Enquanto isto, que atrás disse, passava, as mulheres se recolheram todas, com muita pressa, para fora da Vila, e as mais delas em camisa, tão súpita e não esperada, nem cuidada, foi a chegada destes cossairos; e sendo esses homens, uns mortos, outros feridos, e os que ficavam poucos, por estarem recolhendo suas novidades fora da Vila, não houve mais resistência, e cada um fez por se recolher e salvar a vida, que vale mais que a fazenda, porque, quanto ao que à honra tocava, não se pôde mais fazer.
E assim os imigos, indo pela Vila, sem ordem nem esquadrão, senão como cada um queria, três a três, e a quatro a quatro, entretanto uns na igreja da Misericórdia, começaram a tratar mal o altar, vendo-os Fernão Monteiro de Gamboa, que eles não viram que estava no coro, ferido da maneira que tenho dito, até que eles passaram, e assim foram até o cabo da Vila, uns por uma parte e outros por outra, despejando e roubando o melhor dela.
O vigairo Baltazar de Paiva, até este tempo, sempre teve para si que não entrariam aqueles cossairos a Vila, e, cuidando que se defenderia, andava na dianteira, ajudando e animando a todos. E vendo neste tempo que já entravam pelas ruas da ermida de Nossa Senhora da Concepção, onde estava ajudando a defender a entrada, lembrando-lhe o Santíssimo Sacramento, foi correndo a sua casa buscar umas chaves para o ir tirar do sacrário e pôr em cobro. Chegando a casa, chegava um seu moço, de idade de dezoito anos, chamado Belchior Luís, com o seu cavalo, de fora, e, mandando-lhe que trancasse as portas e selasse o cavalo, se meteu dentro em casa a buscar as chaves e, querendo sair de casa, foi primeiro ver da janela da rua se apareciam alguns imigos e viu passar adiante da sua porta três, com piques nas mãos, espadas na cinta, e, tornando-se à janela do quintal, para se deitar por ela abaixo, viu já no mesmo quintal, junto da porta, quinze ou vinte soldados e, tornando-se à janela da rua, viu em baixo, no cabo dela, vir para cima quatro ou cinco arcabuzeiros. Determina-se, então, sair pela porta da rua, e, antes de sair, disse ao moço, que lhe estava selando o cavalo: — “Moço, deixa acabar estes ladrões de entrar na Vila e, como não vires nenhum no quintal, sai-te por ele no cavalo e vai pela ribeira arriba ter à igreja, que lá me hás-de achar, ou morto ou vivo”. E, dizendo isto, saiu com muita pressa, a todo correr, ficando-lhe os arcabuzeiros nas costas, que lhe tiraram um tiro sem acertar, por ver as cabeças de outros que estavam já nos quintais para saltar na rua de António Coelho, não ousando ir por ela, e passou por antre os três cossairos, que diante dele vira passar dantes com os piques, os quais foram após ele, sem o poder alcançar, até se pôr na rua Direita, por onde foi ter à igreja.
E neste tempo entravam já os imigos por muitas partes na Vila, matando os que podiam alcançar e espantando outros que fugiam.
Chegando o dito vigairo ao adro da igreja, achou nele um António Pinto, casado, homem trabalhador, e lhe disse: — “Entretende às pedradas estes ladrões, que não entrem na igreja, enquanto vou tirar do sacrário o Santíssimo Sacramento”. E o António Pinto pelejou, como valente, detendo-os um pouco espaço às pedradas, que, se isso não fora, sem dúvida nenhuma os imigos mataram o vigairo dentro na igreja. O qual descendo pelos degraus do altar-mor com o Santo Sacramento em um cofre, entrava o seu moço (que rompeu pelos franceses, sem o matarem), trazendo-lhe o cavalo por onde o dito vigairo lhe tinha mandado, e, entrando sobre ele pela porta travessa da igreja, da banda do Sul, foi ter à capela-mor, onde se apeou, e, subindo o vigairo no cavalo, deu, entretanto, o cofre com o Santo Sacramento ao moço, e, tornando-lho a tomar, lhe disse que o seguisse, apegando-se no rabo do cavalo; e se saía pela mesma porta travessa do Sul, por a outra, da banda do Norte, estar fechada com chave da banda de fora, e a porta principal somente ter um postigo aberto, e os imigos defronte.
Saindo ele pela porta do Sul, viu vir quatro arcabuzeiros demandar a mesma porta e, perplexo e duvidoso por quais deles romperia com o cavalo, olhou para trás e disse ao moço: — “Sigue-me (sic) e pega-te ao rabo do cavalo, que quero romper por onde estão estes dos piques, que estão da banda da porta principal, que tem menos perigo que estoutra dos arcabuzeiros”. E neste olhar para trás viu aberta a outra porta travessa da banda do Norte, estando ela (como disse) fechada de fora com chave e de dentro com tranca, e sem atentar, então, por isso, cuidando que alguém lha abrira, voltou com o cavalo, saindo por ela correndo, sem ver ninguém junto da porta; e logo os imigos o cercaram, assim pela banda da porta principal como por detrás da capela-mor, e, saltando ele com o cavalo o peitoril do adro, sem poder ir pelos portais dele, por estarem tomados dos contrários, se acolheu, com o moço detrás do cavalo, pela rua arriba, fora da Vila, e ali lhe tiraram uma arcabuzada, que lhe deram pela borda do sombreiro, indo alguns quatro ou cinco de piques e espadas na cinta após ele, e chegando arriba das derradeiras casas da Vila, onde morava Amador Vaz Faleiro, que já por eles, em baixo, ficava morto, vendo a Helena de Alpoem, mulher deste defunto, com duas netas suas, lhe disse: — “Saí fora, Senhora, e fugi, que vêm aqui os cossairos!” E ela começou a correr, com passo vagaroso de oitenta anos para cima, que tinha de idade, levando consigo as meninas, com cada uma sua trouxinha à cabeça; e, levando-as diante de si e animando-as que corressem, as iam alcançando os cossairos, pelo que foi necessário ao vigairo acolher-se a cavalo pelo não matarem, sem lhe poder valer. E, chegando à ermida de Santo Antão, achou nela muita cópia de gente, homens e mulheres, onde, tirando o Santíssimo Sacramento do cofre, lho amostrou, dizendo algumas palavras de consolação espiritual, que aquele tempo requeria, com que houve grandes clamores, gritos e lágrimas de todo o povo. E acabado isto o recebeu, com muita reverência e devoção, acompanhada também com muitas lágrimas.
Não há dúvida senão que milagrosamente escapou o vigário da igreja principal com o Santíssimo Sacramento e se lhe abriram as portas travessas da banda do Norte, por si, ou algum Anjo, por mandado de Deus, lhas abriu, porque elas estavam fechadas da banda de fora, e de dentro com a tranca, e não havia ali de dentro nem de fora quem as pudesse abrir senão ele e o seu moço, que as viram abrir naquele grande conflito, de que não podia escapar com a vida, se Deus lhas não abrira. Nem os imigos ali haviam chegado, pelo que o dito vigairo, para verificar o milagre que Deus fez, contou depois na estação, em muitos domingos, este caso, perguntando se alguma pessoa se achara ali, ou fizera por abrir naquele tempo aquelas portas, e não se achou alguém que tal fizesse, nem ao tal tempo ali se achasse, senão António Pinto, que foi o derradeiro que dali partiu sem chegar à dita porta, por onde ficou claro ser milagre que Deus fez, de que o vigairo não tirou estromentos por não se achar ali mais gente que ele e o seu moço, sem levar, por antre os imigos tão armados, outra fazenda, senão a Deus, que é toda riqueza; e, por poor (sic) em cobro o Santíssimo Sacramento e fazer por defender a terra, como pai da pátria, não lhe lembrou sua casa nem o que nela tinha, que valeria mais de quatrocentos cruzados, que lhe roubaram. Mas o Deus que ele quis tirar do poder dos hereges o livrará a ele de outros imigos e lhe dará, pelas riquezas que perdeu temporais, outras eternas.
