarde, somente com Rodrigo de Baeça, que trouxera o recado, e com um filho seu, e os barqueiros que remavam o barco, e com o seu tambor. E navegando aquela noite, como convinha a soldado, deu-lhe Nosso Senhor tal viagem que à terça-feira, meia hora antes de amanhecer, desembarcou em Sant’Ana, da parte do Norte, uma légua donde os imigos à parte do Sul estavam.
Antes de chegar o sargento-mor, entretanto que o foram chamar e ele foi, havia sucedido que os cossairos tinham mandado pedir ao Capitão-mor da ilha de Santa Maria cinquenta vacas e vinte porcos e trinta carneiros, ameaçando, se lhos não mandasse, que haviam de pôr fogo à Vila e às igrejas, ao que respondeu o Capitão que as cinquenta vacas não era possível mandar-lhas, pelas não haver em terra tão pobre, mas que lhe daria trinta, que eles aceitaram; e o Capitão mandou começar de ajuntar e mandar poucas e poucas, para com isto os entreter até chegar o socorro que esperava. E dizem alguns que também lhe mandaram pedir mulheres para lhe amassar pão e fazer biscoito, ao que o Capitão respondeu que não podia ser, por as mulheres haverem medo deles e não quererem ir, e suspeita-se que, se as mandaram pedir, foi por se assegurarem do arreceio que tinham de lhe vir algum socorro, entendendo que, se lhas mandassem, o não esperavam e podiam, então, estar seguros.
Chegado neste tempo o sargento-mor a Sant’Ana (como tenho dito), a primeira coisa que fez foi informar-se donde estava o Capitão-mor da ilha, Pero Soares de Sousa, e de uns pescadores soube estar daquele porto, onde desembarcara, uma légua, à vista dos imigos, com cem homens, pouco mais ou menos; e sabida esta verdade, lhe mandou logo recado que por nenhum caso deixasse passar pessoa alguma aonde estavam os contrários, e para isso pusesse todas as vigias necessárias para que não tivessem aviso do socorro que lhe ia de São Miguel, o que o Capitão-mor fez com muita diligência. E logo, com toda presteza, se carregou dos arcabuzes, ele e os barqueiros, com os mais que ali pôde ajuntar, que seriam, por todos, dez ou doze homens; todos carregados das mais munições começaram de marchar para onde estava o Capitão-mor da dita ilha.
E sabendo esta nova pela terra por onde passava, lhe começaram de acudir algumas pessoas que andavam abscondidas pelos matos, e não menos espantados que desarmados, aos quais animando o sargento, lhes dava armas com que se defendessem.
Caminhando desta maneira, chegou à vista dos imigos até à ermida de Santo Antão, que está acima da Vila pouco espaço, onde achou o Capitão-mor, de que foi recebido com muito gasalhado e devida cortesia, e logo mandou deitar bando que todos lhe obedecessem como a sua própria pessoa.
Achou-se o sargento-mor, com a gente que foi ajuntando e com a que tinha o Capitão-mor, com duzentos e cinquenta homens armados; e uns diziam que somente eram desembarcados na ilha cem arcabuzeiros franceses, outros que trezentos. E visto pelo sargento-mor quão temorizados andavam os moradores da ilha, temendo não quisessem pelejar, retirou a gente atrás em parte oculta, onde não fosse vista dos imigos, e ali a pôs em ordem, feito seu esquadrão conforme à gente e sítio do campo, com tenção (se não quisesse pelejar) de aguardar pelo socorro, e, se com prontas vontades o quisessem fazer, não esperar que outro fosse ganhar a honra naquela empresa, que ele antre as mãos tinha.
E, depois de posta a gente em ordem, lhe fez uma prática, como bom e discreto soldado veterano e homem experimentado em coisas semelhantes, dizendo-lhes claramente a vontade que tinha, ainda que estrangeiro, de morrer por seu Deus e por seu Rei, e por eles, em tão justa guerra, dando-lhes a entender quantas mais razões tinham eles de fazer o mesmo, pois lhe tinham sua própria pátria usurpada e saqueada, e viam arder suas próprias casas, com mortes de seus pais, irmãos e parentes, prometendo-lhes que iria diante quanto eles quisessem, animando-os todo o possível. Mas não abastou coisa nenhuma a persuadi-los que quisessem usar de alguma virtude das armas, porque os mais calaram, pondo os olhos no chão; e, ainda que havia antre eles alguns de valorosos ânimos, não abastavam sós resistir à força dos contrários, dizendo-lhe também o vigairo Baltazar de Paiva que não lhe parecia bem ir logo com aquela gente dar nos contrários, porque arreceava que só o deixassem.
