Ver e olhar para esta ilha naqueles dias, como estava esfolada toda, assim a terra do pão, como a do mato, especialmente as das serras corridas em barreiras e quebradas, vermelhas e pardas, fazia muito espanto. E, ainda que alguns dizem que os picos Escalvados correram aquele dia sobre a Maia, todavia outros afirmam que já eram escalvados dantes e que no dia da desolação de Vila Franca, de uma boca que está meia légua à banda da serra, sobre o Loural da Maia, que terá em redondo quatro ou cinco alqueires de terra em campo chão, arrebentou a terra que correu e levou os dois moinhos da Maia e matou a gente atrás dita, levando e cobrindo muitos pomares e figueiras que por ali estavam. E no mesmo tempo correu a quebrada da terra nas Furnas entre a alagoa grande e as ditas Furnas, e levou um grande espaço da superfície sobre si, com as árvores que nela estavam prantadas, ficando todas na ordem que dantes tinham, sem se mudar alguma do seu lugar, como está dito.
O monte das Furnas parece que, quando arrebentou no tempo que se descobriu esta ilha, ou antes dela descoberta, caiu a terra e polme dele ao redor pelo mato, que se chama a Serreta, que nasceu depois sobre o acravado e sobre os montes junto de Vila Franca. O mesmo parece que foi outro monte, onde agora está a grande alagoa das Furnas, como mostram as quebradas e rochas ao redor dela; e daqui, destas partes ou de outras, em tempo de outros antiquíssimos terramotos ou tremores, antes de ser achada esta ilha, saiu a terra e polme que cobriu estes montes ao redor de Vila Franca, como terra adventícia e postiça sobre eles. E, com o tremor grande, que foi no tempo do dilúvio de Vila Franca, quebrou a terra do monte que está sobre ela e correndo sobre a vila, a cobriu toda. Na Ponta da Garça e na Maia fez o mesmo; onde é de notar que a terra que correu sobre Vila Franca era uma quebrada de um pico que está sobre ela, a qual não é o solo e torrão de uma terra natural do pico, mas é terra que parece que caiu sobre aquele pico e ao redor de Vila Franca, no tempo quando arrebentaram as Furnas, ou outros picos em tempo de outros terramotos que antigamente houve nesta ilha, antes de ela ser descoberta, nem povoada. O que claramente se vê, porque a terra que correu sobre Vila Franca foi quebrada da face do pico e não é a natural, mas lodo, como cinzeiro, misturado com pedra pomes, que em outro tempo choveu sobre aquele pico, donde ela quebrou. Quem vir a quebrada e a mossa que fez no pico, com a quantidade, espaço e altura que tem, logo julgará que abasta para cobrir a vila e fazer o dano que fez, sem sair outra do centro, pois não há aí nenhuma mostra nem buraco por onde de baixo saísse; e ainda que parece pouca a terra que correu do monte, assim parece pouca pedra a que tem uma casa feita, porque está toda arrumada nela, mas desfeita a casa, ou antes de se fazer, enche rua e ruas e não cabe nas praças.
Assim a terra estava ali arrumada naquele monte, e, espalhada dali, cobriu praças e ruas de toda a vila, e posto que parece estar a terra enxuta no lugar onde está, cavando-a, se acha húmida, e, espalhada, parece lodo, como foi a que correu sobre Vila Franca, sacudida com algum espírito ou vento que, não cabendo nas cavernas da terra, andava buscando lugar de um lado para outro, fazendo tremer a terra para os lados e não tendo tanta força para sair e fazer lugar e boca por onde saísse, fez sacudir a terra do monte que estava sobre Vila Franca, e o da Ponta da Garça e o das Furnas e o da Maia, e fazerem os danos que tenho dito; porque, como diz Aristóteles no segundo Livro dos Metheuros , há duas maneiras de terramotos, uma que se chama tremor, quando se move a terra para os lados, com grande espírito ou vento que está debaixo das cavernas dela, o qual se chama tremor, o que acontece poucas vezes, porque poucas vezes se ajunta muito espírito ou vento que isto cause.
Outra maneira de tremor há de baixo para cima, porque se requere muito princípio e muita exalação congregada debaixo da segunda costa da terra, para que a faça arrebentar, como foi o segundo tremor da terra nesta ilha, no tempo do Capitão Manuel da Câmara , onde arrebentaram os montes e deitaram muita terra de si, como pelouro, o que propriamente se chama terramoto. Ainda que o arrebentar da terra, que então aconteceu, foi causado, não de exalações nem espírito ou vento, senão de minerais de salitre e enxofre que, crescendo muito debaixo da terra, se acendeu, pode ser que assoprada de algumas exalações e vento, e como fogo de bombarda deitou para cima toda a terra e arvoredo que sobre si em um monte tinha; como aconteceram desta maneira quase todos os terramotos desta ilha antes de ser achada, que foram tantos quantos são os picos dela, como eles estão dando testemunho com as bocas que têm abertas.
Mas, este terramoto de Vila Franca não foi causado por fogo, senão por ar encerrado nas concavidades da terra, que, buscando respiração por onde resfolegar, lidando e procurando ter porta sem a abrir, por não ser em muita quantidade, sacudiu a côdea da terra do monte que tenho dito, sobre Vila Franca, não correndo direita ao mar, senão de ponente para o oriente, um pouco espaço, passando uma ribeira, até se pôr sobre a vila, ao pé da serra e, alagando ali primeiro o mosteiro de S. Francisco, começou a descer direita ao mar e de caminho cobriu a vila.
Nem terá mais quantidade toda esta terra corrida que a que se vê faltar no monte; o que julgará quem bem o quiser considerar, e afirmará que nenhuma terra saiu do centro do dito monte, pois também não está feita nele boca alguma por onde saísse.
Bem podia ser este tremor causado por se converter alguma água ou humor nas concavidades e opacidades da terra, com proporção décupla em dez tanto de ar, e, não cabendo no mesmo lugar, fazer tremer a terra e dar grandes golpes para os lados, buscando parte para sair, e, sem a fazer, sacudiu a terra dos lados desta ilha, nos lugares que tenho contado.
A causa dos ventos e do tremor da terra declara maravilhosamente o Mestre Aleixo Vanhegas, no seu Livro Natural, aos trinta e dois capítulos, dizendo que, a maneira de animal, resfólega e arrota a terra, quero dizer que os espíritos que estavam encerrados nas concavidades na terra, como não puderam estar em pequeno lugar, buscaram saída, como a busca o arroto que não cabe no corpo do animal. Assim os ventos são uns arrotos que faz a terra, os quais sobem até a meia região do ar, que está mui fria, pelo qual não podem subir dali, e pelo conseguinte rebatem-se ali para os lados, como o fumo que topa no telhado e se quebra para os lados, umas vezes se acanala para um lado, e outras vezes se parte em duas partes contrairas, e outras vezes se redobra em círculo, derramado por todas as partes do circuito. Desta mesma maneira, a exalação ou vento que sobe da terra, se quebra no meio interstício, ou meia região; porque, pela densidade e espessura do frio, não a pode passar, pelo qual se rebate ali e se torna à terra e, tornando a ela, se vem pela parte do oriente, chama-se leste, e se vem pela parte do ponente, chama-se oeste, e se vem pela parte do setentrião chama-se norte, e se vem pela parte do meio dia, chama -se sul. E assim também cobra outros nomes vindo por entre estes quatro.
Algumas vezes, este arroto que faz a terra, está tão ensarrado nas cavernas da mesma terra, que não pode sair facilmente; e com a quentura do sol penetra alguma coisa do corpo da terra, resolve as humidades das concavidades e, como não cabem juntas com as exalações em um lugar, não saem remissamente como os ordinários espritos ou resfôlegos de que se fazem os ventos; mas, com o demasiado apressuramento, não se dão espaço nem vagar, e querem sair a tropel, da maneira que sai o espírito do corpo do homem. De maneira que podemos dizer que os ventos são os ordinários arrotos e o tremor o espirro que faz a terra.
Se enchemos uma alcanzia de água e a pomos ao fogo brando, pouco e pouco sai pela abertura o vapor; mas, se soldamos o agulheiro e a pomos a fogo rijo, antes que passe uma hora saltará e se fará pedaços, porque, à maneira do espirro, sairá subitamente o vapor que a quentura do fogo havia levantado da água; assim como diremos que também espirra o vapor da castanha que se deitou inteira no fogo, porque o humor da castanha, convertido em vapor, não cabe em tão pequeno lugar como é na casca. Também espirram os ovos que se põem a rijo lume quando não se Ihe quebra um pouco a casca, para que pela abertura saia o vapor que não pode caber, em forma de vapor, em pequeno lugar. Desta mesma maneira, diremos que espirra a terra o demasiado vapor que o calor do sol gerou em suas concavidades; e assim como o homem dá um e dois e três e quatro e mais espirros, assim a terra faz um e dois e três e quatro e mais tremores, quando espirra; mas, é de notar que, se estes espirros não saem direitamente para a face da terra, senão para os lados então se diz propriamente tremor da terra; mas, se não acharam concavidade aos lados para se estenderem e alargarem, senão direitamente saíram à face da terra, este tal espirro se diz terramoto, ou evulsão, ou empuxão, com que a terra se alça tão alta que se tira de uma parte e por grande espaço notavelmente vai pelo ar a vista de olhos, e se passa a outra; por onde acontece fazerem-se montes e vales onde não os havia, cerrarem-se umas fontes e abrirem-se outras, fundirem-se povos e quebrarem-se as rochas de pedra viva, e mudarem seus caminhos os rios e encolher-se por uma parte o mar e alargar-se por outra, e outras coisas semelhantes a estas.
Os tremores e terramotos soem acontecer quase ordinariamente às costas do mar e nas ilhas, pela abundância do humor que o calor do sol soe resolver em vapor. Nas partes secas que estão longe do mar, poucas vezes acontece tremer a terra; mas se precedessem três ou quatro anos de seca, que se quebrasse e fendesse a terra, e após eles sucedessem outros tantos de água, e após eles sucedessem grandes calmas, logo se seguiriam tremores e terramotos.
Estes perigos, com os raios, ventos e trovões, nos estão dando brados que velemos, que não sabemos o dia, nem hora em que nos hão-de chamar. Ainda com estes perigos e outros muitos que cercam ao homem, não falta quem se deite a dormir mui descuidado, como fizeram os de Vila Franca aquela noite do tremor. Que fizera, se não houvera perigo na vida e morreram todos os homens morte segura? Provavelmente se pode cuidar que amaram a Deus com amor mercenário e não foram bons de vontade, até os sinais antecedentes e preparações que às mortes naturais soem preceder. Mas, todavia, como quem estende um pouco o prazo, a imensa misericórdia de Deus ordenou que aos terramotos prece-dessem sinais que são: se o mar se alevanta sem vento, se as aves andam atordoadas por terra, se a água dos poços sai turva, e finalmente precede um estrondo e tom do ar, como no segundo terramoto que contarei, se ouviu dantes um estrondo pelo ar, como aves que vão voando e batendo as asas. E nos homens precede vágado de cabeça e debilitação dos membros, para que, sequer com estes sinais, se provejam e Ihes pese do mal passado e emendem o porvir. De algumas perdas e mágoas que causou este tremor que contei, em Vila Franca do Campo e em toda a ilha, se fez, Senhora, o romance seguinte.
Não somente subverteu a terra, que correu, a Vila Franca, onde afogou todos os seus moradores e não escaparam vivos senão os que atrás tenho dito, mas também quebrou terra em outras partes da ilha, onde matou a muitos, como foi na Ponta da Garça, uma légua de Vila Franca para o nascente, além da freguesia, onde se chama as Grotas Fundas; ali quebrou um grande pedaço de terra que levou casas e gado e quanto achou diante e morreram alguns moradores, entre os quais foi um João Afonso, muito rico e de condição com que ninguém podia; todavia pôde a terra com ele; foi este tremor a horas de terça, e, indo fugindo duas mulheres, não puderam escapar, porque as alcançou a corrente da terra, e assim em cima dela, à vista de muitos, as levou ao mar.
A quarta-feira do dilúvio de Vila Franca, a horas de almoço, tornou a tremer a terra muito, e na freguesia da Ponta da Garça, no lugar que se chama as Grotas Fundas, arrebentou outra faldra de outro pico, que se chama o pico da Velha, porque era de uma velha, viúva, mulher que foi de João Afonsinho, e levou a casa da mesma velha e a casa de Afonso Rafael e a casa de Pedro Afonso, em que morreram trinta pessoas, pouco mais ou menos. E Pedro Afonso, saindo-se, foi ter a uma casa, onde morava uma sua filha, e metendo-se dentro com a filha, dizendo: metamo-nos aqui e não vejamos a morte; correu a terra e rodeando a casa, ali ficaram ambos e escaparam vivos.
Neste terramoto, no mesmo lugar, uma filha de Afonso Rafael se viu ir em mangas de camisa, viva, sobre a terra até o mar e desapareceu assim, sem a mais verem.