O tesoureiro, sentindo o rebate dos cossairos, havia tirado também a prata da igreja que ele tinha a seu cargo, levando consigo três cálices de prata, e um dourado, e a cruz e turíbulo, também de prata, e todos os corporais que havia na igreja. A outra se perdeu, por ele não ter a chave que tinham os mordomos do Santo Sacramento, que era uma custódia e todos os ornamentos da confraria, que estavam fechados em uma caixa. E também a da Misericórdia foi roubada dos imigos, e um cálice e ornamentos da capela de Duarte... , que estava tudo fechado em um armário, e a coroa de prata da imagem de Nossa Senhora, com todos os ornamentos da igreja.
Despejada desta maneira a Vila, e entrados os cossairos e posta a maior parte deles junto da igreja principal, e outros andando roubando, a quem primeiro chegaria para levar as primícias do que achassem, ficaram nela somente dois ou três homens velhos, e um negro cego, e duas mulheres muito velhas, de setenta anos para cima, e mais dos oitenta, uma chamada Helena de Alpoem, mulher de Amador Vaz Faleiro, o primeiro homem que mataram, e uma neta sua, menina, filha de Matias Jorge, e outra neta sua, bastarda, também menina, como tenho dito; e a outra mulher velha era Caterina Bernaldes, mãe do padre Bartolomeu Luís, ali beneficiado; e nenhuma outra mulher tomaram, pela bondade de Deus, que foi uma mercê mui grande que ele fez a toda a gente da terra; e está claro que o encontro que tiveram os da terra aos franceses foi causa de não tomarem muitas mulheres nas camas, porque, como disse, em camisa saíram as mais delas, sem salvarem mais que suas pessoas.
Estando os imigos de posse da Vila, os homens, que escaparam, se recolheram todos a uma ermida de Santo Antão, que está direito da mesma Vila ao Noroeste, pouco mais de dois tiros de besta, onde, ajuntando-se os mais chegados moradores e outros de mais longe, que iam para a igreja ouvir missa, esperaram pelo Capitão Pero Soares de Sousa, que estava naquele tempo fora da Vila, no Paúl, uma quintã sua, e, em chegando, houve logo diversos pareceres antre todos, uns que tornassem a cometer a Vila e outros em contrário, dizendo que esperassem que acudisse toda a gente da ilha, porquanto os que estavam juntos eram poucos e desarmados, pelos tomar o rebate fora, onde moravam alguns, e outros estavam recolhendo suas searas, e uns e outros tinham suas armas na Vila, já em poder dos imigos, por não irem com elas às costas aos alardos; outros diziam que os acometessem logo, antes que as naus ao porto chegassem, que neste tempo vinham da banda do Norte em distância de uma légua, e, pois os imigos que estavam na Vila não podiam ser mais que até sessenta homens, os podiam deitar fora ou vencer antes que as naus chegassem, o que não poderiam fazer depois de elas chegadas, pela muita gente que logo desembarcariam.
Estando o Capitão com estes pareceres indeterminado, se veio a determinar que fossem sobre os imigos e deu cargo a um Matias Nunes Velho e a Cristóvão Vaz Velho, fazendo-os capitães daquela gente, que fossem com ela dar sobre os imigos.
E foram logo, e chegando a eles, dois homens principais da terra começaram a dizer, correndo a grandes vozes: — “A eles, a eles, que já fogem!”, com as quais palavras começou a gente correr desordenada, e o Capitão Pero Soares de Sousa também com eles, o que vendo uns homens honrados e prudentes, se chegaram a ele, dizendo-lhe que não se fosse dali com tal desordem, mas ele, como agastado e pesaroso do que até ali havia sucedido, não atentando a razão nenhuma (porque muitas vezes qualquer destes dois extremos, ou o muito pesar ou o muito prazer, não tem conselho), tomou uma lança na mão com muito ânimo, sendo, então, homem de mais de sessenta anos, enfermo e muito grosso e pesado, dizendo que o deixassem ir que queria ser o primeiro, e com isto começou a caminhar juntamente com os mais, indo os que alevantaram a lebre por capitães da dianteira, e desta maneira foram todos a quem mais correria.
E, como os imigos viram a determinação dos da terra, começaram a recuar atrás, por ordem, pouco espaço, por verem a desordem que os naturais levavam; estando quedos, puseram fogo às casas do arrabalde, arriba da igreja, por onde pareceu aos da terra que ardia a igreja e toda a Vila, e, juntos os cossairos, que se retraíram, com os que estavam na Vila, deram volta sobre os da terra e dispararam a arcabuzaria.
E, sem falta, os imigos foram desbaratados desta vez se foram avante os da terra, mas, como viram que os contrairos lhe faziam rosto com tanto disparar de arcabuzes, se tornaram todos a recolher, por onde o Capitão Pero Soares correu risco de o matarem, ou ficar em poder dos imigos, se acaso se não achara um cavalo em que o subiram os que com ele iam, e desta maneira escapou.
E também não há dúvida senão que os cossairos foram todos vencidos e mortos, se foram cometidos com ordem, por serem poucos e alguns deles estarem já embarcados, a fazer a saber às naus, que vinham de largo, como tinham a Vila tomada, para que lhe socorressem. E o fogo, que puseram os imigos nas casas, dizem ser ou por fazer terror, ou por dar sinal que os socorressem, e que estavam em aperto, o que fez cuidar que também poriam o fogo a toda a Vila. E com isto se tornou a gente ao lugar donde havia partido. Neste encontro mataram os contrários a um Martim Fernandes, e Sebastião Pires e Simão de Araújo, e feriram a Protesilau de Loura em um braço.
Seria isto já às sete ou oito horas do dia, pouco mais ou menos, e, então, apareceram as naus, que com tempo próspero foram ancorar no porto e botaram logo em terra a mais gente, que seriam, por todos, perto de quatrocentos soldados bem armados, com que os imigos ficaram mais fortes e seguros na Vila.
O sono, Senhora, e pouca vigia, é às vezes causa de se perder a fazenda e vida; este, ocasionalmente, fez cortar a cabeça a Holofernes e desbaratar seu exército; este deu ânimo e forças a uma fraca mulher, com que matou ao valente capitão Sisara; este deu atrevimento a dois ladrões, com que mataram a Isboseph; este foi meio com que David tomou as armas a Saúl de sua tenda e cabeceira, e, segundo ficções poéticas, foi ocasião com que tomassem e se assolasse a soberba Tróia e Mercúrio furtasse a vaca Io ao pastor Argos, de cem olhos, quando com todos dormia; este privou ao grande gigante Polifemo de um só olho que tinha e causou outros muitos males, perdas e ruínas de castelos, cidades e vilas estranhas, como também foi causa de se tomar, roubar e saquear pelos cossairos uma só vila que havia na ilha de Santa Maria, aqui nossa vizinha, de que vou contando, há muito pouco tempo, como agora direi.