Depois disto, lhe fez o dito sargento-mor outra prática, pedindo-lhe muito por mercê a todos se animassem e, já que não queriam ganhar de dia as honras perdidas, não quisessem que ficasse em perpétua memória dizerem os da ilha de São Miguel que, se eles não foram, viveram toda a vida desonrados, e que muito melhor lhes vinha ganharem eles por suas próprias mãos o perdido, para se desculparem com Deus, e com Sua Alteza, e com o mundo, que aguardar ajuda de outra parte, não a havendo mister, porque eram duzentos e cinquenta contra cem velhacos e hereges, porque ele não tinha para si que mais fossem; pondo-lhe diante que, se não queriam pelejar de dia, que à quarta-feira, de madrugada, uma hora antemanhã, os poria em ordem de uma encamisada, com que sem perigo nenhum os tomariam às mãos. Tão pouco quiseram os da ilha aceitar este partido, por verem estar já o mau recado feito, e, pois que tinham suas fazendas perdidas e roubadas, não quiseram aventurar as vidas pelo que não podiam, nem esperavam, já cobrar. O que visto pelo sargento-mor, ficou tal qual pudera ficar outro tão bom soldado de vinte anos de soldadesca, que tinha jubilado, e, vendo não ter outro remédio, determinou, desesperado, esperar o socorro.
Neste tempo, fugiu um negro de um Manuel Fernandes Faleiro, homem dos principais da terra, para os cossairos, de quem souberam como o sargento-mor era entrado e estava aguardando o socorro da ilha de São Miguel. E logo da Vila saíram perto de quinze ou vinte arcabuzeiros franceses para subirem aos Fachos, que é o mais alto da ilha, e daí vigiarem o socorro, que se esperava, para saírem a tomá-lo no mar. Mas o sargento-mor, entendendo o que podia ser, com muita diligência lhe saiu ao passo, com outros tantos arcabuzeiros valentes e escolhidos, e os fez tornar a recolher à Vila; e, tornando-se a Santo Antão, onde estava o Capitão-mor com trinta ou quarenta homens à vista dos imigos, e ajuntando-se todos, viram sair da Vila obra de cento e cinquenta franceses, todos arcabuzeiros, em um esquadrão fechado, os quais contou o vigairo Baltazar de Paiva, estando detrás da ermida de Santo Antão, a cavalo, onde se deixou ficar para este efeito de ver o número dos contrários; e iam para onde eles estavam. E como o sargento-mor tinha a mais gente de Santo Antão pouco mais de um tiro de arcabuz, deixando encarregado ao Capitão-mor que entretivesse com aquela gente os imigos, enquanto pusesse o esquadrão em ordem de investir com eles, porque entendia que forçadamente haviam de pelejar, e, logo a toda a pressa correndo, foi poor (sic) a gente da maneira que em tal tempo convinha à honra de um soldado veterano. E, piedosamente, acabava de os poor em ordem, quando o Capitão-mor, não podendo resistir aos imigos, se ia retirando para onde o sargento estava, seguindo-o os contrários às arcabuzadas, e descobrindo a gente e vendo-a em ordem de guerra, se detiveram por espaço de uma Ave-Maria, e logo começaram de caminhar por diante e escaramuçando, como soldados práticos na guerra. E espertando o sargento-mor a gente, pedindo a todos que não tirassem até que não chegassem mais perto e ele o mandasse, e tirando e arremetendo fosse tudo uma coisa, animando-os com palavras conformes ao tempo, eles, como bisonhos na arte militar, não querendo dar por o que lhes ensinava, tiravam os seus arcabuzes por espantar aos contrairos.
E como o sargento-mor andava diante de todos dez ou doze passos, estando dos imigos um tiro de pedra de mão, afligindo-se muito a gente, perguntaram o que haviam de fazer e ele lhe respondeu que cada um fizesse como visse que ele fazia. E, logo, dizendo isto, diante de todos arremeteu aos imigos, seguindo-o e acompanhando-o alguns mais esforçados da ilha, que juntamente arremeteram com ele contra os contrários, os quais se retiraram atrás cinco ou seis passos, mas logo tornaram a carregar sobre o sargento-mor, com que se afastou a gente algum tanto atrás, o que vendo o sargento, pediu a todos que o quisessem seguir e, pondo diante seis ou sete homens que lhe pareciam mais esforçados, animando a todos, tornou a arremeter com os imigos, os quais se tornaram a retirar, como de princípio, e tornando outra vez sobre o dito sargento-mor, andando já com eles quase baralhado, seu filho lhe pegou de uma manga da cajaca (sic) e lhe disse que se tivesse, porque a gente o não seguia. Olhando, então, ele para trás, viu-se de todos desamparado, pelo que lhe foi necessário ser tão valente pelos pés como soía sê-lo na guerra pelas mãos, e, chegando aos seus, com palavras e rogos os fez deter e alguns deles detrás de umas paredes baixas, cobertas de silvas, donde se defenderam dos imigos por espaço de uma hora; os quais, tornando-se a retirar à Vila, de caminho puseram fogo à ermida de Santo Antão, mas não ardeu dela mais que um pedaço do retábulo e as portas, porque, como eles foram mais abaixo, lhe acudiram os da terra, que iam carregando sobre eles às arcabuzadas até junto da Vila, e quiseram passar mais adiante, mas o sargento-mor o não consentiu, temendo haver dentro nela alguma cilada. À entrada da qual ficaram perto de cinquenta dos imigos, tendo rosto aos da terra, jogando as arcabuzadas de parte a parte até noite; os mais, assim como foram de cima, se embarcaram logo, querendo-se a este tempo já encobrir o Sol, e os outros, que ficaram ao longo de uma parede, como anoiteceu, fazendo lume e pondo umas pedras sobre outras sobre a parede, para que parecessem as suas cabeças (como na verdade o pareciam, e por tais as julgaram os da terra) e pondo também sobre elas os morrões acesos, para parecer que estavam ali presentes, se absentaram a todo correr e foram embarcar; os quais ouvindo um tiro de arcabuz que um de dois homens da terra atirou, foi o seu medo tal que, com ele e a pressa que levavam, se virou o barco com eles, onde lhe ficaram debaixo do mar algumas poucas coisas, que adiante direi, que se acharam ao outro dia pela manhã, que era quarta-feira, oito dias do mês de Agosto.