Logo além das Grotas Fundas, onde se chama o Loural, correu também uma lomba e morreu um Simão de Santarém, rico lavrador que ali vivia, e toda sua família.
Na vila de Água do Pau, que está mais vizinha de Vila Franca, para a parte do ponente, caiu a igreja e muita casaria e morreram nela catorze pessoas. E na Ribeira Chã, entre Vila Franca e Água do Pau, em uma casa que caiu, quatro.
Na cidade da Ponta Delgada, que então era vila, caíram muitas casas e morreram algumas pessoas. O mesmo aconteceu na vila da Lagoa. Na vila da Ribeira Grande não caiu dentro nela senão um pedaço de uma casa; mas na Lomba, de uma banda e da outra, não ficou casa que não caísse, e só uma pessoa morreu no Telhal, que foi um filho de Baltasar Vaz de Sousa, ainda menino, que andava na escola, chamado Nuno.
Na vila do Nordeste, caiu a igreja Matriz de S. Jorge, e quase todas as igrejas desta ilha caíram, e muita casaria em todas as vilas, onde morreram muitas pessoas de que não soube o número. O mesmo estrago foi nos casais que estavam pelo campo e nos lugares ou aldeias, onde não houve casa em que não houvesse perdas e gemidos. E não houve grota nenhuma, assim da parte do sul como do nordeste, por onde não corressem ribeiras de lodo, que os homens nem as bestas podiam passar, porque atolavam nelas; mas deitando em cima paus e tábuas, passavam como por pontes, até que depois secou o lodo e fizeram caminhos.
Levou a terra que corria árvores muito grandes ao mar, paus, pedras, gados e casas, e matou muita gente em muitas partes, movendo-se a terra com grandes abalos, desfechando como trovão com grande ímpeto e fúria, ferindo fogo com tanta força, como pelouro de bombarda, corriam as pedras, matando e desbaratando quanto achavam diante.
Indo do Nordeste, que está ao nascente, para o ponente, está primeiro o pico de D. Inês, mulher que foi do Capitão João Roiz, e após ele, o pico do Barbosa, ambos no limite dos Fenais da Maia. E logo outros dois picos de Luís Fernandes da Costa estão no limite da Maia, que é termo de Vila Franca, da banda do norte, um dos quais está ao levante, outro ao ponente, perto um do outro, sem haver entre eles mais que uma ribeira, que se chama a Ribeira Funda, por ser a mais alta que há da parte do norte; que, ainda que a ribeira da Salga seja também alta e funda, é mais larga, mas a Ribeira Funda é mais estreita, pelo que parece mais funda. Esborralharam-se estes picos e correram, cobriram e alagaram muitas terras de pão até ao mar, junto do qual quebraram muitas rochas que dantes tinham tamujais, azevinhos, urzes e outras árvores; e todas quebraram desde o Nordeste até a vila da Ribeira Grande, ficando as rochas limpas e esbrugadas de todo o arvoredo, como agora estão. Levou a terra, que correu, muito gado e currais ao mar, e os moinhos da Maia, onde estavam dois casais, em que podiam estar nos moinhos e casais até quarenta pessoas, porque dentro nos moinhos estavam somente vinte e duas e escaparam só dois homens, João Luís e Amador Martins, filho de Martim Lourenço. E com o tremor, caindo uma casa, colheu a parede debaixo uma mulher prenha, casada com um calafate, chamada Catarina Afonso, e Ihe fez deitar a criança pelas ilhargas e, arrebentando assim, morreu logo.
Chamavam-se a estes picos, e chamam hoje em dia, picos Escalvados, como agora estão, pela terra que correu deles, e também picos dos Costas, por serem de Luís Fernandes da Costa. Estão no termo da Maia, como já disse, os quais abriram e deitaram de si terra como barro amassado, com a madeira que em si tinham, ficando escalvados; e cobriram quantidade de doze moios de terra ao redor, desde a cumieira da serra até o mar, correndo mais quantidade para a banda do norte e do levante que para o sul, e ainda hoje em dia estão escalvados, sem madeira, somente, com alguma erva, e não tem buraco nem cova alguma, mas correu a capa da terra de cima, como o pico do Rabaçal que correu sobre Vila Franca no mesmo tempo e dia. E na terra corrida nasceu algum mato miúdo, como uveiras, louros e tamujos, mas não nos picos, que ficaram sem o mato que dantes tinham e sem outro algum que depois nascesse.
Também outro pico de grande altura nos Fenais da Maia, chamado o pico do Barbosa, se abriu no cume dele, e correu terra por todas as bandas, não que abrisse boca alguma, senão ficou, ficando em cima somente um taboleiro de largura de dez palmos e de compridão de trinta, como dantes estava; todo o mais ficou esfolado. E correndo, cobriu quantidade de terra lavradia até seis moios, em tanta altura que, depois lavrando a terra, não aparecia a madeira.
Outro pico, chamado da Senhora, por ser de D. Inês, mulher do Capitão João Roiz da Câmara, correndo também, levou muita madeira e cobriu quantidade de dois moios de terra e mato, ficando esfolado da superfície de cima somente, sem ter boca alguma; pelo que se vê claramente que em todo aquele tremor, estes picos e o de Vila Franca não arrebentaram, mas com o tremor sacudiram de si a capa e solo de terra de cima, altura de uma lança, e ficaram naquelas partes que quebraram nus, esfolados e escalvados, como hoje aparecem, onde somente criam algum azevém e alfacinha e alguma erva curta, como trevina e outras ervas que o gado pasta, mas não madeira alguma, como dantes tinham.
Estando os filhos de Luís Fernandes da Costa, da Maia, ao longo da ribeira do Preto, que eram quatro: Luís Fernandes da Costa, Gaspar Homem da Costa, Baltasar da Costa e Francisco da Costa, e com eles um alfaiate, chamado Rabelo jazendo todos em uma cama, dormindo em uma casa térrea, pegada com uma torre sobradada, com medo dos grandes tremores que três dias antes haviam botado fora uma madre, que estava posta por baixo das paredes, como seta ligeira, do solhado e traves da torre, com aquele grande tremor da noite da quarta-feira , caiu a torre sobre o sobrado, estando em cima dele um seu irmão, chamado Belchior da Costa, de idade de dezoito anos, e estando uma imagem de Nossa Senhora dependurada em uma parede da torre, no sobrado, quando a casa caiu em cima dele na cama onde jazia, se achou na rua com a imagem de Nossa Senhora na mão, e assim escapou, com uma ferida somente na maçã do rosto. E o alfaiate Rabelo, com o medo que teve, Ihe deu tão grande tremor que Ihe durou alguns dias, sem poder comer, nem beber, até que por fim faleceu. E os mais que estavam em toda a casa, homens e mulheres, escaparam sem perigo.
Defronte desta casa, da outra banda da ribeira do Preto, que está junto da Ribeira Funda, morava um Sebastião Roiz com Isabel Teixeira, sua mulher, naturais da vila de Guimarães, do Reino de Portugal; e, jazendo na cama, dormindo com dois filhos de pouca idade entre si, vindo aquele grande tremor com que arrebentou a terra em um monte ali perto, partiu a casa pelo meio e caindo um tirante sobre o pai e mãe e filhos, os tomou pelas cabeças e ali os pisou e matou, passando a terra por cima deles; e assim os acharam deitados na cama mortos e a trave em cima. E toda a benfeitoria da casa foi na volta da terra, caminho do mar, ficando só um pedaço em pé, onde escaparam um seu genro e sobrinho, chamados Pedro Afonso e Manuel Martins, e também um filho do mesmo Sebastião Roiz, chamado Hierónimo. Pegado com a casa, ficou tamanho espaço como seis ou sete varas de medir terra, que se não cobriu da enchente, onde escaparam quatro bois sem perigo.
Na mesma noite, dentro no lugar da Maia se pegou fogo em uma casa de um João Lopes, pescador de batel, onde estavam dois mil réis em tostões, atados em um pano, em um escaninho de uma caixa, que se acharam ao outro dia derretidos, feitos uma pasta. Este lugar da Maia está sujeito a três montes e alturas de terra muito grandes, convém a saber, ao pico do Barbeiro, e à lomba do Funchal, e a um monte a cujo pé nasce a fonte das Pombas, chamada assim por virem muitas de diversos lugares a beber nela, de que se serve o dito lugar. E nenhum deles correu, pela misericórdia de Deus.
Mas outra terra arriba, muito longe deles, contra a serra, e muito chã, arrebentou e correu pela grota que vai ao longo do lugar até dar no mar, sem perigar casa, nem pessoa.
Foi tanto o lodo e terra branda e mole, como lama, que deste dilúvio correu, que não ficou caminho nem herdade por onde se pudessem servir, nem andar. Estava ali um curral, ao longo da ribeira de Lopo Dias, avô de Lopo Dias Homem, da vila da Ribeira Grande, onde estavam quarenta vacas paridas, com outro muito gado, para as ordenharem o dia seguinte; todas foram alagadas e afogadas da enchente da terra com todo o outro gado, sem mais aparecer alguma.
No tempo da desolação de Vila Franca, se alevantou na Chada Pequena um redemoinho de vento tão grande que se deitavam as pessoas no chão, por o vento as não levar; e levou duas mulheres, uma, filha de uma Branca Gonçalves, que chamavam Marqueza, e outra, de uma sua vizinha. E vendo-as muitos ir pelo ar, caíram no mar e nunca mais apareceram.
Uma mulher, mãe de uma Leonor de Proença, que morava na Maia, ficou debaixo da terra com um frade, seu filho, sacerdote de missa, alguns dizem que cinco dias, onde o filho confessou a mãe e esforçou, dizendo que o coração Ihe dizia que haviam de sair dali, e assim foi, porque no fim dos cinco dias, cavando naquele lugar, os tiraram e viveram depois muitos anos.
Um Gaspar Homem da Costa, filho de Luís Fernandes da Costa, um dia de Reis, na era de mil e quinhentos e vinte e três anos, perto de quatro meses depois da subversão de Vila Franca, indo para casa, de ouvir missa no lugar da Maia, com seus criados, a buscar de jantar, acharam treze alimárias, entre bois e vacas, atoladas até o pescoço no lodo, e se ocuparam grande parte do dia em as desencravar e tirar, com dó de as verem perecer. E em outras muitas partes aconteceu naquele Inverno o mesmo. E nestas partes se alagaram e cobriram muitos pomares e colmeiais, que nunca mais apareceram.
Nas Furnas, estavam em uma cafua dezassete pessoas e estava por senhor da cafua um João Delgado, homem preto, de muita verdade e bom cristão, que fazia muito gasalhado a todas as pessoas que ali iam ter àquela criação de seu senhor, chamado Pedro Anes Mago, pai de Pedro Anes Mago, vigairo que agora é da vila da Lagoa; uns bardeavam, e outros eram pastores, outros iam para outras partes da ilha, e aquela noite acertaram de pousar ali, e com o tremor morreram todos, ficando só o preto João Delgado vivo, que escapou mui escalavrado, e sendo depois forro, faleceu no lugar de Rabo de Peixe e foi enterrado, por sua virtude, dentro na igreja de cima, que então servia de paróquia.
Na mesma noite da desolação de Vila Franca, arrebentou junto das mesmas Furnas terra de compridão de um tiro de arcabuz, com tanta altura e concavidade que as árvores que nela estavam, nada se moveram nem arrancaram, mas sim, pela ordem em que estavam, correram por uma terra chã, passando duas ribeiras, a ribeira Quente e a Fria, e cobriram mais de vinte moios de terra; e ali cessou a corrente da terra, mais abaixo para a banda do mar, apartada do lugar onde dantes estava com as ditas árvores, que nela também dantes estavam prantadas, algumas das quais se cortaram depois, mas durou muitos anos uma grande faia, verde e fresca, junto da qual o negro João Delgado fez outra cafua, e na mesma faia, que correu sobre a dita terra, dependurava os cabritos e cabras, e carne, pão e miúdos das reses que matava; a qual faia, contam os antigos, que ia na dianteira da terra corrida, aquela noite do tremor.
Um canário, chamado Pedralvres, natural de Tenarife, que foi de João Álvares do Sal, morador na vila da Lagoa, achando-se aquela noite no sítio das Furnas, deitou quatrocentas cabras ao pé da rocha, que se chama Pé de Porco, da qual com o tremor quebrou e caiu um pedaço e soterrou as cabras, sem aparecer mais alguma.
Desta maneira fizeram outras quebradas da terra, em outras partes da ilha, grandes danos, matando gente e gado, pelo que se chama nesta ilha àquele dia do tal tremor Mandado de Deus. Outros Ihe chamam Dilúvio, outros Mistério e outros nomes diversos e todos Ihe quadram por diversas razões.
A Deus, que mandou este castigo, prometeram os povos desta ilha fazerem procissões no tal dia, cada ano, como sempre fazem. Dizem que morreriam em Vila Franca cinco mil almas debaixo da terra, o que não parece poder ser, nem haver então na vila tanta gente, pelo que dizem outros que entra neste número toda a mais gente que morreu em outras partes da ilha.