Um sábado à tarde, às três horas depois de meio-dia, pouco mais ou menos, quatro dias de Agosto do ano do Senhor de mil e quinhentos e setenta e seis, véspera de Nossa Senhora das Neves, que aquele ano caiu ao domingo, passou de Ponente para o Oriente, ao longo desta ilha de São Miguel, um grande galeão de cossairos franceses e uma nau mais pequena e uma zabra; e, indo ter a Vila Franca a zabra, perto do ilhéu, que está defronte da Vila, e o galeão grande perto da zabra, e a outra nau mais pequena engolfada no pego do mar, estando, pegada com o ilhéu uma nau armada do Grão-Capitão Francisco do Rego de Sá, a gente da qual e de outro navio que ali estava, vendo ir os cossairos, fugiu para a terra, ficando um só homem dentro, porque quis ficar, o qual, vendo a lancha perto, pôs o fogo a tiro, e outro lhe atiraram de terra, o que sentindo os da lancha dos imigos, eles e as suas naus se fizeram todos na volta do mar, e, navegando para o Sul com vento galherno (sic) Noroeste Nornoroeste, que, então, ventava de cima, escassando-lhe (sic) e faltando-lhe o vento, deitando ante-manhã a lancha diante a remo, e o galeão e nau indo detrás, foram amanhecer ao dia de Nossa Senhora das Neves, que era domingo, um quarto de hora antes de sair o Sol, junto do porto da Vila da ilha de Santa Maria, achando a gente da terra sem vigia, ainda dormindo e descuidada naquele tempo, sendo dantes ordinariamente vigiada de dia e de noite por mui boa ordem. Mas, porque havia oito dias, pouco mais ou menos, que eram chegadas duas caravelas que foram desta ilha de São Miguel, uma de José Gonçalves e outra de António Roiz, e sendo-lhe perguntado ao despacho se havia novas de cossairos, disseram que não, e um dia antes que a terra fosse entrada chegara um navio de Cezimbra do Porto, que viera da ilha da Madeira, respondeu, sendo-lhe perguntado, não haver novas de cossairos; com o dito dele e das caravelas vieram a descansar da vigia na terra, com lhe parecer que o mar estava seguro, o que não fizeram se tiveram outra nova, sem embargo de lhe ser muito custoso vigiarse em tal tempo, por serem todos os moradores dali lavradores e seareiros, que naquela conjunção estão sempre nas suas eiras, fora da Vila, como, então, estavam. E, pelas novas, acima ditas, de não haver imigos, estavam todos tão descansados do trabalho que tinham de se vigiarem, que, no princípio da noite dantes, a mulher do almoxarife Tomé de Magalhães, homem dos mais principais da terra, filho de Bento Dias, que também foi almoxarife, disse a seu marido que muitos anos havia que tão descansada se não achara, sem temor de imigos; e, por este seguro, que todos tinham entendido, não foram vigias à Ribeira Seca, defronte do ilhéu, que está do porto ao Sudoeste pouco menos de meia légua, que é a principal vigia para guarda da terra; e, pela mesma causa, não foi também vigia à ponta do Marvão, que fica da outra banda de Leste pouco espaço do porto, com as quais vigias se não pode entrar no porto sem serem os que entrarem sentidos. Somente vigiaram da ermida de Nossa Senhora da Concepção, que está sobre o porto, quatro homens, dois dos quais, acabando de vigiar o seu quarto, se foram dormir a suas casas; os dois, que ficaram, adormeceram por serem homens trabalhadores e irem ali cansados do trabalho.
Sucedeu também que o sábado à tarde, véspera do dia da entrada, se achou um mancebo na vigia, por nome João de Matos, que aquele dia lhe coube no pico do Figueiral, que está da Vila para a banda de Leste meia légua, donde se vigia de dia o mar, o qual vigiando e não vendo vela nenhuma, antes que se tornassem para sua casa, atou dois fachos com tenção de os pôr no lugar costumado, para que na Vila vigiassem de noite, e por temer alguma reprensão o deixou de fazer; mas, sendo caso que se puseram, não há dúvida senão que se vigiaram de noite muito, como faziam dantes.
Estando o povo desta maneira descansado, e as duas caravelas desta ilha de São Miguel, carregadas para partir para cá, já de largo, se diz que meia hora antes que nascesse o Sol três moços da caravela de José Gonçalves foram tomar cranguejos (sic) ao ilhéu e à terra, que está um quarto de légua da Vila, e, chegando ao pesqueiro, que chamam de Malamerenda, viram antre o ilhéu e a terra ir remando a lancha, e, suspeitando o que era, tornaram logo com muita pressa, remando e gritando, caminho do porto, a dar aviso às caravelas que se recolhesse a gente delas para terra; e, antes de chegarem na bateira, indo uma moça, chamada Caterina Gaspar, filha de Florença de Seixas, mais vizinha do porto, buscar água à ribeira, que está abaixo da ermida de Nossa Senhora da Concepção, viu de cima da rocha ir remando a lancha muito depressa e os moços da bateira diante dela fugindo, e, vendo isto, dando gritos, foi bater à porta de um Belchior Lourenço, pescador, dizendo com voz alta que vinha ali uma barca remando e não sabia se seriam franceses; e, alevantando-se com pressa o pescador, e vendo a lancha, foi gritando pela rua acima, apelidando a gente, dizendo que acudissem, que eram entrados franceses no porto.
Entretanto, as barcas se vinham, com o bradar dos moços, atoando para terra até abicarem nela, e a lancha atrás delas, dentro pela baía do porto, os quais, vendo os das barcas perto de si, se lançaram ao mar e a nado escaparam.
Com os brados do pescador Belchior Lourenço acordaram e se alevantaram algumas pessoas, acudindo com muita pressa com as armas com que cada um podia, e alguns sem elas, e, chegando sobre o porto e vendo a lancha, pareceu a todos que não queriam mais os imigos que levar as caravelas que nele estavam, pelo que, ao desembarcar, lhe não fizeram resistência, nem havia com quê, ainda que lha quiseram fazer; nem um homem que tinha cuidado de umas peças de artilharia, que aí estavam, estava, então, na Vila, porque ia para fora com os vereadores a fazer exame pelos lugares da banda do Norte, e, quando chegou, já eles estavam em terra.
Mas antes que a ela chegassem, trazendo o beneficiado Pero de Frielas fogo de cima da rocha, onde se ajuntaram três ou quatro homens, um dos quais era António Fernandes, escrivão, home animoso, puseram fogo a um tiro que passou por alto, por estarem já os franceses debaixo da rocha, o qual ouvindo eles, acharam-se embaraçados, como gente que não sabia haver artilharia na ilha; e, tornando-se a determinar, arremeteram à terra e, enxorando a lancha nela, desembarcaram como homens que já não tinham outro remédio, porque, tornando atrás, os podiam meter no fundo; pela qual razão se suspeita que não vinham a mais que a saltear os navios, e assim parece ser pelo arreceio que tiveram no saltar em terra e pela desordem com que acometeram, e eles próprios, depois, se espantavam da maneira com que a tomaram.
Mas, por irem enlevados nas caravelas que se acolhiam à terra, foi causa de desembarcarem nela e, por não verem mais gente que os que lhe tiraram com o tiro, escolheram e tiveram por mais seguro o ir por diante que o tornar para trás, por sentirem estarem os da terra poucos e descuidados, como na verdade o estavam. Assim que é de crer (segundo alguns) que, se as caravelas não foram, tal não cometeram, as quais caravelas houveram de partir ao sábado, véspera da entrada, mas, impedidas pelos oficiais da Câmara, por dizerem que levavam trigo sem despacho, não partiram (porque quando há-de vir algum mal, tudo se vai asando para ele). Outros dizem que vinham determinados para tomar a terra, e sinal disto é trazerem eles, como traziam, cada soldado seu cordel na cinta para amarrarem as mulheres e matarem os homens, e com tenção de chegarem duas horas ante-manhã; e, por ser longe o lugar donde a lancha se apartou das naus, não puderam os que nela iam vingar mais que ir amanhecer ao porto e, entrando pela baía dele, remando com grande força e pressa, passaram por antre as barcas e um navio que aí estava, sem fazerem caso dele, e enxoraram na areia, onde logo saltaram fora, e o primeiro que saltou, com uma partesana nas mãos, fez na areia uma cruz e se benzeu, chamando os outros com a mão que saíssem depressa. E, seguindo o capitão, começando a caminhar pela ladeira arriba, ouviram uma voz dos da terra dizendo: “Não há aqui fogo?”, agastado de o não achar para atirar aos contrários; o que ouvido por eles, disse o capitão: “Arriba, canalha, que não têm fogo!”. E depressa começou a andar, chamando pelos companheiros, que logo o seguiram, indo todos subindo pelo caminho de carro e ladeira, direito para a Vila.
