Por falecimento do Capitão Rui Gonçalves da Câmara, quinto em número e segundo do nome, herdou sua casa e Capitania seu filho, Manuel da Câmara, que só ficou vivo depois de sua morte, ainda que teve outros irmãos mais velhos que o precediam e faleceram no dilúvio de Vila Franca; o qual, sendo menino de seis anos, andando folgando defronte das suas casas da vila da Alagoa, com outro menino da sua idade, passou pela estrada um grande letrado que viera das Índias de Castela e ia para Vila Franca. Acaso vendo andar aqueles dois meninos, se pôs quedo a olhar para eles e vendo a Manuel da Câmara tão gentil homem e tão corado do rosto, perguntou a um criado de casa cujo filho era aquele menino que andava vestido de verde; foi-lhe dito que era filho do Capitão; perguntou se tinha mais filhos e se era aquele o morgado; responderam-lhe que não era morgado, mas que diante dele havia dois mais velhos que ele. Perguntando-lhe porque fizera aquela pergunta, respondeu que o fizera porque vira no menino sinais de ser muito rico e grande senhor de jurdição e que primeiro havia de ser cativo e passar um grande trabalho. E assim foi, que daí a poucos tempos morreram os dois irmãos mais velhos que ele e ficou único herdeiro da jurdição e Capitania, e depois de casado foi cativo em Cabo de Gué, como adiante direi.
Este ilustre Capitão Manuel da Câmara, sexto em número e único de nome, em vida de seu pai, quando morava nos paços da vila da Alagoa vendo ele o desgosto de sua mãe, que por esta razão o não queria deixar ir nem mandar à Corte, determinou de se ir desta terra por qualquer modo que pudesse. E tendo aqui seu pai feito um formoso galeão no porto dos Carneiros, bem artilhado e armado com munições de guerra, de modo que podia navegar sem medo de cossairos para com ele se servir no que Ihe fosse necessário , como Manuel da Câmara o viu, determinou logo consigo de se ir nele por aí, sem levar propósito determinado de para onda ia, e concertando-se com o piloto, que se chamava António Anes, natural de Entre-Douro e Minho, ou, como outros dizem, de Viana, que era afamado em seu ofício; as pessoas a que deu conta de sua determinação e levou consigo foram Francisco de Arruda da Costa, de Vila Franca, filho de João d’Arruda da Costa, Rafael de Medeiros, da Alagoa, Amador Coelho, da Água do Pau, e Lucas de Sequeira, ainda moços, com quem se criava e conversava, e Adão da Costa, Áivaro Mendes, filho de João Álvares, o Velho, de Água do Pau, Francisco Daniel e outro que de alcunha se chamava Aguialhos, e Simão Álvares que depois foi criado de el-Rei e moço do monte. Levou também nove ou dez escravos, sem levar mais gente por não ser sentido. Aviando-se do mais que pôde, estando seu pai sangrado dezasseis vezes, sem saber ele nem a Capitoa parte disso, se embarcaram de noite no dito galeão secretamente, sem serem sentidos, ferrolhando-lhe primeiro as portas de fora.
E partindo do porto dos Carneiros, amanheceu o galeão duas léguas de terra e levando a rota de Portugal, o tempo os lançou na ilha da Madeira. O primeiro porto que tomaram foi o do Funchal, onde foram bem recebidos e agasalhados, por saberem quem era Manuel da Câmara. Estando aí alguns dias, Ihe sucedeu uma briga sobre Rafael de Medeiros, que queria ficar em casa de um seu parente onde estava acolhido, o que sabendo Manuel da Câmara, determinou uma noite de o tirar forçosamente da casa onde estava; e o parente, com seus filhos, Iho defenderam às lançadas de cima de um balcão, onde Manuel da Câmara houvera de ser morto, porque animosamente os acometia, e Álvaro Mendes foi muito ferido. Depois, tornando-se Rafael de Medeiros para Manuel da Câmara, o quis acompanhar, e não somente ele, mas outros da mesma ilha fizeram o mesmo, entre os quais foi um fidalgo Simão de Miranda, pela conversação que teve com ele os dias que ali se deteve, que ao embarcar se meteu no galeão, dizendo-lhe que o não havia de deixar até que ele não tivesse quietação. E o mesmo fez um Afonso Vaz, mancebo nobre, natural da terra, e outros a que não soube o nome. Partidos da ilha da Madeira, foram ter a África, sobre Azamor e daí a Mazagão, onde o recolheu o capitão António Leite no castelo, e, porque o galeão fazia muita água e ia mal tratado, mandou dali Manuel da Câmara o piloto António Anes que o fosse espalmar no porto de Santa Maria. Como foi nova a Safim que era chegado Manuel da Câmara a Azamor, partiu um primo seu, chamado D. Afonso de Castelo-Branco, filho do conde de Vilanova, de Safim, onde estava, com setenta homens de cavalo, em busca dele. E dali se foram os parentes, ambos por terra, a Safim com cem homens de cavalo.