Mas, o que a mim me parece mais certo, é que neste número de cinco mil almas entram também os que morreram na peste, que depois veio e começou no ano seguinte.
No mosteiro antigo de S. Francisco, de Vila Franca do Campo, estava uma imagem de Nossa Senhora, de grandura de uma menina de quatro ou cinco anos, a qual no dia da subversão da dita vila correu com a terra, ou sobre a terra, do altar onde estava até o mar. E daí a perto de um ano, ou menos, foi ter a Tenarife, uma das sete ilhas das Canárias, onde indo uns pescadores, naturais de Orotava, da banda do norte, em um barco pescar à banda do sul, no rio de Adeixe, que é uma freguesia, andando pescando viram ao longo da costa, em uma praia de areia branca , entre o sargaço que o mar deita fora na areia, um vulto com feição de cabeça de pessoa e, parecendo-Ihe ser homem ou mulher, saiu do barco um dos companheiros fora, a ver o que era, e achou ser uma imagem de Nossa Senhora, e metendo-a no barco, sua tenção era levá-la a seu próprio lugar de Orotava, onde eles moravam. Indo para lá, foram ter a um arrecife, que é uma baía no porto de Garachico, outra freguesia também da banda do norte, como quatro léguas de uma à outra. Saindo ali e vendendo seu pescado, tomando refresco, sem falarem na imagem que levavam, quando foi à saída para fora de Garachico, por mais que remavam, não puderam sair; pelo que, suspeitando que a imagem que levavam era causa disso, se tornaram a terra e contaram ao povo de Garachico o que Ihe havia sucedido; fazendo-o a saber aos sacerdotes e à justiça secular, veio todo o povo e, entendendo todos que era permissão e vontade de Deus ficar ali aquela imagem de Nossa Senhora naquele lugar, a levaram com procissão muito solene, do barco até a igreja maior que é da invocação de Sant’Ana; e ali puseram no altar-mor a imagem da Filha, com a pintura da Mãe, Santa Ana, onde agora está. Indo depois desta terra um homem ter a Tenarife àquele lugar de Garachico, e, vendo no altar-mor daquela igreja de Santa Ana aquela imagem de Nossa Senhora, a conheceu por um certo sinal que tinha que era a mesma que vira no mosteiro de S. Francisco, de Vila Franca do Campo, desta ilha de S.
Miguel, antes do tremor da terra que a subvertera; e assim o disse a todo o povo de Garachico, donde começou a ser tida aquela imagem em mais veneração que dantes, por saberem que de tal tremor e de tão longe a levara Deus pelo mar àqueles partes, e se fora desta terra, como se foi o Santo Sacramento para outra parte, e levara pelas águas do mar a Filha, para a agasalhar e aposentar na casa de sua Mãe, Santa Ana.
Certo sabemos que muitas coisas, primeiro que se viessem a efectuar, andaram muito tempo na boca das gentes, sem saber donde nasceu a tal opinião. Assim a destruição de Vila Franca do Campo que quero contar, primeiro se dizia que viesse, ora procedesse de revelação divina, posta na boca dos meninos para denunciarem o castigo que Deus queria dar àquela vila, ou de outra qualquer causa.
E poucas vezes manda Deus a execução de sua justiça, para castigar os pecadores, sem primeiro mandar pregoeiros e mensageiros que declarem o rigor da sentença que ele tem dada na sua mente divina, como as visões e sinais que se viram sobre Hierusalém , antes de ser destruída por Tito e Vespasiano, e outros muitos pronósticos de desolações futuras de lugares e povos, que antes de serem chegadas já eram sabidas e apregoadas, até pela boca de meninos, de que não faço particular menção por evitar prolixidade.
Assim, querendo Deus castigar Vila Franca do Campo, a mais populosa vila destas ilhas dos Açores, onde com a grande abundância e viço vicejaram muitos males naquele antigo tempo fertilíssimo, sem saber donde nascera o prognóstico, permitiu Deus que andassem os meninos inocentes alguns dias dantes de seu dilúvio , apregoando pelas ruas que havia de vir cedo, e na sua véspera diziam claramente: amanhã havemos de morrer todos e se há-de alagar esta vila. Seus vizinhos diziam uns a outros: dizem que nos havemos de alagar esta noite; ceemos bem e morreremos fartos. E uns compadres diziam a outros: compadre, comamos hoje nossos capões, pois que havemos de morrer amanhã; tão cego andava todo aquele povo que em lugar de temer e tremer e fazer penitência, zombando se dava e entregava mais a deleites e manjares. Todavia, alguns temendo, fugiam para outras partes, outros, não o crendo, ficavam na vila, outros escaparam fora em suas quintas onde moravam, outros, por acudirem a seus negócios, se iam a suas granjearias fora dela, como aconteceu a alguns que irei dizendo.
Antes desta subversão e tremor da terra que quero contar, veio ter a esta ilha um padre pregador da ordem de S. Domingos, chamado Frei Afonso de Toledo, o qual, dizem, era irmão do arcebispo de Toledo e parente chegado do duque d’Alva. A causa de sua vinda a esta terra, dizem ser porque, no tempo das comunidades que houve em Castela, era ele um dos comuneiros, e dizem também ser o abade de Tentule que pretendia ser Bispo de Çamora, e o de Çamora arcebispo de Toledo. Este pregador, dizem alguns que naquele tempo pregara, aqui na vila da Ponta Delgada, que se havia de alagar uma vila ou ilha; outros dizem que não pregava senão que se emendassem todos nesta ilha e fizessem penitência, porque Ihe arreceava vir sobre ela grande castigo, pelos males e pecados que via na gente dissoluta, com a grande abundância e fartura que então havia nesta ilha, onde todos viviam ricos e abastados, sem se achar um pobre a quem se pudesse dar esmola, para o que fazia fazer algumas procissões muito devotas, o que parece ser assim; porque, como outros antigos contam, foi chamado o dito pregador uma sexta-feira, seis dias antes da subversão, de mandado do ouvidor do eclesiástico; do qual perguntado deste caso, como sabia que se havia de alagar esta ilha, respondeu: No digo io esso, sino que será lo que Dios quisiere; dizendo que pregava contra os vícios que via, arreceando que viesse algum grande castigo por eles.
Véspera da subversão, o tornou a mandar chamar o ouvidor do eclesiástico da Ponta Delgada; e chegando à Vila Franca já tarde, chamando à porta do dito ouvidor para falar com ele, Ihe foi dito de sua parte por um pagem de casa que ao outro dia Ihe falaria; ao que respondeu Frei Afonso: Puede ser que mañana no me podra hablar; a qual palavra o dito pregador confessou depois a algumas pessoas nobres que a dissera assim à ventura, sem adivinhar o que havia de ser. Também não passou assim o que outros contam dele, que acabando de dizer esta palavra, se foi além da ribeira, a uma pousada de um homem pescador, chamado o Gago, que servia de estalagem, onde estando recolhido em oração, mandou um seu moço fora, olhasse se via alguma coisa para a parte do mar, e tornando o moço dizendo que não via nada, o tornou a mandar com aquela sete vezes, e na derradeira Ihe disse o moço que vira uma nuve pequena, como pegada de um homem, subir do mar, e que então dissera o dito pregador que era chegada a hora que se havia de destruir Vila Franca.
A qual história, posto que ele estivesse então recolhido naquela estalagem onde soía pousar, não passou assim. Mas alguns, não certos relatores, Iha aplicaram, sendo caso que aconteceu a Elias, profeta, no Monte Carmelo, como se pode ver no fim do décimo octavo capítulo do terceiro Livro dos Reis.
Gomes Fernandes, homem nobre, que depois viveu no lugar do Faial, oito dias antes do terramoto, se partiu de Vila Franca para a ilha da Madeira, e o dia que se subverteu a dita vila sentiram os marinheiros e passageiros tremer a nau no mar; e chegando à ilha da Madeira, acharam nova que era perdida esta ilha de S. Miguel, do que eles se riram e disseram que tal não era. Mas não tardou muito um navio que foi desta terra, com o qual se soube que era destruída Vila Franca.
Segunda-feira, dois dias antes do dito tremor, se foi Pero da Costa embarcar com duas suas irmãs, Isabel da Costa, que depois se chamou Isabel do Espírito Santo, e Maria da Costa, que depois, sendo freira, foi seu nome Maria da Trindade, que então eram moças solteiras, e partindo de Vila Franca, onde moravam, para a Povoação Velha, para governar a fazenda de seu pai, que lá tinha, ainda que então também era mancebo bem moço, ia para começar a lavrar e semear as terras, com as ditas irmãs, para ministrarem o mantimento à gente de casa.
Deitado o batel ao mar para fazerem sua viagem e saídos do porto tanto como meia légua, sendo ante-manhã uma hora, não taparam a jaja do batel, pelo que fez tanta água que não lha podendo tomar, se tornaram ao porto donde haviam partido, e daí para casa, onde ficava seu pai e mãe e outros irmãos.
À terça-feira seguinte, de madrugada, querendo-se embarcar só no mesmo barco o dito Pero da Costa, oferecendo- se suas irmãs sobreditas a ir com ele, como dantes iam, Iho quisera estorvar sua mãe; mas uma das irmãs, Isabel do Espírito Santo, que desejava ir, por ver ser assim necessário, ainda que a outra tinha pouca vontade e a mãe muito menos, posto que porfiava, já cessava sua ida; todavia, como Deus as tinha guardadas para serem suas servas, como tanto depois foram, veio Maria da Trindade conformar-se mais com a vontade da outra irmã, e partindo, chegaram com boa viagem à Povoação, terça-feira ao meio-dia. A horas de véspera, Ihe pediu um vaqueiro de seu avô o barco, para nele vir a Vila Franca buscar coisas necessárias para o monte, e chegando com seus companheiros, varando o barco no porto da vila, donde havia partido, se recolheu a negociar e negociou para sempre, porque a madrugada seguinte foi espantoso tremor e coberta a vila de terra, onde ele e todos os demais ficaram sepultados.
Eis aqui como escapam muitas vezes vivos, pelos rodeios que Deus ordena, os que estavam no perigo, e vão buscar de perto a morte os que estavam fora e longe dela. Assim ficaram vivas as duas irmãs, como treslado da vida contemplativa que depois tiveram, com seu irmão, não menos servo de Deus na outra vida activa, em que, por muitos anos que viveu naquela vila, depois de reparada ou de novo feita, Ihe fez muitos e notáveis serviços, dignos de celestial galardão e perpétua memória, ficando também sepultada toda a mais casa de João de Arruda, pai do dito Pero da Costa, na dita vila, convém a saber, sua mulher e duas filhas e um filho e um escravo e uma escrava. Mas João de Arruda por ter que fazer na Ponta Delgada, para onde também André Gonçalves de Sampaio, chamado Congro, estava de caminho, para se recolher a sua fazenda do lugar de Rosto de Cão, ordenaram de irem ambos em companhia, e estorvava-se a ida por faltar uma cilha para a besta em que havia de ir a mulher de André Gonçalves, pelo que cessava sua partida; mas tinha-lhe Deus dado vida, porque João de Arruda Ihe ordenou de uma corda remédio, pelo que fizeram seu caminho e escaparam, ficando a mais gente de sua casa soterrada debaixo da terra, como todos os mais da vila ficaram. Donde se podem conjecturar outros muitos acontecimentos semelhantes, que haveria então em um povo tão grande.
Também o Capitão Rui Gonçalves da Câmara, três ou quatro dias antes do tremor, se queria partir só, de Vila Franca onde morava, para uma sua quinta do Cavouquo , que tinha acima da vila da Alagoa; mas por D. Filipa Coutinha, sua mulher, ter ciúmes dele, o quis acompanhar na jornada, deixando na dita vila filhos e filhas e toda a mais gente de sua casa.
Alguns dizem que queriam levar consigo seu filho Manuel da Câmara, que era então de pouca idade, contra sua vontade, querendo ele antes ficar com suas irmãs, para o qual fim foi à estrebaria encravar a mula em que havia de ir, por ao tal tempo andar de amores na dita vila.
Outros dizem que seu pai e mãe o deixavam ficar com os mais de casa, e partidos, ele como moço de pouca idade e muito mimoso, os vinha de trás seguindo e por mais que o Capitão o fazia tornar para a vila, não deixava ele de os seguir, até que por rogos dos cavaleiros que o iam acompanhando, o mandou tomar às ancas de um e levou consigo para o Cavouquo, com que escapou da morte, ficando morgado e herdeiro da casa de seu pai, por falecer em Vila Franca seu irmão mais velho, que o era, com toda a mais gente da dita casa.
A própria noite da subversão de Vila Franca, houve homem que ouviu um ronco muito grande vir da banda do noroeste e ir para oriente, e chegando o dito ronco como sobre a vila de Água do Pau, começou tremer a terra.