Ao qual acudiram alguns homens, sc. Brás Soares de Sousa, logo-tente de seu pai, e António Fernandes, escrivão, o vigairo Baltazar de Paiva, o padre Pero de Frielas, beneficiado, Belchior Homem, o Moço, Joanne Anes, criado do Capitão, António Fernandes, sapateiro, filho de Cristóvão Fernandes, sapateiro, e Manuel Fernandes, alfaiate, lançando-lhe de cima pedras grandes pela rocha abaixo, com que os espantaram e fizeram tornar atrás, ao porto, onde se recolheram. E, antre estes primeiros que ali acudiram da terra, foi também uma mulher, natural desta ilha de São Miguel, que fez maravilhas, atirando às pedradas e acarretando pedras, trazendo-as aos homens para atirarem com elas.
Como tenho dito, da banda do Sueste da Vila está uma ribeira grande, de muita água, com que moem muitos moinhos todo o ano, e onde esta ribeira se mete no mar era antigamente o porto da Vila, a que chamam agora o Porto Velho, e passaram a serventia dele à outra banda do Noroeste, por ser melhor porto, junto de uma ribeira que leva pouca água no Inverno e no Verão nenhuma; além da qual está outra ribeira, também de pouca água, a que chamam ribeira do Sancho, e vem-se ajuntar com outra no porto, onde faz um rechão; e antre estas ribeiras fica uma lomba com um fragoso espigão, estreito e íngreme, que se vai para cima cada vez mais alargando, correndo direito ao Nordeste, e no meio a semeiam de trigo, e sempre fica a dita lomba ao nível com a Vila, ou padrasto dela; pela qual os franceses, fugindo das pedras que lhe lançavam de riba, e recolhidos ao porto, havendo seu conselho, fizeram subir vinte, outros dizem que trinta, arcabuzeiros dos seus por esta lomba, que está defronte, donde lhe botavam as pedras, para a banda do Noroeste, e dali se puseram a fazer seus tiros aos da terra para os fazer recolher; e os outros tornaram a cometer a Vila ao longo de uma ribeira, encobertos das pedras, e, com os tiros que os da lomba tiravam, tiveram estes lugar para subir, por haver da parte dos da ilha pouca gente e poucas armas, defendendo as espingardadas dos imigos que na lomba estavam que ninguém acudisse a defender a entrada, botando pedras pela rocha e ladeira abaixo contra os que subiam, e alguns da terra, que se quiseram desmandar e defender-se, foram feridos e outros mortos; os quais tinham o encontro às pedradas, só os que subiam a entrar na Vila, por não terem armas de que melhor se pudessem valer, o que não puderam sofrer nem sustentar por muito espaço pelos matarem e ferirem com a arcabuzaria os que estavam na lomba.
E a primeira pessoa que mataram com um tiro foi Amador Vaz Faleiro, homem animoso e principal, que aquele ano servia de vereador, e feriram a Francisco de Andrade, escudeiro, fidalgo nos livros de el-Rei, em um braço, e um seu irmão, por nome Duarte Nunes, em uma perna, naturais da terra e dos mais honrados, e a Jácome Tomé Faleiro, dos principais, e a um António Fernandes, sapateiro, homem mancebo e animoso, com que durou até o outro dia, em que faleceu, e a Domingos Jorge, ferreiro.
E os que daqui escaparam, fugindo dos tiros que da lomba lhes tiravam e neles faziam pontaria, se abrigaram com as casas, metendo-se na rua do Capitão, esperando detrás delas o segundo encontro dos imigos. Neste tempo, alguns dos contrários, que se meteram pela ribeira acima, subiam pela ladeira, pelo quintal do vigairo Baltazar de Paiva e defronte do granel de Baltazar Velho de Andrade, por onde cometiam entrar na Vila, e, querendo os da terra defender a entrada, mataram os cossairos a um Frutuoso Fernandes, homem trabalhador, o que vendo os outros da terra, começaram a fugir e, dizendo um Amador de Goes, surrador, a Manuel de Sousa, soldado de Itália, de quarenta anos, e irmão do Capitão Pero Soares de Sousa: — “Senhor, vamo-nos daqui que nos matam com os tiros”, lhe lançou ele mão do gorjal do pelote, dando duas espaldeiradas a dois homens que se retraíam e dizendo: — “Tá, não fujais nem se vá daqui ninguém!”. E como os imigos vinham depressa, não houve mais vagar que de largar Manuel de Sousa a Amador de Goes e com a sua espada e rodela se arremessar a eles, dizendo: — “Ah, duns perros, cães, que aqui vos hei-de comer os fígados!”; as quais palavras o Amador de Goes, indo com outros fugindo, lhe ouviu e, virando o rosto, o viu derribado em terra de um tiro de escopeta, que um dos contrairos lhe tirou de tão perto, que quase lhe pôs a escopeta nos peitos. E é de notar o juízo de Deus que, sendo este Manuel de Sousa absente da dita ilha havia quarenta anos, pelo homízio e morte do filho de Rui Fernandes de Alpoem, que atrás disse, e tido já por morto, veio aquele ano à dita ilha para nela pagar daquele modo o mal que nela fizera.
E também feriram a Pero de Andrade, escrivão da Câmara, atravessando-lhe uma perna pela coxa da banda de dentro, o qual se acolheu pela ribeira do Sancho arriba, onde esteve aquele dia, que era domingo, até a segunda-feira à noite, que, de gatinhas, se saiu por uma lomba e foi ter a uma eira, onde o foram achar muito mal tratado, mas, depois de curado, sarou bem e viveu.
E em chegando Amador de Goes ao canto de Simão Álvares, viu vir outro magote de franceses pela rua do Capitão arriba, muito depressa, que eram os que subiam pela ladeira do porto, onde os estavam esperando os que de cima do mesmo se recolheram, e ali feriram na mão direita, na raiz do dedo mindinho, ao filho mais velho e morgado do Capitão Pero Soares de Sousa, chamado Brás Soares de Sousa, que, como valente soldado e homem de grandes espíritos e esforço, estava na dianteira, e a Fernão Monteiro de Gamboa, capitão de uma companhia, pela barriga, ambos de um tiro, passando o pelouro de uma parte a outra pela carne, junto do embigo (sic), sem penetrar as tripas, de que esteve muito mal, e se curou depois nesta ilha de São Miguel, deixando-se escalar todo com muito ânimo; e feriram a Manuel Jorge, alfaiate, valente mancebo, e mataram Aires Gonçalves, também alfaiate, e a Nicolau Álvares, pescador, e Simão Álvares, cirurgião, que havia estado de princípio sobre a rocha e se tornou a recolher em sua casa, e se trancou de dentro, donde, ouvindo o estrondo que na rua se fazia, saiu à sua janela e, deitando fora a cabeça para ver se vinham os franceses, lhe deram uma arcabuzada nela, passando-lha com o pelouro de parte a parte, de que logo caiu para trás no sobrado, onde depois foi achado, inchado e podre.
Morto João Soares de Sousa, terceiro Capitão da ilha de Santa Maria e segundo do nome, herdou a casa e capitania o ilustre Pero Soares de Sousa, seu primeiro filho, quarto Capitão da mesma ilha e único do nome, o qual, sendo moço de pouca idade, se criou na corte e, depois do falecimento de seu pai, governou a capitania, e foi confirmado nela a sete dias de Dezembro da era de mil e quinhentos e setenta e três anos.