Estando em Safim, Rafael de Medeiros no soco espancou um cavaleiro, entre perto de vinte, com uma cana. Arrancando todos, se acolheu a casa de Manuel da Câmara, ao qual veio logo o capitão da cidade com muita gente, recontando-lhe o que passava, pedindo-lhe que Iho mandasse dar para o prender. Esteve preso cinco ou seis dias e foi sentenciado que se fosse fora da cidade.
Neste tempo, estando o galeão posto em estaleiro para se espalmar no porto de Santa Maria , havia partido desta ilha, em busca de Manuel da Câmara, Cristóvão Soares, da casa do Capitão, seu pai. E, indo ter ao Algarve, dali se partiu para Sevilha, sem saber onde o galeão estava; e indo já pelo rio Guadalquivir acima, um dia de S.
João , saindo em terra, teve umas palavras com uns pastores sobre Ihe não quererem dar um queijo fresco por seu dinheiro, e as palavras eram sobre o Imperador e el-Rei de Portugal, como é costume lidarem e brigarem portugueses e castelhanos sobre seus Reis.
Chegando Cristóvão Soares a Sevilha, foi ter com ele João de Melo, por cartas que teve em Lisboa, onde estava, do Capitão Rui Gonçalves da Câmara, em que Ihe mandava que fosse logo ter com Cristóvão Soares, para que ambos fossem em busca de seu filho Manuel da Câmara, onde quer que estivesse, e fizessem com ele que se tornasse para esta ilha.
Acudindo em Sevilha um dia Cristóvão Soares a um arruído com um Francisco Cansado, seu companheiro, um dos pastores, que em dia de S. João tivera a briga com ele nas Forcadas, acertou de se achar naquele mesmo arruído e, vendo e conhecendo a Cristóvão Soares, se foi a um alguazil dos que ali andavam e Ihe disse as palavras que do Imperador Cristóvão Soares falara, mostrando-lhe com o dedo. O alguazil os teve em olho e seguiu até a pousada, onde João de Melo e ele pousavam, e tanto que entrou pela porta do mesão, entrou também nas suas costas e pegou dele, pedindo-lhe a espada, mas ele, tendo mão nela, Ihe dizia que Iha não havia de dar. Dando Francisco Cansado aviso a João de Melo como prendiam a Cristóvão Soares, desceu como estava, em calças e em gibão, com a espada na mão e a capa no braço e, dando com a espada pela cabeça ao alguazil, o fez soltar a espada. Arrancando então Cristóvão Soares, feriu um beleguim, e acudindo muitos alguazis e oficiais da justiça se subiram às varandas todos três, João de Melo, Cristóvão Soares e Francisco Cansado, os quais arrancando os ladrilhos das varandas tiravam de riba com eles à justiça, de maneira que os não podiam prender, nem entrar, tão bravamente se defendiam; e por concerto se deram, prometendo as varas maiores, como cavaleiros que eram, de logo serem livres e soltos, que bem sabiam que eram estrangeiros.
Dando-se, levaram ao calabouço a João de Melo e a Cristóvão Soares e Ihe lançaram a cada um seu grilhão. Em anoitecendo veio um cavaleiro, por nome Garcia Telho ; pediu ao carcereiro a João de Melo e o levou nas ancas da mula até à pousada onde o dito João de Melo pousava, e assim ficou solto. Parece que fez isto por informação que se tomou como João de Melo era fidalgo e não fora com ele a briga, mas com Cristóvão Soares sim, que ficou preso sete semanas, e de Granada veio o seu livramento, que fosse solto e degradado fora de Sevilha e de seus senhorios para sempre, que era o que ele mesmo queria. Ali em Sevilha, tiveram novas João de Melo e Cristóvão Soares que Manuel da Câmara estava em Safim e o seu galeão no porto de Santa Maria espalmando, porque fazia água; e logo se foram em busca do galeão, e informados do piloto onde estava Manuel da Câmara despediram o piloto António Anes, o qual despedido se meteu em um barco e foi ter a Safim com Manuel da Câmara, fazendo-lhe queixume que largara o galeão com medo de o matarem.
Partindo João de Melo e Cristóvão Soares no galeão, caminho de Safim, conhecendo-os o piloto de onde estava, os foi Manuel da Câmara esperar em um barco, uma légua de terra, levando consigo o mesmo piloto António Anes; e entrando dentro Manuel da Câmara, disse a António Anes que tomasse cargo do galeão e mandasse a via. Assim se foram ao porto de Safim. Dali a poucos dias, chegou um moço da estribeira de el-Rei, por sobrenome Godinho, que levava uma carta do mesmo Rei para Manuel da Câmara, em que o mandava chamar, dizendo que tanto que a visse se fosse ter com ele a Alcouchete.