Deus, que é causa primeira de que tudo depende, quando por seus justos e ocultos e às vezes manifestos juízos, quer castigar algumas das criaturas que ele criou, toma por instrumentos as causas segundas, que são os elementos; e às vezes, contra grandes e desaforados males, coisas pequenas e baixas, como são os bichinhos da terra, ou a mesma terra, como a tomou nesta ilha de S. Miguel para cobrir e assolar a mais populosa vila que nela e em todas as ilhas dos Açores naquele tempo havia, chamada Vila Franca do Campo, onde residiam os ministros da justiça eclesiástica e secular, e a mais nobre gente da ilha tinha suas moradas, e estava o porto principal, e escala, e alfândega, e ricos e grossos lavradores e mercadores; o que tudo veio a parar em dores, com vários e desastrados casos, que em sua subversão aconteceram, como agora direi, para com tal exemplo ser Deus engrandecido em seu poder e temido em seu juízo e castigo.
Em tempo que governava esta ilha de S. Miguel o muito ilustre Rui Gonçalves da Câmara, quinto Capitão dela e segundo do nome, servindo de seu ouvidor Antão Pacheco, e sendo ouvidor do eclesiástico Simão Godinho, na era de mil e quinhentos e vinte e dois anos e vinte e dois de Octubro da dita era, sendo quarto dia de lua, em uma quarta-feira, menos de duas horas antemanhã, não havendo sinais do céu, nem da terra, mais que a notícia confusa e voz e murmurinho do povo, que atrás tenho dito, estando o tempo sereníssimo, sem fazer bafo de vento que então era levante, estando o céu estrelado e claro, sem aparecer nuvem alguma, se sentiu em toda a ilha um grandíssimo e espantoso tremor de terra, que durou por espaço de um Credo, em que parecia que os elementos, fogo, ar e água, pelejavam no centro dela, fazendo-a dar grandes abalos, com roncos e movimentos horrendos, como ondas de mar furioso, parecendo a todos os moradores da ilha, que se virava o centro dela para cima e que o céu caía. E acabando o espaço do Credo, ou de um Pater-Noster e Avé Maria a todo mais, e ainda não foi tanto, tornou outra vez a tremer mais brandamente outro tanto; a horas de terça, no mesmo dia, tornou a tremer muito rijo por pouco espaço; ao meio dia tremeu outra vez, e à véspera, outra.
Do primeiro tremor antes que amanhecesse, arrebentou e quebrou grande quantidade de terra, correndo por muitos lugares, dos baixos para os altos, e de outras partes, dos altos para os baixos; principalmente sobre Vila Franca quebrou grande quantidade de faldra de um monte, do pé da serra, que está sobre ela; e alagando-a e cobrindo-a de terra, lodo e alguns grandes penedos, da banda do norte, totalmente a subverteram.
Em uma só triste noite foram acabadas muitas vidas e ficou tudo tão coberto, que nem nobres casas, nem altos edifícios, nem sumptuosos templos, nem nobres e vulgares pessoas pela manhã apareceram, ficando tudo raso e chão, sem sinal nem mostra onde vila estivesse, porque com o tremor caíram os mais dos edifícios primeiro e a casaria, que acolheu a mais da gente debaixo, depois, sobrevindo a terra correndo, arrasou tudo, como raio ligeiro que desbarata quanto acha mais forte e duro.
Da ribeira para a parte do oriente, onde estava a vila, tudo foi assolado e os moradores todos quase mortos. Somente na mesma ribeira, para o ponente, escaparam algumas casas, delas caídas, onde ficaram vivas até setenta pessoas, pouco mais ou menos, as quais todas começaram a dar grandes gritos, chamando uns por Deus, outros por Santa Maria, na qual aflição Ihe foi grande consolação a presença e doctrina do padre Frei Afonso de Toledo, que com eles escapou no mesmo arrabalde, amoestando-os que se confessassem e pedissem a Deus misericórdia, pondo por intercessora a Virgem Nossa Senhora, a que fez fazer uma casa de invocação do Rosairo, onde depois se fez mosteiro de frades franciscos, porque o que estava arriba da vila, quase ao pé da serra, foi o primeiro edifício que se cobriu de terra, onde morreram até vinte pessoas, entre sacerdotes e coristas e hortelão.
Dois homiziados que ali estavam, sentindo o tremor, fugiram por uma rua abaixo, bradando à gente que fugisse; um deles alcançou a terra e morreu; o outro, fugindo mais prestes, escapou; e sós três frades escaparam, que foram do mosteiro para a vila, não se sabe como, se por seu pé, se por os levar a terra sobre si, até junto onde está agora o mosteiro das freiras, e aí se tiveram em uns dragoeiros derrocados e caídos.
Pouco antes disto havia que eram vindos dois clérigos do bispado do Algarve, fugidos das asperezas do Bispo, que os tratava muito mal; um deles, homem de respeito e de idade de cinquenta anos arriba, e outro, mancebo, e se recolheram em uma casa sobre a ribeira, onde ambos pousavam e, como não ficaram muito cobertos de terra, os comeram os cães.
Uma menina, de idade de três ou quatro anos, que depois foi mulher de um Fernão Pires, escapou em cima de uma tábua, não se sabe como, mas o pai e mãe e toda mais gente de casa ficou soterrada e morta.
Um padre, chamado Álvareanes, beneficiado na dita vila tinha uma negra, a qual, ficando a casa de seu senhor coberta da terra e ele soterrado nela, foi sã e salva, estando na mesma casa, ao barco em que havia vindo o barqueiro atrás dito, da Povoação, o qual estando varado, parece que o ímpeto da terra o levou ao mar e pela manhã apareceu a negra dentro dele, onde se salvou.
Da banda do ponente da ribeira, onde estava a cadeia, foi também correndo a terra, encostando-se a ela, mas não a derribando, escaparam os presos, os quais logo foram soltos pela gente que acudiu. Abaixo da cadeia morava uma mulher viúva, a qual, alevantando-se da cama pelo tremor que ouvira, abrindo a porta, deu o entulho da terra ou barro nela, encostando-a a uma das ombreiras da porta, e ainda que a não cobriu de todo, ali apareceu, ao outro dia, entalada e morta. Dali foi correndo uma lista de terra ao longo da ribeira, onde havia mui formosa casaria, a qual também toda se destruiu e morreu toda a gente que nelas morava, salvo Estêvão Nunes de Atouguia e um negro seu, o qual, ouvindo o tremor, se saiu de uma câmara que estava da banda da ribeira, por onde ia a maior força da terra, para a sala, e ali escapou, ainda que da mesma sala ficou pouca parte em pé. Isto era às costas da ermida de Santa Catarina. Dali para o ponente, onde havia poucas casas, escaparam todas e os moradores delas, que seriam setenta almas.
O Capitão Rui Gonçalves da Câmara, que era ido, dois ou três ou mais dias havia, para uma sua quinta do Cavouquo com sua mulher D. Filipa e seu filho Manuel da Câmara, lá escaparam; mas suas casas, ainda que estavam desta mesma parte da ribeira, chegadas a ela, se perderam e nelas Ihe morreram duas filhas, D. Hierónima e D. Guiomar, e seu filho morgado, e uma sua irmã, chamada D. Melícia, e um filho natural, com muita gente que ficou em casa.
Escapou também Augustinho Imperial, genoês, e sua mulher Aldonça Jácome, saindo da câmara para a sala, e quantos ficaram nas outras casas morreram.
Assim que correndo esta terra logo no princípio, assolou a vila toda em tão breve espaço que se não pôde ninguém salvar, e tomou grande posse do mar, entrando por ele.
Ficaram também outras duas casas em pé à borda dele, porque ia a terra cansada e não com tanta fúria: uma foi a de Rui Vaz da Mão, por cansar ali o entulho da terra que corria, cobrindo um dos dois sobrados que a dita casa tinha; a outra era de João d’Outeiro, um dos mais ricos homens desta ilha, que foi sogro de D. Gilianes da Costa; mas as câmaras e recâmaras ficaram mais danificadas.
Muitos se acolhiam dos lugares onde a terra que corria não chegou para a igreja de S.
Miguel, principal, cuidando ter nela refúgio, e os afogou o lodo e polme, que já ali não corria com muita pressa e ligeireza, senão com algum vagar; quase como foi aqui o biscoito que correu na vila da Ribeira Grande e outros biscoitos que correram vagarosos; pelo que parece que se correra de dia, tomando a gente acordada, que vira por onde e para onde fugia, se salvaríam quase todos os que as casas caídas não mataram; mas como era de noite, no quarto da modorra, quando dorme quem de noite às vezes não pode dormir, alcançou tantos a morte dormindo e amanheceu-lhe aquela noite na outra vida aos que, vigiando, pode ser que ficaram ainda vivos nesta. E não seria para eles grande mal amanhecer na outra vida, ou dormindo acordar lá, se não houvesse ali alguns dormentes em pecado mortal, que com culpas mortais amanhecessem na noite do inferno para sempre.
Está o monte donde arrebentou a terra, como sabão e pedra pomes tudo misturado, um quarto de légua da vila que cobriu; com o qual polme saíram grandes penedos pela concavidade da ribeira, por onde ia a maior quantidade e enchente dele, um dos quais ficou abaixo do mosteiro de S. Francisco que então havia, de cujas oficinas não ficou figura alguma, nem rasto. E outro penedo muito grande atravessou a vila toda, da serra ao mar, onde se foi assentar no porto antigo, que então servia, entrando pela água alguns quarenta passos e, chegando ao lugar onde está posto, e aparece parte dele sobre as águas, quase defronte da casa que foi de Jorge Furtado; parece que não podia trazer outro caminho senão pela igreja principal, que era um sumptuoso templo do Arcanjo S. Miguel, que havia pouco tempo que se acabara, mas em mais poucos acabou de desaparecer de todo.
Havia no porto então quatro ou cinco navios, abrigados ao ilhéu, para partirem para Portugal, o que foi causa de morrer mais gente ali, onde se ajuntava de toda a ilha para fazer aquela viagem.
Depois de coberta a vila da terra corrida, e sendo já dia claro, se ajuntavam algumas pessoas que viviam pelos montes e nas quintas e os que ficaram vivos no arrabalde, espantados todos dos grandes tremores e estrondos que ouviram, e vendo a vila no estado em que estava, pasmavam.
Foi um deles dar as tristes novas ao Capitão Rui Gonçalves e sua mulher D. Filipa Coutinha e a seu filho Manuel da Câmara que então seria de catorze anos, como alguns dizem; o qual Capitão, com grande tristeza e maior pressa, acudiu logo a ver o que era e chegando à grota do Barro, que está perto da vila, não pôde passar por estar arrasada de lodo; pelo que foi buscar outro passo mais arriba para a serra, por onde passou. Chegando à vila, não viu figura nem sinal dela, nem os soberbos paços de grande casaria, nem filhos e filhas, irmã, criados, criadas, escravos, escravas e a grande família que ali poucos dias antes tinha deixado. Tudo estava coberto de terra e campo raso que agora serve de lavoura e onde estão ricas hortas e muitos pomares.
Chegou neste tempo também à dita vila o contador Martim Vaz Bulhão e outra muita gente de toda a ilha, ajuntando-se com a que ali escapou, todos tão desconsolados e tristes, como tal perda a tal tempo requeria; e estando presente o pregador Frei Afonso de Toledo Ihe fez fazer a ermida de Nossa Senhora do Rosairo, que tomaram por advogada, a qual brevemente fizeram em poucos dias e com muitas lágrimas e devaçam , acarretando todos a pedra, madeira e achegos necessários, a seus próprios ombros, em a qual se recolhiam e foi sua paróquia alguns dias, servindo-lhe, dantes dela feita, de freguesia a ermida de Santa Catarina, que escapou sem cair.
Fez também o dito pregador fazer um voto a todos de irem a esta casa do Rosairo com procissão, todas as quartas-feiras, e dizerem uma missa, que ao seu dia dizem, e de que há confraria, em memória daquela quarta-feira, triste dia, indo ali procissões de noite ou de madrugada, o que se cumpriu sempre; mas de poucos anos a esta parte, por algumas justas e honestas razões, já cessaram, fazendo-as cada ano, de dia, em toda a ilha.
O Capitão Rui Gonçalves da Câmara, ainda que mui sentido com a mágoa de perder filhos e filhas, parentes e família, antes de acudir a sua casa, fez fazer uma procissão em que foi direito, com todo o povo, ao lugar em que estivera a igreja de S. Miguel, onde mandou cavar primeiro tanto, direito do altar da capela-mor, esforçando o povo, até que os que cavavam entenderam cavando que primeiro com o tremor fora derribada e depois correra a terra sobre ela e sobre a igreja, também caída, em pouca altura. E buscando no sacrário o Santíssimo Sacramento, o não acharam, senão somente um pequeno cofre em que estava dantes e costumava estar, já aberto e com uma lasca quebrada. E, não o achando dentro, começaram a dar grandes gritos e, com um grande coro, derramar muitas lágrimas, não sabendo se o levara o lodo para o mar, ou os anjos para o Céu, pedindo todos a Deus misericórdia e perdão de suas culpas, vendo tal maravilha, entendendo que seus pecados foram causa de seu Deus se absentar deles; e esta foi, para todos os que ali se acharam, a maior e mais triste de todas as mágoas.