E indo à ilha da Madeira, casou lá com uma generosa mulher, de muita prudência e virtude, chamada D. Breatiz de Moraes, filha de João de Moraes, natural do Quintal, termo da cidade de Viseu, dos Moraes, Gouveias e Azevedos, e de Catarina Fernandes Tavares, da geração dos Tavares e Teixeiras, moradores em Santa Cruz , da mesma ilha, e aí viveu com ela alguns anos; mas depois se vieram a viver na ilha de Santa Maria com o cargo dela, assim ele, como sua mulher, mui virtuosa e honradamente, sem agravo nem escândalo de ninguém, com tanta paz, amor e mansidão com todos, que quase não se enxergava nem sentia o jugo que tinham os súbditos de seu governo. Sendo ambos mui cheios de caridade e amigos dos pobres, repartindo com eles suas esmolas, visitando e ajudando a todos com todo o que podiam e mais além de suas forças, e tão conhecidas eram suas grandiosas e magníficas condições e virtudes, que está entendido, e mais claro que o meio-dia, que, se sua possibilidade fora maior, soaram muito mais suas grandezas, dignas de grandes louvores, porque não ia pessoa honrada ou necessitada a sua casa que ele não amparasse, honrasse, favorecesse e recebesse, com umas entranhas tão sinceras e um coração tão amoroso e obras tão caritativas, que, dando exemplo aos seus naturais de toda benignidade, estava roubando as vontades e corações dos forasteiros e estrangeiros, que ele, como domésticos e próprios filhos, agasalhava, pelo que de uns e outros era mui obedecido, louvado e amado.
Era este ilustre Capitão mui espiritual e devoto, grande amigo de Deus, donde lhe vinha ser, por amor do mesmo Senhor, tão amigo dos homens; e deste bom fundamento lhe iam sempre em crescimento as boas obras que fazia. Vivendo grande meia légua da Vila do Porto, o mais do tempo em uma sua quintã, não perdeu missa domingo nem festa, por grande necessidade que tivesse, e o mesmo fazia a Capitoa, que em todas estas nobrezas, liberalidades e virtudes lhe ia sem discrepar, seguindo as passadas; o qual, além de não faltar na Igreja os dias de sua obrigação, três vezes na semana, pelo menos, ouvia missa, pelo que, conversando na Igreja e sendo tão amigo dela, não foi fero nem bravo e de dura cervix, como soem ser os que dela fogem, mas humilde, obediente, brando, macio e subjecto a toda a doutrina, especialmente eclesiástica.
Foi homem grande de corpo, grosso, grave, gentil-homem, e muito alegre e afável; e, com ser tão liberal, era contrário à ociosidade, porque sabia que ela é mãe e seminário de muitos vícios, como a cobiça é raiz de todos os males.
Houve este generoso e virtuoso Capitão da Capitoa D. Breatiz de Moraes, sua mulher, quatro filhos; o mais velho se chama João Soares de Sousa e ora é frade de São Hierónymo, muito virtuoso e bom religioso, o qual, sendo ele o morgado, mandou seu pai a Lisboa para andar na corte e servir a el-Rei, com outros dois irmãos, mais moços, em sua companhia, um chamado Brás Soares de Albuquerque e o outro, Henrique de Sousa, para daí irem caminho da Índia. E estando em Lisboa, movido João Soares de Sousa por inspiração divina, querendo buscar e fazer outra vida mais quieta que a que o mundo promete, e servir a outro maior senhor que o rei da terra, aspirando seus desejos antes para o Céu, se apartou de seus irmãos, e sem lhe dar conta alguma, se foi caminho de Castela e lá se meteu na ordem, em um mosteiro de Burgos, onde fez profissão, fazendo nela vida santa, e por sua religião e virtude e mansidão foi e é honrado e estimado muito de todos os frades.
Em Lisboa, ficaram os outros dois irmãos, onde dali a poucos dias, com grande enfermidade, faleceu o mais moço, chamado Henrique de Sousa; e outro, chamado Brás Soares de Sousa, e dantes de Albuquerque, que ora ficou morgado, também adoeceu de grave doença e, para se curar dela, se recolheu e agasalhou em casa de uma nobre e honrada mulher, natural da mesma ilha de Santa Maria, a qual o curou e serviu tão bem, com tanto amor e cuidado, que, depois de ter saúde, não soube com que lho agradecer, senão com casar com uma sua filha, como adiante direi, quando dele, particularmente, em seu lugar disser.
Houve outro filho o dito Capitão, que se chama António Soares, gentil-homem, discreto e muito alegre, e dado a passatempos com outros mancebos, muito forçoso e afeiçoado a jogar das armas, que, por ter grandes espíritos, se foi para as Índias de Castela, onde alguns dizem ser falecido.
Tem também uma filha, chamada dantes D. Ana, e agora Ana de São João, no mosteiro da Esperança da cidade da Ponta Delgada, desta ilha de São Miguel, em que está já professa, e outra, natural, chamada dantes Concórdia de Sousa, e agora Concórdia dos Anjos, que houve sendo solteiro, também professa e boa religiosa, que por sua perfeita virtude e religião, de ambas, são nele de todas as mais religiosas muito estimadas.
A jurdição, que têm os Capitães desta ilha de Santa Maria, é conforme a dos da ilha da Madeira, até quinze mil réis e açoite em peão. E, quanto à renda, afora a de suas terras próprias e outras granjearias, tem a redízima e os moinhos, fornos de poia, e que, tendo sal o não possa vender outra pessoa senão ele, a meio real de prata o alqueire.
E na era de mil e quinhentos e oitenta, sendo este ilustre Capitão Pero Soares de idade de sessenta e sete anos, enfermou de parlisia (sic) que lhe deu, como ao Capitão, seu pai, que sofreu com muita paciência, louvando a Deus que lha deu cá na terra, de que faleceu aos trinta dias de Agosto da dita era, para merecer com ela e com as obras de muita virtude e caridade, que sempre usou fazer, a herança do Céu para que foi criado; e foi enterrado na igreja principal de Nossa Senhora da Assunção com muita solenidade e dor de todo o povo, que por suas obras e condição o amava muito.
O ilustre Capitão Pero Soares de Sousa, único do nome, e quarto na ordem dos Capitães da ilha de Santa Maria, antre outras perfeições que teve, foi o grande cuidado de ensinar seus filhos, e, não os tendo na terra, mandava alguns a criar-se na corte, em serviço de el-Rei, e outros a terras estranhas.
E mandando, como tenho dito, os três filhos a Portugal, onde faleceu o mais moço, e o mais velho, que era morgado, se foi a Castela e lá se fez frade em um mosteiro, onde não recebem senão homens fidalgos, ficando em Lisboa o segundo filho na ordem da idade, que se chamava Brás Soares de Albuquerque, que, por falecimento de seu pai, sucedeu no morgado e capitania da ilha, e, porque é costume dos morgados tomarem os apelidos dos pais, de quem os herdam, se chama agora Brás Soares de Sousa; o qual, dando-se a el-Rei no foro de seus avós, o serviu em muitas armadas e se achou no cerco de Mazagão e na armada, em companhia do Capitão Pero Corrêa de Lacerda, onde também ia Aires Jácome Raposo, Bartolomeu Favela da Costa, naturais da ilha de São Miguel, contra um galeão grande e dois patachos de cossairos ingreses que andavam antre estas ilhas da Terceira e São Miguel, onde contam que lhe tiraram quatrocentos pelouros, e outros dizem quinhentos, e o furaram todo, matando-lhe muita gente, até que uma noite desapareceu e fugiu dentre a armada; e renderam um dos patachos, cujo capitão se deitou ao mar (quando viu que os seus já não queriam pelejar, e cruzando as mãos se rendiam), vestindo-se muito bem de seus melhores vestidos, pondo ao pescoço suas cadeias de ouro, e, vindo assim vestido de festa a bordo, arrancou à vista de todos uma adaga com a mão esquerda (por trazer a direita muito ferida ou quase decepada) e, metendo-a em si pelos peitos, se deitou juntamente no mar, onde se foi ao fundo dele e do Inferno celebrar as tristes festas, para que assim de festa se vestira.
Também se achou Brás Soares de Sousa em África, na conquista e tomada do Pinhão, indo na armada que el-Rei de Portugal mandou ao Católico Rei Filipe para o ajudar a conquistar, e em outras armadas e batalhas, onde sempre se mostrou bom cavaleiro e valente soldado.