Antes disto, tinham já lançados todos os batéis ao mar, senão este, que ficou alagado pela pressa da embarcação, e uma caravela, mas as outras levaram consigo.
Saquearam estes cossairos a Vila de tal maneira no domingo, segunda e terça-feira, até a noite dela, que se embarcaram, que se não restaurará tão cedo, por ser já agora a terra mui pobre.
Nas igrejas fizeram muito dano; roubaram tudo o que acharam de ornamentos; somente uma vestimenta quotidiana, por acerto, e a prata, ficou pela indústria do tesoureiro, que primeiro a tirou. E levaram uma custódia (como já disse), que estava fechada na caixa do Santo Sacramento, e um cálice de uma capela que estava em um almário, e quebraram algumas cruzes e imagens de pau e a porta do sacrário, de que se dantes tirou o Santo Sacramento pelo bom acordo e diligência do vigairo.
Na mesma igreja parrochia (sic) usaram de muitas descortesias e sujidades, porque nela dormiam muitos, e comiam, e faziam o que mais queria sua maldade. E o mesmo fizeram nas ermidas. E por zombar (como contavam dois ou três velhos, que estavam na Vila forçados), vestiam as sobrepelizes dos sacerdotes e meteram um furão dentro em um açafate, à maneira de cofre, com a cabeça fora por um buraco que fizeram na coberta de cima, e assim contrafaziam a procissão do Santo Sacramento. Na companhia deles dizem que vinha um ingrês, que havia já vindo à ilha a comprar urzela, o qual foi o que lhe mostrou a entrada, pela ter já dantes sabida e vigiada, porque andara muito devagar vendo todos os portos da terra, quando nela estivera.
Morreram, nos encontros que houve com os imigos, dos da terra dez homens, e feriram onze, e um dos feridos foi António Fernandes, escrivão dos órfãos, natural desta ilha de São Miguel, que foi dos que atiraram com o tiro na primeira entrada e sempre se achou na dianteira em todos os encontros, como homem esforçado.
Dos imigos também se suspeita que morreram alguns, mas não se achou rasto de mortos, senão de um só que o mar lançou fora, atravessado pelo peito de uma arcabuzada, porque outros morreram e alguns da ilha viram matar, mas logo os iam aboiar no mar por não serem vistos dos da terra. Feridos foram muitos, porque as mais das casas da Vila ficavam cheias de estopadas e fios, e, principalmente, a do vigairo, por ser mais chegada ao porto, e os colchões e lençoens (sic), que ficaram todos cheios de sangue.
Além de embarcarem da Vila quase tudo o que nela havia, levaram os tiros, que eram quatro, dois falcões pedreiros e dois berços, que el-Rei tinha dado havia pouco tempo. Os sinos ficaram (parece), por não terem tempo de os tirar, mas levaram uma campainha, que estava no coro, e um sino pequeno da casa da Misericórdia.
Como tenho dito, estas naus eram duas, uma muito grande, de quinhentos tonéis, a outra mais pequena, de trezentos; a lancha seria do tamanho de uma fusta de doze bancos. Podiam vir nelas até quatrocentos homens, pouco mais ou menos, ainda que eles afirmavam que vinham seiscentos, por trazerem gente de outras naus que se perderam na Flórida, que a armada de Castela metera lá no fundo, e que aquelas escaparam, por serem melhores de vela, e a maior era capitaina de toda a armada.
Isto mesmo contava um negro, que vinha em sua companhia, e também se soube depois que esta armada fora desbaratada, na Flórida, da armada de Castela, e que estas duas naus escaparam. A qual armada se suspeita que saiu de um porto de França, que se chama Abra Nova, e que era de um senhor dali perto, mas escravo do interesse e capitão do demónio; alguns dizem que se chamava Corneles, e outros Sansão .
Sendo certificado depois a el-Rei da boa diligência que o sargento-mor Simão do Quintal (sic) neste socorro tivera, lho agradeceu muito e lhe mandou dar quarenta cruzados, de que lhe fez mercê, e doze mil réis de renda, que são de ordenado de capitão do número, que ele estimou em muito, por valer mais a honra que o proveito.