Parece que nem a terra que correu levou o Santíssimo Sacramento, pois o cofre estava cerrado , nem os anjos o levaram para o Céu, ou ele mesmo subiu lá; mas ele se foi ou o levaram os anjos pelos ares a algum sacrário de alguma igreja mais perto da dita vila, como é a igreja da vila de Água do Pau, onde conjecturo que o puseram, por alguns sinais que algumas pessoas disto viram, como foi um Fernão Vanhegas, castelhano, e outras pessoas que então se acharam em Vila Franca; os quais estando no arrabalde, viram alevantar pelo ar, do lugar onde a igreja matriz estava, uma grande claridade e logo disseram todos que era o Santíssimo Sacramento que alguns anjos levariam para o pôr em algum sacrário de outra igreja, que devia ser, como tenho dito, a da vila de Água do Pau, que estava mais perto. Concorda com isto o que aconteceu a uma Constança Vicente, que foi casada duas vezes, a primeira com um João Pires, de que estava viúva no tempo da subversão de Vila Franca, a segunda com um João Pequeno, de que também viuvou; a qual, estando aquela noite na mesma Vila Franca, no sobrado de sua casa, fiando à roca, com o tom dela não sentiu o tremor, e ouvindo rumor de uma procissão e som de campainha, cuidou que levavam o Santo Sacramento a algum enfermo; cuidando nisto, com um bafo de vento se Ihe apagou a candeia; indo então à cozinha para a acender, achou-a derribada com o tremor que ela não sentiu. Depois, por não acharem o Santo Sacramento no sacrário de Vila Franca, quando cavando o buscaram, se suspeitou que aquela procissão e rumor, que aquela mulher ouvira, seria de anjos que o levavam para o pôr em algum sacrário com outras hóstias sagradas, ou para onde Deus ordenaria. E posto que a igreja matriz da vila de Água do Pau caiu aquela noite, não houve lesão no sacrairo onde o Santissimo Sacramento estava, nem se achou menos.
Depois mandou cavar o dito Capitão em outras partes, e muitas pessoas de toda a ilha, que ali tinham suas casas, parentes, amigos e conhecidos, mandaram cada um cavar onde Ihe doía, uns para tirar os corpos mortos, outros para ver se achavam dinheiro e alfaias que tinham em suas casas, outros para fazer o mesmo aos corpos e fazenda de seus parentes e conhecidos. E assim se cavava em muitas partes da vila juntamente cada dia, e a uns achavam mortos pelas ruas, outros em suas casas e leitos, entre os quais achavam alguns vivos, como foi um João Cordeiro, que depois foi beneficiado na freguesia de S. Sebastião na cidade de Ponta Delgada; e um moço, chamado Adão, se tirou debaixo de uma casa e viveu servindo na Casa da Misericórdia da dita cidade muitos anos.
Em outra casa escapou um Simão Lopes, que esteve dois dias debaixo da madeira da casa, ao longo de uma empena, coberto de terra, e indo um seu filho por cima dela chorando, ouvindo-o ele, chamou pelo filho a brados, dizendo: Domingos, Domingos; cavando então ali, o tiraram e viveu depois muitos anos.
Cavando e sem cavar achavam muitos homens e mulheres mortos e vestidos, uns com um braço alevantado, outros com as cabeças, outros com os pés, parecendo claramente que com o tremor fugiram dele e a terra os tomara assim fugindo e os envolvia em si ou consigo, da maneira e postura em que os achavam.
O pai de Nuno de Atouguia mandou a uns seus escravos, que levava consigo, que cavassem em um certo lugar, onde ele tinha sua casa e dantes morava, prometendo alforria ao que Ihe achasse o cofre do seu dinheiro; e em poucas enchadadas deram com ele, o que mostra não ter muita altura a terra que correu naquela parte, ou que primeiro caíram algumas casas com o tremor, que alagadas depois com o lodo que sobreveio, ficava dele pouca grossura sobre elas e em cima das coisas, que com pouco cavar e menos trabalho se achavam ; o qual cofre de Nuno de Atouguia desacravaram, tendo bem que fazer seis homens em o levar, e por também estar a terra mole feita massapez, pela qual se não podia bem andar. E o escravo que primeiro deu com o cofre, vendo-o em salvo, pediu ao senhor que o forrasse como prometera; ao qual Ihe respondeu que o dissera zombando, mas importunado do escravo Ihe deu carta de alforria.
Com a pressa do correr da terra, uma mulher se apegou em uma tábua e a corrente a levou ao mar, aonde andando na tábua, foi ter a um penedo muito grande que a mesma terra levou, que está hoje em dia no mar, onde estava dantes o porto da dita vila; e pondo-se sobre ele, foi depois um batel de um navio, que no porto estava, a tomá-la, e assim se salvou e achou sobre as líquidas águas a vida que na massiça terra houvera de perder, se nela ficara.
Na mesma quarta-feira da subversão da vila, que foi de noite, em amanhecendo, entre outras coisas que se acharam, viram uma menina de dois até três anos, pouco mais ou menos, estar sobre umas tábuas, brincando com umas palhas, que parece serem as tábuas e as palhas da cama em que jazia quando o tremor veio; e pondo umas tábuas sobre o lodo, por elas a foram tirar das outras tábuas; a qual foi conhecida por filha de um homem principal e rico, e depois a deram a criar e casou na mesma vila, que se tornou a reedificar da outra parte da ribeira.
Em outra casa onde morava um negro, casado com uma negra, sentindo ele o tremor, se levantou da cama e fugindo, não apareceu mais, pelo encravar a corrente da terra. Mas a negra dormindo, por cima do lodo e polme que corria, foi ter junto do mar, na cama em que dormia, e ali acordou, quando com as mãos deu no lodo, espantando-se e cuidando que era água que chovera na sua cama, mas vendo o que era, se saiu de gatinhas fora, por cima do lodo, para onde ele não chegava, e assim escapou. E escapa quando Deus quer a que dormia e o que dorme; e morre o que vigia e foge, como morreu o marido desta, que vigiava; porque, como diz David, se o Senhor não guarda a cidade, em vão vigia o que a guarda.
Muitas pessoas se enterraram fora de suas casas, que iam fugindo, e depois achadas, as enterraram no adro, onde outras morreram por fugirem para a igreja. E muitos e mais foram os que desta maneira morreram, que os que ficaram debaixo das casas; nas quais se achou muito dinheiro daqueles defuntos e todo por mandado do Capitão se depositava na mão de um depositário, que se chamava João Loução, e de outras pessoas.
Poucos tempos há que um Sebastião Pires , achou, cavando, uma taça de prata e conhecendo cuja era, a deu a seus herdeiros.
Cavando em uma casa, acharam marido e mulher e filhos, todos deitados em uma cama, com uma trave atravessada por cima de seus pescoços, que todos os afogou. E porque cansavam muito os homens cavando, todo o fato e dinheiro que tiravam Ihe davam de meias.
Iam enterrar os corpos mortos onde estivera a igreja principal.
Estando a terra que correu sobre a vila, dali a muitos dias, como lêveda e bêbeda da água, pondo os pés em uma parte dela, tremia em outra dali a certo espaço, como faz o caramelo, e por isso andavam por cima de tábuas que punham sobre ela, enquanto esteve desta maneira brande e mole.
Outro Simão Lopes, homem solteiro, de fora desta ilha, ficou em uma casa em que morava, debaixo da terra que correu, onde agora chamam as Hortas e dali foi tirado vivo e viveu depois muitos anos.
Um Diogo Pinheiro, sacerdote, que depois foi capelão na Casa de Misericórdia da cidade, também escapou vivo. E um homem, por alcunha o Calcafrades, que morava arriba da vila, onde agora se chama a Abegoaria, ali Ihe escapou a casa e curral com o gado, sem morrer ninguém dentro, nem pessoa, nem gado, porque cercou a terra a casa e curral por todas as partes sem a cobrir, estando no princípio da maior força da corrente da terra, por estar ao pé do pico que correu; o qual não correu todo, mas uma pequena parte, que seria como a vigésima, e não parece que saiu debaixo do centro aquela terra, senão uma quebrada da flor dela, só da superfície, que fez uma cava, a qual pelas bordas será em algumas partes de altura de uma lança.
Andando cavando dali uns dias foram dar em uma casa, onde em um vão dela acharam uma mulher que estava de parto, e a parteira debaixo dela com a criança nas mãos, já nascida, todas mortas. E por não estarem afogadas com a terra, se conjectura que morreram à fome e à míngua de não cavarem ali mais prestes.
Uma negra por nome Luzia, cativa de Cristóvão de Braga, genro de Gonçalo Vaz Botelho, que era filho de Gonçalo Vaz, o Grande, e cativa de Helena Gonçalves, mulher do dito Cristóvão de Braga, indo a terra alagando a vila, foi a dita negra naquela volta sobre ela, apegada em uma figueira, ter ao mar, onde escapou com a vida. E disse muitas vezes que vira seu senhor andar no mar, vivo, embrulhado naquela terra, e da mesma maneira dois frades.
Por estar a terra feita lodo, depois de três dias por diante da subversão da vila, começou a gente que escapou a andar por cima dela, chorando seus pecados e a absência e saudade de seus pais e mães, parentes e fazenda.
Um filho de João Gonçalves, do lugar de Rosto de Cão, estando a cavalo, dentro na lógea de seu pai, aquela noite e hora da subversão da vila, com as esporas nos pés e um arremessão na mão, já cavalgado, querendo sair pela porta fora, caiu a casa e o atupiu a ele e ao cavalo, porque assim se julgou, pelos que o acharam sobre o cavalo da maneira sobredita.
Afirmam os antigos que ainda que toda aquela noite era mui serena e apareciam claras as estrelas, depois de correr a terra como ondas do mar, uma diante da outra, sendo já dia claro, cessando a terra de correr, choveu uma chuva miúda.
Da casa de António de Freitas, cavando, tiraram uma sua filha solteira, mulher moça, achando-a na cama deitada de ilharga, com a mão debaixo da face e os toucados de dormir na cabeça; e assim morreu. Parece que não sentiu o tremor e, estando dormindo, a tomou a terra que correu.
Como em Vila Franca estava o porto principal e alfândega, iam deferir a ela e nela moravam muitos mercadores de fora da terra, onde tinham muita fazenda e diversas mercadorias, que ali iam comprar os moradores de toda a ilha. Mandando o Capitão Rui Gonçalves ajuntar muita gente de todas as partes para cavarem e desacravarem os mortos e muita fazenda dos naturais e estrangeiros, dizem uns que andando cavando, outros que indo em uma procissão, cantando as ladainhas, ouviram tom e grita de gente, como chamando por misericórdia; o qual tom ouvindo o Capitão Rui Gonçalves, entendendo que era de gente que ali estava soterrada, mandou cavar no mesmo lugar a grande pressa e cavando não muito espaço, descobriram uma ponta de uma trave, que jazia encostada com outra a uma parede de uma casa de um ferreiro, sobradada, com as traves muito bastas, a qual caindo com o tremor e amassando- se o telhado sobre o sobrado, caiu a parede da banda donde estava a ponta da trave que descobriram, e caíram também todas as traves daquela banda, ficando as outras pontas encostadas à outra parede, que ficou em pé, e tiveram a madeira e pedraria que caiu e terra que correu sobre elas e o sobrado. Viviam naquela lógea três homens naturais de Guimarães, convém a saber, dois irmãos, chamados Marcos Pires e Nicolau Pires, os quais, estando para partir para sua terra em um dos navios que no porto estavam de partida, pousavam ali com um seu natural, que estava com Lopo Anes de soldada, e morava naquela lógea, que tinha uma porta da outra banda para a ribeira, ainda que o sobrado no andar da outra rua se servia para ela. Vindo o terramoto e terra que correu, caíram as traves do sobrado, pondo as pontas no chão, da parte da ribeira, e ficaram eles ali debaixo das traves do sobrado coberto de terra. Quando cavaram, deram na ponta de uma trave daquelas caídas e fizeram um buraco para o vão, por onde logo os ditos três homens saíram, como viram a luz pelo buraco; e, alevantando as mãos, começaram a dar graças a Deus de joelhos, pasmados de ver gente, e a gente pasmada de ver a eles, amarelos, mirrados e quase sem figura, com que se alevantou então um grande grito e choro, bradando todos a Deus por misericórdia.
Tinha o Marcos Pires em um saquinho trinta mil réis em dinheiro, e tornando a entrar pelo buraco o foi tirar. Contam uns que o pai de Nuno de Atouguia o fizera tirar do navio, poucos dias antes de se alagar a vila, por uma dívida que Ihe devia; o qual, vendo-se fora daquele obscuro cárcere, como desenterrado, vendo o pai de Nuno de Atouguia, se foi para ele indignado, dizendo: ó homem, tu me matavas, tu me matavas, e que o Capitão Rui Gonçalves o quisera mandar prender, pois, tirado da prisão de Deus, tinha indignação contra seu próximo; mas não o castigou então, senão com branda repreensão, porque todos os corações então andavam brandos. Até o Capitão, chamando-lhe algum: Senhor, respondia: — não me chameis Senhor, que só Deus o é.