Estando uma vez em Lisboa (como dito tenho), adoeceu de uma grave enfermidade e, recolhendo-se por esta causa a casa de uma honrada fidalga, viúva, chamada Maria da Câmara, filha de Antão Roiz da Câmara, filho (sic) de João Roiz da Câmara, quarto Capitão que foi desta ilha de São Miguel, e mulher que fora de João Nunes Velho, honrado fidalgo, filho de Duarte Nunes Velho, sobrinho de Frei Gonçalo Velho, comendador de Almourol, primeiro Capitão que foi da ilha de Santa Maria, pelo conhecimento que tinha dela, do tempo de sua criação na mesma ilha de Santa Maria, e ainda muito parentesco antre eles, foi ali dela bem servido por tão prolongado tempo em sua doença, que, depois de ser curado e ter perfeita saúde, por ser tão generoso e grato ao bem e serviço que dela recebera, não achou igual paga, com que lhe pagasse, senão com casar com uma sua filha, que em casa tinha, de grande honestidade e virtude, chamada D. Dorotea; mas casou muito pobre, sendo, como é, tão honrado e morgado, herdeiro de uma tal capitania, por fazer esta virtude e agradecer o bem e cura que em sua doença lhe fizeram; pelo que Nosso Senhor, que é todo bem e riqueza, lhe fará muitos bens e dará grandes riquezas, além da virtuosa fidalga e perfeita mulher que lhe deu, por riqueza e dote mais principal que todos os homens prudentes devem pretender e buscar quando se casam, que é antes mulher sem dinheiro que dinheiro sem mulher, pois que, ele gastado, sem ele se fica e sem ela.
Sendo assim casado, se tornou com sua mulher para a ilha de Santa Maria, onde foi bem recolhido do Capitão, seu pai, que, por descansar dos cuidados do mundo, já lhe tinha largado o governo da ilha, que governou até o falecimento de seu pai, e governa agora com muito espírito e prudência.
E passado algum tempo depois, adoeceu seu pai (como disse) de parlesia, com que não podia bem pronunciar o que falava, e assim esteve muitos dias vivo e enfermo, como em Purgatório, mas com bom juízo, ainda que não tão perfeito, e com o temor e amor de Deus, que sempre teve perfeitíssimo, tendo saúde e vida, até que Deus houve por bem de o levar para si.
O filho, Brás Soares de Sousa, é homem pequeno do corpo, de meia idade, gentil-homem, discreto, bem assombrado, conversável, grave, e de grandes espíritos, manso a seu tempo e colérico quando é necessário; e ainda que alguns tenham outra opinião, a minha é que nenhum homem sem cólera, medida com razão, prudência, verdade e saber, é para ser Capitão, nem ter algum cárrego honroso, porque sem ela, tida a seu devido tempo, não fará nunca nada; tenha furor zeloso quem manda, ainda que seja murmurado dos que reprende (sic) e castiga, deitando a culpa que eles têm nos erros que fizeram à cólera do superior, que, sem ela, os não pode bem castigar, nem governar como deve. Finalmente, afirmo que quem tem cargo de mandar há-de saber ser mais manso que cordeiro, a seu tempo, e mais bravo que leão, quando releva, porque outro modo flemático (sic), no que manda, é condição não de homem, mas de cepo.
Digo esta verdade rasa, porque sei que não é tão aceito aos súbditos, feitos à sua vontade, o modo de mandar perfeito do governador cuidadoso e ardiloso, pelo uso e criação que tem da sobeja brandura daqueles que, quando dantes os mandavam, nunca lhe souberam nem quiseram dizer que mal faziam, e em vez de assoprar, quando o fogo morria, lhe deitavam água em cima de sua brandura. Mas, console-se quem bem governa com saber, que é certo sinal isto de seu bom, discreto e perfeito governo, que se deixasse cada um viver à sua vontade, sem lhe ir à mão a seus descuidos, contentaria aos homens, que não querem reprensão, e a Deus descontentaria, que quere justiça. Mas, se algum destes dois se há-de anojar e ofender, descontentem-se e ofendam-se os homens, por agradar a Deus fazendo o que ele manda. Sufra-se (sic), pois, quem faz o que deve em seu ofício ou cargo para mais merecer, quando é por isso murmurado, pois é costume antigo do mundo mimoso e da mimosa natureza dar peor galardão a quem, por meio de alguma aspereza muito leve, mais procura seu bem e seu descanso.
E, ordinariamente, sobre os bons governadores, que de novo vêm com algum cuidado e rigor necessário, caem as culpas, flemas e remissões que os passados tiveram, e tudo isto Deus permite, e que seja murmurado o bom juiz de bom governo, por fazer maior mercê a quem acerta no que manda sem temer, nem dever, e sem mostrar nem ter aceitação de pessoa alguma, para que, tendo com isso paciência, diante de Deus e dos homens prudentes mais mereça. Digo isto, porque o Capitão Brás Soares de Sousa, logo no princípio, foi tido por algum tanto áspero, sem o ser, mas, já agora, depois que caíram os súbditos na conta de sua grande prudência e amor da pátria, é também de todos com leais corações e amor obedecido.
Tem este Capitão de sua mulher, D. Dorotea da Câmara, três filhos e algumas filhas: o mais velho, que será de dezoito anos, se chama Pero Soares, o segundo, Manuel de Sousa, o terceiro, António Soares, e das filhas duas são freiras no mosteiro da Esperança da cidade da Ponta Delgada .
É este ilustre Capitão de grande ânimo, por ser homem cursado e experimentado na guerra, como já disse, e, por isso, antes de ter o governo da ilha, morando seu pai, Pero Soares, em uma sua quintã, meia légua da Vila, o tinha na mesma Vila em umas suas casas, onde morava, para acudir por ele a alguma pressa ou rebate de imigos, se sobreviesse, estando ele fora, como aconteceu à entrada dos cossairos na Vila, onde, acudindo com grande diligência e esforço o dito Brás Soares de Sousa, foi ferido, como logo contarei. E depos sustentou a ilha na obediência de el-Rei Filipe, mandando fazer uma forca para espantar e castigar aos revéis, pelo que Sua Majestade lhe fez mercê da comenda de Cristo, com sessenta mil réis de renda, pagos na Alfândega desta ilha de São Miguel, com esperanças de lhe fazer depois maiores mercês, como ele merece.
Por falecimento de João Soares, segundo Capitão da ilha de Santa Maria, herdou a capitania seu filho João Soares de Sousa, segundo do nome e terceiro Capitão da dita ilha, o qual tomou o Sousa de sua mãe, D. Branca de Sousa.