Perguntados estes homens que pensamentos tinham ou com que se mantiveram debaixo da terra aqueles nove dias, responderam que cuidavam diversas coisas: ou que o mundo se acabara e fundira, ou que a só eles acontecera este desastre, e, finalmente, que não sabiam o que cuidassem, tão confusos estavam, sem saber o que acontecera; e que se mantiveram com biscoito, que tinham feito para a viagem do mar, e bebiam água que gotejava do lodo e recolhiam em uma panela, a qual misturavam com um pouco de vinho que tinham em uma pipa, quase já feito vinagre. Nem sabiam determinar as horas, nem a manhã do dia, senão pelo cantar de um galo que consigo tinham. E a maior pena que sentiam era porque, das pessoas que no sobrado moravam, ficou um homem meio metido em um buraco dele e gritou tanto que eles o tiraram do buraco, e vivera com eles três ou quatro dias, acabados os quais faleceu, parece que de ir já ferido ou pisado, e entre si o tiveram os mais dias que ali estiveram, sofrendo com grande pena o seu fedor, o qual morto também tirou o povo logo e Ihe deram sepultura.
De escaparem estes estrangeiros e morrerem os naturais, parece que para o contar eles mandou Deus este castigo e grande açoite, por espelho e exemplo para uns e outros se verem e todos juntamente temerem o juízo de Deus e se emendarem. Como então não havia nenhum dos que ali se acharam que não estivesse muito contrito, porque com grande contrição e dor de seus pecados partiram dali com aqueles homens desenterrados, e com devota procissão, pedindo a Deus misericórdia, até uma ermida de Santa Catarina, que no arrabalde ficou em pé e Ihe servia então de paróquia, onde todos deram graças a Deus por escaparem, uns debaixo da terra e outros sobre ela. Estes homens, que saíram vivos daquela lógea, se foram depois para Portugal, dizendo que nunca cá tornariam, e logo dali a um ano tornaram. Tal esquecimento costuma trazer consigo o perigo passado.
Um João Lourenço Tição fugiu da cama nu para a banda do arrabalde, onde escapou vivo, como outros alguns escaparam, de que não soube os nomes.
Uma mulher, chamada Filipa Gonçalves, ficou debaixo duma casa soterrada; e, tirada dali, viveu 50 ou mais anos, perdida a fala sem mais a cobrar, somente dizia tudo o que queria com esta voz: tefas, tefas; também sabia dizer sim e não, sem mais poder pronunciar outra palavra.
E ainda que perdeu a fala, não perdeu o juízo, nem o ouvir e outros sentidos.
Como tenho dito, por haver muitos mortos debaixo da terra e muitos seus parentes, que ficaram vivos em outras partes da ilha, que pretendiam herdar suas fazendas, durou a cava daquela mina todo um ano. E, andando cavando, acudiam ao mais necessário, principalmente onde os cães uivavam, sentindo os homens que bradavam debaixo da terra e alguns mortos.
Uma mulher, tirando de casa uma menina que criava e não era sua filha, ouvindo o tremor, a pôs sobre um carro que tinha à porta, e tornando dentro a buscar outras crianças, veio a terra e levou a casa e a ela, e ao marido e filhos, e escapou aquela menina ali sobre o carro.
O contador Martim Vaz Bulhão mandou cavar em uma casa, onde acharam uma moça pequena ainda viva, a qual não podendo comer, Ihe deitaram leite de mama pela boca, e, não o podendo levar, faleceu dali a pouco espaço.
Muitos pobres cavaram então ali, que, pela cobiça que Ihes cresceu, ficaram ricos do que escondiam, dinheiro, alfaias, roupa e vestidos que acharam. E algumas pessoas, logo depois de correr a terra sobre aquela vila, viam de noite andar muitas lanternas, candeias e luminárias acesas ao longo do mar de Vila Franca até Água de Alto, e não caindo na conta do que era, uns diziam que seriam os Fiéis de Deus que ali andavam ou as almas dos que ali morreram. Mas, depois se soube que eram homens que naquela praia andavam buscando alguma fazenda, dinheiro ou peças, das que a terra levara, que o mar depois ia descobrindo. Desta maneira, ficaram alguns pobres ricos daquelas minas, que as ondas e mar, e não seus braços, cavaram. E outros muitos pobres das outras partes da ilha ficaram também ricos com as grossas fazendas que herdaram por morte de seus parentes ali mortos.
Assim ficou aquela populosa vila feita um campo raso, como onde Troia estivera, que depois serviu e serve de ricos pomares de frutas de diversa pomagem.
E a vila se tornou a povoar mui lustrosa, como agora é, da outra banda da ribeira, da parte do ponente, onde o arrabalde estava, e ficou o arrabalde vila e a vila arrabalde. E para animar os homens que a povoassem e não se apartassem daquele lugar com medo, el-Rei os dotou de muitos e mui largos privilégios e liberdades, iguais e maiores ainda que os da sua nobre cidade do Porto, em seu Reino; pela qual causa se acabou de reedificar e fazer mui prestes, mais sumptuosa que a primeira, que agora floresce habitada, povoada, regida e governada de muitos nobres e honrados cidadãos e luzido povo.
No tempo do falecimento do quarto Capitão João Roiz da Câmara, estava na Corte seu filho mais velho, Rui Gonçalves da Câmara, que Ihe sucedeu na capitania e foi quinto Capitão desta ilha de São Miguel, segundo do nome. E por ficar de pouca idade, governou por ele seu tio, Pero Roiz da Câmara, até o ano de mil e quinhentos e quatro. Em vida de seu pai já era casado, no Reino, com D. Filipa Coutinha, filha de Lopo Afonso Coutinho, irmão do conde de Marialva, que casou uma filha com o Infante D. Fernando, irmão de el-Rei D. João, terceiro do nome, dos Coutinhos do Regno, que dizem terem este apelido, porque procederam de um alferes de uma bandeira, que andando em uma batalha, levavam os imigos aos seus de vencida, o que vendo ele, metendo-se na envolta também a pelejar, e apegando alguns contrairos com ele para Ihe tomar a bandeira, ele aferrou nela de tal modo que, ainda que Ihe cortaram ambas as mãos, Iha não puderam tirar dos braços, e tornaram a ter vitória, a qual alcançada, quando o capitão o viu sem mãos e com a bandeira, Ihe perguntou com que tivera mão nela, já que não tinha mãos; ele respondeu que com os cotinhos dos braços a tivera.
Daqui veio ele e seus sucessores terem este apelido de Cotinhos, que outros dizem Coutinhos, fazendo-lhe el-Rei entre outras mais mercês esta dele.
Era esta Capitoa D. Filipa Coutinha dama da Excelente Senhora, e daí casou; foi recebida em casa de D. Gastão, seu tio, com o dito Capitão Rui Gonçalves da Câmara, que foi de mediana estatura, mas bem proporcionado; era gentil homem, de rosto bem assombrado e muito grave, no que bem representava o ser de sua pessoa e o cargo que tinha, e dotado de todas as boas partes, em especial muito largo de condição, amigo de seus criados e assim os teve muito honrados e ricos, porque o eram seus pais naquele tempo. O qual sabendo do falecimento do Capitão, seu pai, se veio na era de mil e quinhentos e quatro anos, pouco mais ou menos, com a dita D. Filipa Coutinha, sua mulher, para esta ilha, a tomar posse da capitania, onde a esteve governando alguns anos com muita prudência, paz e quietação.
Mas como a não há neste mundo não faltaram invejosos ou agravados dele, que o inquietassem, porque o contador Martim Vaz Bulhão, com que teve dúvidas, e um Frei Bartolameu , então ouvidor do Eclesiástico nesta terra, João d’Outeiro, cavaleiro do hábito de Cristo, sogro de D. Gilianes da Costa, Simão de Santarém, freire do hábito de Aviz, escrivão na mesma vila, Luiseanes, cavaleiro do hábito de Santiago, genro de Gonçalo Vaz, o Velho, Francisco da Cunha, fidalgo, marido de D. Beatriz, filha natural do Capitão Rui Gonçalves da Câmara, primeiro do nome, todos moradores em Vila Franca, e João Fernandes Examinado, pai de João Álvares Examinado, da Alagoa, por diferenças de uma demanda que teve com ele, e outros que se ajuntaram na mesma consulta, fizeram a el-Rei capítulos dele. Uns dizem que por causa dumas escrituras que desapareceram, outros que por causa de mulheres, outros que por recolher homiziados em sua casa.
Tão importunado se viu el-Rei que o mandou ir emprazado à Corte, pelo que foi forçado ir-se desta ilha, da qual levou consigo muitos homens, fidalgos, nobres e honrados, dos principais da terra, seus amigos que, às suas próprias custas de cada um, o quiseram acompanhar naquela trabalhosa jornada, que dizem ser: Sebastião Barbosa, o Velho, grão dizedor, e seu filho Hector Barbosa, Jorge Nunes Botelho, Diogo Nunes Botelho, Pero de Teive, Rui Gonçalves e Gonçalo Vaz, filhos de João Gonçalves Botelho, do lugar de Rosto de Cão, Álvaro Lopes, o Velho, de Santo António, Pero Roiz Raposo e Diogo Roiz Raposo, filhos de Rui Vaz Gago do Trato, Estêvão Álvares de Rezende, João Álvares do Sal, João Roiz Badilha, Pedralvres Benavides, da Ponta Delgada, Diogo Dias Brandão e João da Grã, de Vila Franca, Rui Tavares e Gonçalo Tavares, irmãos, Baltasar Vaz de Sousa e João do Penedo, da Ribeira Grande, Guterres Lopes, Pero Manuel, Estêvão de Oliveira, Gaspar Pires Carvalho, de Água do Pau, Vasco de Medeiros, Fernão Lopes de Frielas, João Roiz, da Alagoa, pai de Manuel Roiz, vigairo dos Fenais da Maia. E outros a que não soube os nomes partiram desta ilha na era de mil e quinhentos e dez, pouco mais ou menos.
E chegando à Corte foi despedido por el-Rei, com os que levava em sua companhia, caminho de África, aonde foi ter a Tânger, e estando ali alguns meses, sabendo el-Rei D. Manuel que el-Rei de Fez, movido das afrontas que Ihe cada dia os fronteiros faziam, determinava de ir cercar outra vez a Arzila, com muita gente e munições de guerra ; entre outros fronteiros que nela então se acharam foi este ilustre Capitão Rui Gonçalves da Câmara que, de Tânger, donde estava por mandado de el-Rei, se foi a Arzila, por Iho el-Rei assim mandar por uma carta, levando consigo quarenta de cavalo, desta gente nobre que tenho dito, e cinquenta besteiros e outros homens de pé, onde esteve alguns meses até se alevantar o cerco, como acima disse. E por todo o tempo esteve em África um ano, que foi o de mil e quinhentos e onze, pouco mais ou menos.
E o dito cronista Damião de Goes no capítulo terceiro da terceira parte da Crónica de el-Rei D. Manuel diz que estas e outras coisas aconteceram na era de mil e quinhentos e nove e mil e quinhentos e dez e mil e quinhentos e onze, pelo que não se pode entender que fosse este Capitão Rui Gonçalves o terceiro Capitão desta ilha, primeiro do nome, como se diz na relação dos Capitães da ilha da Madeira; pois esse e seu filho João Gonçalves ou João Roiz, que Ihe sucedeu na capitania, já então eram ambos falecidos e já era, nestes anos sobreditos, este Rui Gonçalves da Câmara quinto Capitão desta ilha de S. Miguel, segundo do nome, neto do outro Rui Gonçalves da Câmara, a que alguns sem razão queriam atribuir o sobredito socorro.
E em África fizeram os naturais desta ilha muitas cavalgadas, no tempo que lá estiveram acompanhando seu Capitão, que foi um ano inteiro, onde todos foram armados cavaleiros.
Depois do Capitão fazer estes serviços um ano à Coroa, em África, se veio à Corte com sua gente, bem concertada e muito lustrosa, a beijar a mão a el-Rei D. Manuel, onde, pelos capítulos que dele haviam dado, saiu a sentença contra ele, por onde perdeu a jurdição e capitania, o que vendo ele se deixou andar na Corte seis anos em que veio criar estreita amizade com Jorge de Melo, monteiro-mor, com o qual se concertou que Ihe daria seu filho, Manuel da Câmara, para casar com D. Joana de Mendonça, sua filha, e que Jorge de Melo Ihe entregaria a jurdição e capitania perdida; o que cumpriu daí a pouco tempo, porque uns dizem que um dia ao jantar, outros que uma noite, véspera da festa de Natal, estando o Capitão Rui Gonçalves da Câmara jantando ou consoando, Ihe mandou Jorge de Melo entre dois pratos, por dois criados, a sua jurdição, dizendo que aquela iguaria Ihe mandava Jorge de Melo, com o que Ihe acabou de confirmar também de sua parte a promessa feita, de casar seu filho com sua filha, sem a Capitoa D. Filipa ser sabedora, nem ser contente no tal casamento depois que o soube; mas isso não foi parte para deixar de haver efeito, como houve. E depois contarei, quando tratar do dito Manuel da Câmara, que sucedeu a seu pai Rui Gonçalves da Câmara, na casa e capitania.
Havida a jurdição pelo modo sobredito, tendo feito de custo, nestas idas de Portugal e de África e estada na Corte, perto de vinte mil cruzados, se veio, no ano de mil e quinhentos e dezassete, muito endividado, o dito Capitão Rui Gonçalves da Câmara para esta ilha, onde foi recebido no porto de Vila Franca, quando desembarcou, com muita festa e procissão solene e levado à igreja Matriz do Arcanjo S. Miguel, onde deu muitas graças a Deus, por o trazer livre de tantos trabalhos. Mas os que fizeram os capítulos, não se tendo por livres, cobraram carta de immizidade contra ele, para que não entendesse em seus casos, nem se antremetesse em coisas suas. E nos sete anos que esteve absente, seu tio, Pero Roiz da Câmara, governou a capitania por ele.
Teve este ilustre Capitão Rui Gonçalves da Câmara de sua mulher, D. Filipa Coutinha, três filhos, Simão Gonçalves da Câmara, Manuel da Câmara e João de Sousa, e duas filhas, D. Hierónima e D. Guiomar. Também teve um filho natural, chamado Miguel da Silveira. Simão Gonçalves da Câmara, o mais velho, morreu mancebo, antes do dilúvio de Vila Franca; todos os mais faleceram no mesmo dilúvio, tirando Manuel da Câmara que não se achou aquela noite na dita vila, como direi adiante.
Procurou este Capitão, em seu tempo, dar lustro a esta ilha, atraindo a si muitos homens honrados, fazendo-lhe todas as honras e favores possíveis. Alguns dizem que ele mandou vir a semente de pastel, de Tolosa, de França, e muitas aves e árvores diversas. E assim mandou fazer o mais rico pomar de toda a ilha, na sua quinta do Cavouquo onde tinha uma fonte de água, além de muitas árvores de espinho de toda a sorte que nele havia; não faltavam grandes castanheiros e nogueiras que davam muitas nozes e castanhas, pereiros e pereiras, de que se colhiam em seu tempo infinidade de peros e outras frutas, e esquisitas árvores que com muita curiosidade mandava vir de remotas terras. Fez também, na vila de Alagoa, uns fortes e ricos paços de grão casaria, com compridos esteios de cerne por dentro das paredes, até o sobrado, para assim ficarem mais seguros contra os contínuos terramotos que nesta terra então havia; os quais paços, ainda que estão quase arruinados, mostram a magnificência e grandeza de quem os mandou fazer. Depois os fez consertar o conde D. Rui Gonçalves da Câmara, seu neto. Fez também a quinta do Cavouquo que, por honra de seu autor, deveram de acrescentar e conservar seus ilustres sucessores, já que pelo proveito e refresco, que destas coisas colheriam, o não fazem. Mas a causa disto é por nesta ilha, que é sua morada, serem hóspedes e lá no Reino terem seu principal assento, de que fazem mais cabedal.
Mandou também fazer um formoso galeão e bem artilhado, com que se servia das coisas do Reino e de outras partes, quando Ihe era necessário.
Mandou este Capitão em seu tempo fazer muitas atafonas na vila da Ponta Delgada, junto do mosteiro de S. Francisco e abaixo da igreja paroquial de S. Pedro, por aliviar a opressão que o povo padecia em mandar fazer as farinhas aos moinhos da vila da Ribeira Grande, que estavam longe. Mandou trazer de Portugal codornizes e coelhos, que multiplicaram muito.
Também mandou trazer perdizes, que se perderam.
Porque João de Melo, irmão do dito Capitão, se foi desta ilha, sendo mancebo, fazer frade da ordem de S. Bento, no mosteiro de S. Bernardo em Portugal, e nunca fez partilha nem pediu sua parte ao dito Capitão, depois da morte de seu pai e mãe; falecendo o dito João de Melo, mandou o prelado daquele mosteiro onde ele professou arrecadar a fazenda que Ihe cabia da sua herança, havendo-a por sentença julgada, a qual dizem que montaria mil cruzados, pouco mais ou menos. Veio o Capitão a pagar e entregar tudo, uns dizem que ao procurador do mosteiro, outros que, por João Pardo, homem nobre, veador de sua casa e seu ouvidor muitos anos, enviava os mil cruzados em dinheiro e juntamente muitas peças de ouro e prata e móvel rico de casa, como foram duas baixelas de prata branca e outra dourada, um cavalo muito formoso, três ou quatro pipas de cadeiras de estado com a guarnição de veludo e outras coisas a seu filho Manuel da Câmara que estava no Reino, e por isto e a contia da dívida fazerem muita soma, ou por ele o pagar de má vontade, que Ihe deu trabalho a juntá-lo, pelo tomar em tempo que ainda não tinha acabado de sanear as feridas dos vinte mil cruzados que gastara em África e no Reino, recolhendo-se depois de jantar a descansar em seu leito, deu a alma a Deus que a criou, sem mais estrondo nem rumor da morte trabalhosa. E não faltou quem dissesse que morreu assim agastado de se Ihe cobrir o coração pelo dinheiro que entregou. Mas o certo é que acabou como acabaremos todos. A Capitoa D. Filipa, vendo que era tarde, o foi acordar por não dormir tanto, e achando-o com o sono da morte, se tomou a casa, e a vila da Ponta Delgada e depois a ilha em redondo, toda um grito e pranto, pela perda de tal senhor.
Era de idade perto de sessenta anos, ao menos dos cinquenta e cinco para cima, dos quais governou a capitania trinta e três anos.
Foi sepultado na capela-mor do mosteiro de S. Francisco. Tinha ele e a Capitoa D. Filipa feito juntamente um testamento em que mandaram fazer muitas obras pias aos vinte e nove de Janeiro de mil e quinhentos e vinte e quatro anos, em que nomearam por herdeiro a seu único filho Manuel da Câmara e o mesmo e seus descendentes deixaram também por testamenteiros. Mandou dar largas esmolas a pobres envergonhados e vestir logo doze, e dizer muitas missas, anais, capelas e trintairos , e algumas cantadas, em cada um ano para sempre, e que do remanescente de sua terça o seu testamenteiro tirasse cada um ano dois cativos de terra de mouros, os mais desamparados e sem remédio que achasse.
A Capitoa D. Filipa foi sempre muito virtuosa e de muitas esmolas, e discreta em saber repartir. Afeiçoada a pessoas virtuosas e religiosas, folgava de falar com pessoas discretas, pela qual razão falava com poucas mulheres; era de grande autoridade na pessoa e na fala, muito caridosa com os enfermos de sua casa e de fora, de tal modo, que pelo mais pequeno negrinho de sua família, gastara liberalmente toda sua fazenda para Ihe dar saúde; havia de ver fazer as mezinhas que se ordenavam para os seus doentes. Não queria ouvir dizer mal de ninguém. Se no povo, ou entre oficiais de justiça, ou religiosos, havia discórdias, procurava pôr paz. Tinha cada dia, antes de comer, sua oração secreta diante de um retábulo onde estava um crucifixo, em que chorava muitas lágrimas. Todos os dias ouvia missa que mandava dizer em sua casa e sempre teve capelão até que faleceu. Quando era casada, mandava fazer muitos vestidos afim de os dar por amor de Deus, o que fazia secretamente.
Fez de sua terça a maior parte do mosteiro da Esperança, na vila da Ponta Delgada, em que recolheu as freiras de Vale de Cabaços, da vila de Água do Pau, em uma terra que Fernão do Quintal e sua mulher deram para se fazer o dito mosteiro; e depois fez umas casas encostadas a ele, em que morou viúva muitos anos, e por sua morte Ihas deixou. Depois do mosteiro acabado, fez tresladar os ossos de seu marido para a capela dele. Recebeu os sacramentos necessários antes de seu falecimento com dizer muitas palavras devotas e discretas, que em sua enfermidade sempre teve; faleceu de idade mais de oitenta anos, dia de Janeiro de madrugada, acabando o ano de mil e quinhentos e cinquenta e entrando o de cinquenta e um. Foi enterrado seu corpo, vestido no hábito de Santa Clara, na sepultura do Capitão seu marido, no mosteiro das Freiras da Esperança, onde mandam cantar dois anais. Mandou dizer muitas missas e trintairos, aprovando o que seu marido e ela mandaram em o testamento que ambos ordenaram.
Fizeram-se solenes ofícios por sua alma. Deixou as casas em que vivia, junto do mosteiro da Esperança, e dois moios de terra no termo da vila da Alagoa ao mesmo mosteiro, por trinta e tantos moios de trigo que Ihe tornou na Salga, da Achada dos Fanais da Maia, para dar a seu filho Manuel da Câmara, que ficou por administrador e testamenteiro, a qual terra rende para sempre dois moios de trigo cada ano. Foi sentida sua morte de todo o povo e muito mais de muitos pobres que ela com suas esmolas sustentava.
No tempo do falecimento do quarto Capitão João Roiz da Câmara, estava na Corte seu filho mais velho, Rui Gonçalves da Câmara, que Ihe sucedeu na capitania e foi quinto Capitão desta ilha de São Miguel, segundo do nome. E por ficar de pouca idade, governou por ele seu tio, Pero Roiz da Câmara, até o ano de mil e quinhentos e quatro. Em vida de seu pai já era casado, no Reino, com D. Filipa Coutinha, filha de Lopo Afonso Coutinho, irmão do conde de Marialva, que casou uma filha com o Infante D. Fernando, irmão de el-Rei D. João, terceiro do nome, dos Coutinhos do Regno, que dizem terem este apelido, porque procederam de um alferes de uma bandeira, que andando em uma batalha, levavam os imigos aos seus de vencida, o que vendo ele, metendo-se na envolta também a pelejar, e apegando alguns contrairos com ele para Ihe tomar a bandeira, ele aferrou nela de tal modo que, ainda que Ihe cortaram ambas as mãos, Iha não puderam tirar dos braços, e tornaram a ter vitória, a qual alcançada, quando o capitão o viu sem mãos e com a bandeira, Ihe perguntou com que tivera mão nela, já que não tinha mãos; ele respondeu que com os cotinhos dos braços a tivera.
Daqui veio ele e seus sucessores terem este apelido de Cotinhos, que outros dizem Coutinhos, fazendo-lhe el-Rei entre outras mais mercês esta dele.
Era esta Capitoa D. Filipa Coutinha dama da Excelente Senhora, e daí casou; foi recebida em casa de D. Gastão, seu tio, com o dito Capitão Rui Gonçalves da Câmara, que foi de mediana estatura, mas bem proporcionado; era gentil homem, de rosto bem assombrado e muito grave, no que bem representava o ser de sua pessoa e o cargo que tinha, e dotado de todas as boas partes, em especial muito largo de condição, amigo de seus criados e assim os teve muito honrados e ricos, porque o eram seus pais naquele tempo. O qual sabendo do falecimento do Capitão, seu pai, se veio na era de mil e quinhentos e quatro anos, pouco mais ou menos, com a dita D. Filipa Coutinha, sua mulher, para esta ilha, a tomar posse da capitania, onde a esteve governando alguns anos com muita prudência, paz e quietação.
Mas como a não há neste mundo não faltaram invejosos ou agravados dele, que o inquietassem, porque o contador Martim Vaz Bulhão, com que teve dúvidas, e um Frei Bartolameu , então ouvidor do Eclesiástico nesta terra, João d’Outeiro, cavaleiro do hábito de Cristo, sogro de D. Gilianes da Costa, Simão de Santarém, freire do hábito de Aviz, escrivão na mesma vila, Luiseanes, cavaleiro do hábito de Santiago, genro de Gonçalo Vaz, o Velho, Francisco da Cunha, fidalgo, marido de D. Beatriz, filha natural do Capitão Rui Gonçalves da Câmara, primeiro do nome, todos moradores em Vila Franca, e João Fernandes Examinado, pai de João Álvares Examinado, da Alagoa, por diferenças de uma demanda que teve com ele, e outros que se ajuntaram na mesma consulta, fizeram a el-Rei capítulos dele. Uns dizem que por causa dumas escrituras que desapareceram, outros que por causa de mulheres, outros que por recolher homiziados em sua casa.