E, para entendimento do que hei-de dizer, se há-de notar que, depois que seu pai, João Soares, vendeu esta ilha de São Miguel a Rui Gonçalves de Câmara, filho de João Gonçalves Zargo, primeiro Capitão da ilha da Madeira, ficando o dito Rui Gonçalves de Câmara Capitão desta de São Miguel, antre outros filhos naturais que teve, houve uma filha, chamada D. Breatiz da Câmara , a qual casou com um fidalgo de Portugal, chamado Francisco da Cunha, filho de Pero de Albuquerque, primo de Afonso de Albuquerque, Governador que foi da Índia, e de sua mulher D. Guiomar da Cunha, prima de Nuno da Cunha, que também foi Governador na Índia, onde Francisco da Cunha foi duas vezes por capitão de naus, e andou lá algum tempo em serviço de el-Rei ; o qual veio viver, com sua mulher D. Breatiz, em Vila Franca do Campo e na Ponta Garça, termo da mesma vila, onde nesta ilha de São Miguel tinha sua fazenda, mas não tanta como a sua pessoa e fidalguia convinha, pelo que, indo desta ilha a Portugal, a ter requerimentos na corte sobre o acrescentamento de sua moradia, conta o curioso cronista Garcia de Rezende, no capítulo duzentos e onze, que estando o grande Rei D. João, o segundo do nome, tão mal, que dali a duas horas faleceu, este Francisco da Cunha (que ele chama da ilha Terceira, pelo comum nome de que usam os moradores de Portugal quando falam destas ilhas dos Açores, sendo ele morador nesta de São Miguel) chegou a el-Rei dizendo-lhe que pelas cinco chagas de Jesus Cristo lhe fizesse alguma mercê, porque era fidalgo e muito pobre, e el-Rei lhe mandou com muita pressa fazer um padrão de trinta mil réis de tença e o assinou, e disse-lhe que tomasse a prata que na casa estava, que não tinha já que lhe dar; o que foi causa de se saber a grande devação que el-Rei tinha às cinco chagas de Cristo, Nosso Deus e Senhor, lá consigo só, ençarrada , em seu real peito, porque, em se saindo Francisco da Cunha, disse el-Rei aos que com ele estavam naquela agonia da morte, com que estava lidando: “Já posso agora isto descobrir; nunca em minha vida me pediram coisa à honra das cinco chagas que não fizesse”. E mandou logo saber em que ponto estava a maré e, dando-lhe a resposta, disse: “Daqui a duas horas me finarei”; e assim aconteceu, que domingo, em se querendo pôr o Sol, dizendo ele “Agnus Dei qui tollis peccata mundi, miserere mei”, lhe saiu a alma da carne, vinte e cinco dias de Outubro do ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quatrocentos e noventa e cinco, em idade de quarenta anos e seis meses, dos quais foi casado com a Rainha D. Lianor, sua mulher, vinte e cinco, e reinou catorze anos e dois meses.
Este Francisco da Cunha houve uma filha de sua mulher D. Breatiz, chamada D. Guiomar da Cunha, nesta ilha de São Miguel, com a qual casou João Soares de Sousa, Capitão da ilha de Santa Maria. E houveram dantre ambos estes filhos e filhas: Pero Soares de Sousa, que herdou a casa e capitania, e Manuel de Sousa que, por morte de um homem que ele (como dizem) matou, ou por seu mandado, indo ele ao delito, mataram com uma seta, se foi da ilha e andou em Itália e França trinta e cinco anos ou mais, sem dele haver novas; e no ano de mil e quinhentos e setenta e seis, em que entraram os franceses e os cossairos na ilha, a roubar a Vila do Porto, tinha ele chegado dantes, na entrada do verão, e havendo andado todo o tempo sobredito em notáveis perigos e guerras, de que trazia muitos sinais de feridas, quando se deu o rebate da entrada dos imigos, a cinco dias de Agosto, dia de Nossa Senhora, pela manhã, acudindo ele dos primeiros para defender a Pátria, como mui esforçado cavaleiro, que era, e valentíssimo soldado velho, cursado na guerra, nos primeiros encontros dos cossairos o mataram com um pelouro de um tiro de escopeta, não longe da casa de seu pai, à vista de todos; o que parece ser juízo de Deus, que é perfeito juiz, de quem ninguém pode escapar ou tarde ou cedo.
Teve mais o dito Capitão João Soares outro filho, mui macio, brando e pacífico, além da muita virtude que tinha, chamado Nuno da Cunha, que casou nesta ilha de São Miguel com D. Francisca, filha de um nobre e rico homem da cidade da Ponta Delgada, chamado Sebastião Luís, pai de Hierónimo Luís, homem principal da mesma cidade e mui rico de fazenda, prudência e virtude; da qual houve um filho, chamado João Soares, como o Capitão, seu avô, o qual, sendo de tenra idade, estando a uma janela rasa (que, ainda então, não tinha grades, por serem casas feitas de novo), passando o Santíssimo Sacramento que se levava a um enfermo, querendo o menino olhar a gente e campainha, que vai tangendo junto com o pálio, caiu da dita janela com a cabeça para baixo e, dando nas pedras da calçada, que é uma boa altura, não morreu, inda que lhe ficou um jeito no olhar; de maneira que de todos foi julgado por milagre, e bem parece que o guarda Nosso Senhor para fazer dele um grande santo, como está mostrando seu proceder, o qual é agora de quinze anos, pouco mais ou menos . Mas seu pai, Nuno da Cunha, é falecido.
O Capitão João Soares houve mais outro filho, chamado Simão de Sousa, que faleceu na ilha, sendo de idade de dezassete ou dezoito anos. E três filhas, a primeira D. Maria, que casou com Rodrigo de Baeça, castelhano, que ainda vive na dita ilha; e ela haverá nove ou dez anos que é falecida, sem haverem filhos, nem filhas.
A segunda, D. Joana, que casou com Hector Gonçalves Minhoto, tão rico, que, se mais vivera, acabara de comprar toda a ilha e fora sua; de que houve D. Guiomar, que casou com João d’Arruda, filho de Pero da Costa, da Vila Franca do Campo, desta ilha de São Miguel, e D. Branca, que casou com Fernão Monteiro de Gamboa, de que tem uma filha, chamada D. Filipa, ainda solteira . Teve mais D. Joana de seu marido, Hector Gonçalves Minhoto, um filho, chamado Francisco da Cunha, que, por falecimento do Minhoto, seu pai, ficou muito rico e casou na ilha da Madeira com uma mulher fidalga, de boa geração e de muita virtude, de quem houve três ou quatro filhas; e, ficando muito próspero por falecimento de seu pai, depois de viver na ilha de Santa Maria estragadamente, se foi para a ilha da Madeira com sua mulher e filhas e, apartando-se lá de todos por querer fazer penitência, se foi viver junto do mar, antre umas furnas da rocha e penedia, onde pescava algum peixe, que comia, e outro que punha sobre as pedras e calhaus, que os moços iam tomar, dando-lhe alguns pedaços de pão, com o qual e algum marisco se mantinha, sem querer ver homem nenhum, nem falar com ninguém; e, se iam falar com ele, escondia-se logo antre os penedos e furnas ao longo do mar; e assim viveu penitente, com aspereza de vida, sete ou oito anos, até que faleceu, deixando na mesma ilha da Madeira três filhas suas, onde estão honradamente casadas.
A terceira filha do Capitão João Soares, chamada D. Lianor, foi freira professa no mosteiro da Esperança da cidade da Ponta Delgada, desta ilha de São Miguel, e nele faleceu.
Além de se afirmar por verdade que moveu D. Guiomar da Cunha, mulher deste Capitão João Soares de Sousa, cinco crianças juntas, da qual movedura dizem que, como anojada, morreu.
Pela qual razão, por parte da mãe, D. Guiomar da Cunha, são estes seus filhos e descendentes parentes mui chegados dos Capitães da ilha de São Miguel e liados os Capitães delas em estreito e vizinho parentesco, como as mesmas ilhas antre si são tão chegadas e vizinhas.
Por morte da Capitoa D. Guiomar da Cunha, casou segunda vez o Capitão João Soares de Sousa com D. Jordoa Faleira, filha de Fernão Vaz Faleiro e de Filipa de Resende, sua mulher, moradores na mesma ilha; e houveram de antre ambos filhos, todos muito honrados e nobres e de magníficas condições, cuja presença, prática e pessoa, de qualquer deles, mostra claramente sua fidalguia e nobreza.
O primeiro, Gonçalo Velho, que morreu no mar, indo para Lisboa a criar-se na corte, como os mais dos Capitães costumavam mandar lá seus filhos e principalmente os mais velhos.
O segundo, Álvaro de Sousa, que casou com D. Isabel, filha de Amador Vaz Faleiro, o primeiro que mataram os franceses na entrada da Vila, homem mui honrado e principal na ilha, da qual tem uma só filha, que se chama D. Jordoa .
O terceiro, Rui de Sousa, que, andando em serviço de el-Rei na Índia, foi morto em uma batalha.