Tão importunado se viu el-Rei que o mandou ir emprazado à Corte, pelo que foi forçado ir-se desta ilha, da qual levou consigo muitos homens, fidalgos, nobres e honrados, dos principais da terra, seus amigos que, às suas próprias custas de cada um, o quiseram acompanhar naquela trabalhosa jornada, que dizem ser: Sebastião Barbosa, o Velho, grão dizedor, e seu filho Hector Barbosa, Jorge Nunes Botelho, Diogo Nunes Botelho, Pero de Teive, Rui Gonçalves e Gonçalo Vaz, filhos de João Gonçalves Botelho, do lugar de Rosto de Cão, Álvaro Lopes, o Velho, de Santo António, Pero Roiz Raposo e Diogo Roiz Raposo, filhos de Rui Vaz Gago do Trato, Estêvão Álvares de Rezende, João Álvares do Sal, João Roiz Badilha, Pedralvres Benavides, da Ponta Delgada, Diogo Dias Brandão e João da Grã, de Vila Franca, Rui Tavares e Gonçalo Tavares, irmãos, Baltasar Vaz de Sousa e João do Penedo, da Ribeira Grande, Guterres Lopes, Pero Manuel, Estêvão de Oliveira, Gaspar Pires Carvalho, de Água do Pau, Vasco de Medeiros, Fernão Lopes de Frielas, João Roiz, da Alagoa, pai de Manuel Roiz, vigairo dos Fenais da Maia. E outros a que não soube os nomes partiram desta ilha na era de mil e quinhentos e dez, pouco mais ou menos.
E chegando à Corte foi despedido por el-Rei, com os que levava em sua companhia, caminho de África, aonde foi ter a Tânger, e estando ali alguns meses, sabendo el-Rei D. Manuel que el-Rei de Fez, movido das afrontas que Ihe cada dia os fronteiros faziam, determinava de ir cercar outra vez a Arzila, com muita gente e munições de guerra ; entre outros fronteiros que nela então se acharam foi este ilustre Capitão Rui Gonçalves da Câmara que, de Tânger, donde estava por mandado de el-Rei, se foi a Arzila, por Iho el-Rei assim mandar por uma carta, levando consigo quarenta de cavalo, desta gente nobre que tenho dito, e cinquenta besteiros e outros homens de pé, onde esteve alguns meses até se alevantar o cerco, como acima disse. E por todo o tempo esteve em África um ano, que foi o de mil e quinhentos e onze, pouco mais ou menos.
E o dito cronista Damião de Goes no capítulo terceiro da terceira parte da Crónica de el-Rei D. Manuel diz que estas e outras coisas aconteceram na era de mil e quinhentos e nove e mil e quinhentos e dez e mil e quinhentos e onze, pelo que não se pode entender que fosse este Capitão Rui Gonçalves o terceiro Capitão desta ilha, primeiro do nome, como se diz na relação dos Capitães da ilha da Madeira; pois esse e seu filho João Gonçalves ou João Roiz, que Ihe sucedeu na capitania, já então eram ambos falecidos e já era, nestes anos sobreditos, este Rui Gonçalves da Câmara quinto Capitão desta ilha de S. Miguel, segundo do nome, neto do outro Rui Gonçalves da Câmara, a que alguns sem razão queriam atribuir o sobredito socorro.
E em África fizeram os naturais desta ilha muitas cavalgadas, no tempo que lá estiveram acompanhando seu Capitão, que foi um ano inteiro, onde todos foram armados cavaleiros.
Depois do Capitão fazer estes serviços um ano à Coroa, em África, se veio à Corte com sua gente, bem concertada e muito lustrosa, a beijar a mão a el-Rei D. Manuel, onde, pelos capítulos que dele haviam dado, saiu a sentença contra ele, por onde perdeu a jurdição e capitania, o que vendo ele se deixou andar na Corte seis anos em que veio criar estreita amizade com Jorge de Melo, monteiro-mor, com o qual se concertou que Ihe daria seu filho, Manuel da Câmara, para casar com D. Joana de Mendonça, sua filha, e que Jorge de Melo Ihe entregaria a jurdição e capitania perdida; o que cumpriu daí a pouco tempo, porque uns dizem que um dia ao jantar, outros que uma noite, véspera da festa de Natal, estando o Capitão Rui Gonçalves da Câmara jantando ou consoando, Ihe mandou Jorge de Melo entre dois pratos, por dois criados, a sua jurdição, dizendo que aquela iguaria Ihe mandava Jorge de Melo, com o que Ihe acabou de confirmar também de sua parte a promessa feita, de casar seu filho com sua filha, sem a Capitoa D. Filipa ser sabedora, nem ser contente no tal casamento depois que o soube; mas isso não foi parte para deixar de haver efeito, como houve. E depois contarei, quando tratar do dito Manuel da Câmara, que sucedeu a seu pai Rui Gonçalves da Câmara, na casa e capitania.
Havida a jurdição pelo modo sobredito, tendo feito de custo, nestas idas de Portugal e de África e estada na Corte, perto de vinte mil cruzados, se veio, no ano de mil e quinhentos e dezassete, muito endividado, o dito Capitão Rui Gonçalves da Câmara para esta ilha, onde foi recebido no porto de Vila Franca, quando desembarcou, com muita festa e procissão solene e levado à igreja Matriz do Arcanjo S. Miguel, onde deu muitas graças a Deus, por o trazer livre de tantos trabalhos. Mas os que fizeram os capítulos, não se tendo por livres, cobraram carta de immizidade contra ele, para que não entendesse em seus casos, nem se antremetesse em coisas suas. E nos sete anos que esteve absente, seu tio, Pero Roiz da Câmara, governou a capitania por ele.
Teve este ilustre Capitão Rui Gonçalves da Câmara de sua mulher, D. Filipa Coutinha, três filhos, Simão Gonçalves da Câmara, Manuel da Câmara e João de Sousa, e duas filhas, D. Hierónima e D. Guiomar. Também teve um filho natural, chamado Miguel da Silveira. Simão Gonçalves da Câmara, o mais velho, morreu mancebo, antes do dilúvio de Vila Franca; todos os mais faleceram no mesmo dilúvio, tirando Manuel da Câmara que não se achou aquela noite na dita vila, como direi adiante.
Procurou este Capitão, em seu tempo, dar lustro a esta ilha, atraindo a si muitos homens honrados, fazendo-lhe todas as honras e favores possíveis. Alguns dizem que ele mandou vir a semente de pastel, de Tolosa, de França, e muitas aves e árvores diversas. E assim mandou fazer o mais rico pomar de toda a ilha, na sua quinta do Cavouquo onde tinha uma fonte de água, além de muitas árvores de espinho de toda a sorte que nele havia; não faltavam grandes castanheiros e nogueiras que davam muitas nozes e castanhas, pereiros e pereiras, de que se colhiam em seu tempo infinidade de peros e outras frutas, e esquisitas árvores que com muita curiosidade mandava vir de remotas terras. Fez também, na vila de Alagoa, uns fortes e ricos paços de grão casaria, com compridos esteios de cerne por dentro das paredes, até o sobrado, para assim ficarem mais seguros contra os contínuos terramotos que nesta terra então havia; os quais paços, ainda que estão quase arruinados, mostram a magnificência e grandeza de quem os mandou fazer. Depois os fez consertar o conde D. Rui Gonçalves da Câmara, seu neto. Fez também a quinta do Cavouquo que, por honra de seu autor, deveram de acrescentar e conservar seus ilustres sucessores, já que pelo proveito e refresco, que destas coisas colheriam, o não fazem. Mas a causa disto é por nesta ilha, que é sua morada, serem hóspedes e lá no Reino terem seu principal assento, de que fazem mais cabedal.
Mandou também fazer um formoso galeão e bem artilhado, com que se servia das coisas do Reino e de outras partes, quando Ihe era necessário.
Mandou este Capitão em seu tempo fazer muitas atafonas na vila da Ponta Delgada, junto do mosteiro de S. Francisco e abaixo da igreja paroquial de S. Pedro, por aliviar a opressão que o povo padecia em mandar fazer as farinhas aos moinhos da vila da Ribeira Grande, que estavam longe. Mandou trazer de Portugal codornizes e coelhos, que multiplicaram muito.
Também mandou trazer perdizes, que se perderam.
Porque João de Melo, irmão do dito Capitão, se foi desta ilha, sendo mancebo, fazer frade da ordem de S. Bento, no mosteiro de S. Bernardo em Portugal, e nunca fez partilha nem pediu sua parte ao dito Capitão, depois da morte de seu pai e mãe; falecendo o dito João de Melo, mandou o prelado daquele mosteiro onde ele professou arrecadar a fazenda que Ihe cabia da sua herança, havendo-a por sentença julgada, a qual dizem que montaria mil cruzados, pouco mais ou menos. Veio o Capitão a pagar e entregar tudo, uns dizem que ao procurador do mosteiro, outros que, por João Pardo, homem nobre, veador de sua casa e seu ouvidor muitos anos, enviava os mil cruzados em dinheiro e juntamente muitas peças de ouro e prata e móvel rico de casa, como foram duas baixelas de prata branca e outra dourada, um cavalo muito formoso, três ou quatro pipas de cadeiras de estado com a guarnição de veludo e outras coisas a seu filho Manuel da Câmara que estava no Reino, e por isto e a contia da dívida fazerem muita soma, ou por ele o pagar de má vontade, que Ihe deu trabalho a juntá-lo, pelo tomar em tempo que ainda não tinha acabado de sanear as feridas dos vinte mil cruzados que gastara em África e no Reino, recolhendo-se depois de jantar a descansar em seu leito, deu a alma a Deus que a criou, sem mais estrondo nem rumor da morte trabalhosa. E não faltou quem dissesse que morreu assim agastado de se Ihe cobrir o coração pelo dinheiro que entregou. Mas o certo é que acabou como acabaremos todos. A Capitoa D. Filipa, vendo que era tarde, o foi acordar por não dormir tanto, e achando-o com o sono da morte, se tomou a casa, e a vila da Ponta Delgada e depois a ilha em redondo, toda um grito e pranto, pela perda de tal senhor.
Era de idade perto de sessenta anos, ao menos dos cinquenta e cinco para cima, dos quais governou a capitania trinta e três anos.
Foi sepultado na capela-mor do mosteiro de S. Francisco. Tinha ele e a Capitoa D. Filipa feito juntamente um testamento em que mandaram fazer muitas obras pias aos vinte e nove de Janeiro de mil e quinhentos e vinte e quatro anos, em que nomearam por herdeiro a seu único filho Manuel da Câmara e o mesmo e seus descendentes deixaram também por testamenteiros. Mandou dar largas esmolas a pobres envergonhados e vestir logo doze, e dizer muitas missas, anais, capelas e trintairos , e algumas cantadas, em cada um ano para sempre, e que do remanescente de sua terça o seu testamenteiro tirasse cada um ano dois cativos de terra de mouros, os mais desamparados e sem remédio que achasse.
A Capitoa D. Filipa foi sempre muito virtuosa e de muitas esmolas, e discreta em saber repartir. Afeiçoada a pessoas virtuosas e religiosas, folgava de falar com pessoas discretas, pela qual razão falava com poucas mulheres; era de grande autoridade na pessoa e na fala, muito caridosa com os enfermos de sua casa e de fora, de tal modo, que pelo mais pequeno negrinho de sua família, gastara liberalmente toda sua fazenda para Ihe dar saúde; havia de ver fazer as mezinhas que se ordenavam para os seus doentes. Não queria ouvir dizer mal de ninguém. Se no povo, ou entre oficiais de justiça, ou religiosos, havia discórdias, procurava pôr paz. Tinha cada dia, antes de comer, sua oração secreta diante de um retábulo onde estava um crucifixo, em que chorava muitas lágrimas. Todos os dias ouvia missa que mandava dizer em sua casa e sempre teve capelão até que faleceu. Quando era casada, mandava fazer muitos vestidos afim de os dar por amor de Deus, o que fazia secretamente.
Fez de sua terça a maior parte do mosteiro da Esperança, na vila da Ponta Delgada, em que recolheu as freiras de Vale de Cabaços, da vila de Água do Pau, em uma terra que Fernão do Quintal e sua mulher deram para se fazer o dito mosteiro; e depois fez umas casas encostadas a ele, em que morou viúva muitos anos, e por sua morte Ihas deixou. Depois do mosteiro acabado, fez tresladar os ossos de seu marido para a capela dele. Recebeu os sacramentos necessários antes de seu falecimento com dizer muitas palavras devotas e discretas, que em sua enfermidade sempre teve; faleceu de idade mais de oitenta anos, dia de Janeiro de madrugada, acabando o ano de mil e quinhentos e cinquenta e entrando o de cinquenta e um. Foi enterrado seu corpo, vestido no hábito de Santa Clara, na sepultura do Capitão seu marido, no mosteiro das Freiras da Esperança, onde mandam cantar dois anais. Mandou dizer muitas missas e trintairos, aprovando o que seu marido e ela mandaram em o testamento que ambos ordenaram.
Fizeram-se solenes ofícios por sua alma. Deixou as casas em que vivia, junto do mosteiro da Esperança, e dois moios de terra no termo da vila da Alagoa ao mesmo mosteiro, por trinta e tantos moios de trigo que Ihe tornou na Salga, da Achada dos Fanais da Maia, para dar a seu filho Manuel da Câmara, que ficou por administrador e testamenteiro, a qual terra rende para sempre dois moios de trigo cada ano. Foi sentida sua morte de todo o povo e muito mais de muitos pobres que ela com suas esmolas sustentava.
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