O quarto, André de Sousa, que, como já atrás tenho dito, casou com D. Mécia, filha de Miguel de Figueiredo e irmã do licenciado Luís de Figueiredo de Lemos, vigairo que foi de São Pedro da cidade da Ponta Delgada e ouvidor do eclesiástico nesta ilha de São Miguel e daião da Sé de Angra e vigairo geral e governador em todo o bispado. E agora bispo do Funchal .
O quinto, Miguel Soares, que casou com D. Antónia neta de Ana de Andrade, viúva, mulher que foi de Gonçalo Fernandes.
O sexto, Belchior de Sousa, que casou com D. Maria, filha do bacharel João de Avelar, de muito magnífica condição e grande virtude.
Teve também uma filha desta D. Jordoa, chamada D. Cecília, que faleceu sendo freira professa no mosteiro de Santo André de Vila Franca do Campo, desta ilha de São Miguel.
Por falecimento de D. Jordoa, casou terceira vez o Capitão João Soares com D. Maria, filha de Nuno Fernandes Velho, e já depois dele ser muito velho, houve dela uma filha que se chamou D. Branca, já falecida, e um filho António Soares, e outro João Soares, e uma menina que também é falecida. O António Soares há pouco tempo que foi para a Índia, ficando o outro, chamado João Soares, em casa enfermo de enfermidade incurável, com sua mãe, D. Maria, que pode ser ao presente mulher de quarenta anos.
Além destes filhos legítimos, houve este Capitão quatro filhas de uma Bárbara Pires, preta, chamadas Isabel de Abreu, Hierónima de Abreu, Violante de Abreu e Joana de Abreu, e um filho, chamado João de Abreu.
E de uma Violante Álvares houve uma filha, por nome Ana de Almada. E de Isabel Ribeira dois filhos, Francisco de Sousa, que morreu de etiguidade (sic), e Simão de Sousa, que em moço se criou no mosteiro de São Francisco da Vila Franca, desta ilha de São Miguel, e, não querendo ser frade, se foi para as Índias de Castela, sem nunca mais se saber dele nova certa, ainda que alguns disseram que estava lá muito rico; e uma filha, Francisca de Sousa, que casou com um homem de Vila Franca, desta ilha de São Miguel; que somam todos, legítimos e bastardos, vinte e quatro, afora os cinco que já disse, de cujo aborto faleceu a primeira mulher, D. Guiomar da Cunha, de anojada, da qual seus descendentes tomaram o apelido da Cunha.
No mês de Maio, no ano de mil e quinhentos e vinte e dois, mandou o corregedor António de Macedo, com seus poderes, à ilha de Santa Maria, João de Aveiro, escrivão público nesta de São Miguel (que, então, servia de chançarel, por ser o chançarel Pero Gomes Freire ido a Portugal), a mandar à corte a apelação de uma sentença dada contra o Capitão João Soares de Sousa e prendê-lo por uma querela que dele se deu; e, por o dito Capitão querer ir com a apelação, foi com ela preso e no Regno se livrou. E tirou o dito João de Aveiro na dita ilha de Santa Maria algumas devassas, e, por não haver lá tabalião nem escrivão sem suspeita, a requerimento das partes e por mandado do corregedor, as foi tirar com João Vaz, licenciado, no mês de Maio, e reconciliou a Rui Fernandes, ouvidor do Capitão, com os oficiais da Câmara da dita ilha de Santa Maria, que iam com ele de São Miguel, onde se vieram a queixar ao corregedor, dizendo que o ouvidor mandara lançar pregões que ninguém obedecesse a seus mandados, deles, porque a troco de vinho vendiam as vidas dos homens, o que dizia por razão de recolherem e tirarem pelo mar pipas de vinho de um navio que vinha impedido, e os fez todos amigos.
Mandou João Soares entregar a carta da capitania nas confirmações, para se lhe haver de fazer no ano de mil e quinhentos e vinte e dois, e não se lhe fez senão depois que o requereu, e foi confirmado nela por el-Rei D. João, terceiro do nome; e feita a carta de confirmação em Lisboa por Aires Fernandes a treze de Março do ano de mil e quinhentos e vinte e sete.
Foi este Capitão João Soares de Sousa animoso homem, grande de corpo e muito grosso e de boa disposição, e dizem que em mancebo era muito ligeiro e desenvolto, preto, não alvarinho, fidalgo muito honrado e de magnífica e liberalíssima condição, em tanto que, por ser muito liberal, morreu pobre.
Não arrendava as suas terras por junto a um só, senão a muitos, repartidas, para que todos tivessem algum remédio. O rendeiro que lhe devia meio moio de trigo, se era pobre, pagavalhe com um saco dele somente. Tendo os moinhos, quase o não conheciam por senhorio deles e pagavam-lhe o que queriam. Nunca mandou citar ninguém por dívida que lhe devesse, e um ano que houve fome na ilha e esterilidade de pão mandou deitar pregão que quem quer que lhe tomasse ovelha ou carneiro do seu gado lhe tornasse a pele e a lã, e o mais lhe perdoava.
E, como bom fidalgo, fazia coisas e liberalidades como quem era, socorrendo e animando os pobres em suas necessidades; faltando-lhe, finalmente, o que dar, sobejava-lhe a boa condição e vontade; às vezes se mostrava colérico e agastado, com razão, mas durava-lhe pouco sua cólera.
Era em suas práticas muito discreto, alegre e gracioso, e, sem ser letrado, bom judicial e certo no que mandava, em tanto que sentença que ele dava por nenhum caso se achou desmanchar-se no desembargo. Parecia filósofo em muitas coisas e piloto destro em conhecer os tempos em que se havia de navegar da ilha de Santa Maria para esta de São Miguel, ou para as outras; e tanta certeza e experiência tinha disto, que nenhuns mestres, nem pilotos, partiam da ilha com batel nem barca (ainda que fosse bom tempo), senão quando ele dizia, tomando todos seu conselho, em que o achavam sempre certo, porque, como ele dizia que partissem, estava a viagem segura, e nunca se achou errar nisso. Antes dizem que uma vez partiu um sem registar com seu parecer, que era que não partisse, o qual se perdeu na viagem com tormenta; e dizem ser este o Coelho, do Nordeste, grande navegante nesta travessa, que se perdeu um dia de Santo Tomé, o qual antes de partir da ilha de Santa Maria, perguntando ao Capitão se partiria, lhe respondeu que não partisse, e detendo-se a barca alguns dias e agastando-se o mestre, e tornando-lhe a perguntar se era já tempo, respondeu o Capitão que se aviasse que não partisse; mas o mestre, estando agastado de esperar tanto, partiu-se de noite, e perguntando o Capitão por ele ao outro dia, lhe disseram que era partido, ao que respondeu dizendo que ele e todos os que com ele iam haviam de ser mortos, e assim aconteceu, que todos morreram naquela viagem. E, se afirmava o dito Capitão que cedo, de alguma navegação, havia de ir navio à ilha, ou fosse da ilha da Madeira, ou desta de São Miguel, ou de outras partes, que ele logo particularmente nomeava, pela experiência que tinha dos tempos que corriam ao longe, sem falta assim acontecia como ele dizia.
Depois de velho, foi mui sujeito aos filhos, e doente de parlezia perto de quatro anos, antes que falecesse; e falava mal, estando quase todo este tempo em cama. Às vezes se alevantava, às vezes se deitava, e da mesma doença, com a fala assim torvada até acabar, faleceu a dois dias de Janeiro da era do Senhor de mil e quinhentos e setenta e um anos, sendo de idade de setenta e três, muito amigo de Deus, havendo sido travesso em sua mocidade. Foi enterrado, com grande sentimento de todo o povo (que muito o amava, mais como pai que como senhor e capitão), na capela-mor da igreja principal de Nossa Senhora da Assunção, junto da porta da sanchristia, com a primeira e segunda mulher que teve, fazendo seu corpo perpétua companhia na morte às que em vida teve por fiéis companheiras.
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