O qual, vista a carta, se fez prestes e se foi embarcar logo com sua gente no seu galeão, em que foi ter a Vila Nova do Algarve, outros dizem que a Ayamonte, no qual lugar tiveram uma briga, em que houve muitos feridos e esteve Manuel da Câmara reteúdo com os seus alguns dias em um castelo, sem se querer entregar à justiça, até que os deixaram ir livremente, donde partiu para Alcouchete, aonde el-Rei estava.
Entrando no Paço, levando consigo catorze ou quinze homens de capa frisada depois de ter beijada a mão a el-Rei, dizendo: — Vossa Alteza me mandou chamar a Safim; Ihe disse el-Rei: — Manuel da Câmara, mandei-vos chamar para casardes com a filha de Jorge de Melo e dai cá a mão. Dando Manuel da Câmara a mão a el-Rei, Ihe disse: — Senhor, eu não caso com a filha de Jorge de Melo, senão com Vossa Alteza, e a Vossa Alteza dou a mão. Com isto ficou o casamento celebrado.
Dali se foi logo embarcar em uma caravela que Jorge de Melo mandou ter prestes, bem consertada, em que foi a Lisboa acompanhado de homens fidalgos que o esperavam.
Foram desembarcar a casa de Jorge de Melo, onde o estava esperando com muita fidalguia dos principais do Reino, e ali logo o recebeu com sua filha, D. Joana de Mendonça.
Depois disto, veio el-Rei a Lisboa fazer-lhe as festas de noite, em serão, onde houve muitas invenções de fogo de pólvora pelo Terreiro do Paço e as damas todas a dançar pelas varandas com tochas acesas, e por fim dançou D. Joana de Mendonça com a Rainha D. Catarina.
Estando daí a dias el- Rei em Évora, levando um corregedor preso um mulato seu, Ihe disse o dito Capitão que Iho desse e, não Iho querendo dar, foi para Iho tomar. Disse o corregedor: — já que me quereis tomar o mulato, dai cá, senhor, a mão; dando-lha Manuel da Câmara, indo o corregedor para Iha tomar, Ihe deu com o pé nela. Mandou-o el-Rei então para Arraiolos, ao castelo, onde esteve preso dois ou três meses e daí, por ordem de Jorge de Melo, se veio para sua casa sem mais pena.
Depois, no ano de mil e quinhentos e quarenta e um, estando el-Rei D. João, terceiro do nome, na vila de Almeirim, Ihe trouxeram recado que o Xerife tinha cercado a vila de Cabo de Gué e posto em muito aperto, pelo que se veio logo à cidade de Lisboa, para daí a mandar socorrer, e mandou muito depressa ao Capitão Manuel da Câmara com alguma gente, dizendo-lhe que nas suas costas Ihe mandaria socorro; o que ele fez à sua própria custa e levou consigo muitos criados seus e de seu pai e de parentes, e se meteu na vila e a defendeu valorosamente quatro meses, com Ihe matarem muita gente e tantos dos seus que de quantos levou consigo não escaparam mais de três criados. E depois da cava entupida e os muros batidos e postos por terra e o baluarte, onde estava a pólvora, ardido, com alguns duzentos homens o entraram os mouros e o tomaram sem nunca Ihe ir socorro dentro nestes quatro meses.
Estando prestes na cidade de Lisboa o galeão São João com doze caravelas de armada e na ilha da Madeira Luís Gonçalves da Câmara com muita gente, e Manuel de Melo, monteiro-mor, seu cunhado, estando em Safim com a maior parte dos moradores dela, sem se poderem embarcar, se afogaram alguns. E quando todos estes socorros chegaram, havia três dias que eram tomados. Foi ali cativo Manuel da Câmara, e determinando de se encobrir, deitando grandes pregões por mandado do Xarife que Iho descobrissem, o descobriu um bombardeiro, cuidando que Ihe dessem a vida que temia Ihe tirassem, pelo muito estrago que havia feito nos mouros com uns falcões pedreiros, que tinha numa estância por onde os mouros cometeram algumas vezes entrar e não puderam; mas, nem isso Ihe valeu, porque como souberam que era o bombardeiro, o fizeram em postas por justiça.
Esteve Manuel da Câmara um ano e meio cativo, três meses metido numa masmorra por prometer pouco por si. Depois que se resgatou o trataram muito bem, mas nunca Ihe tiraram uma braga que era pequena, jogando sempre com o Xarife e com seus filhos e indo à caça de falcão com eles, por ser mui inclinado a isso. Deu por si vinte mil cruzados, afora muitas peitas, porque, se isso não fora, muito mais custara. Além disto, deu mais dois mouros que estavam em Portugal, de resgate, e quando estes mouros disseram lá quem ele era e o que tinha, se quisera o Xarife arrepender do que tinha feito. O Xarife Ihe deu uma alcatifa de felpa de seda da sua cama em que dormisse, que era muito grande, de mais de quatro varas de comprido e três de largo, a qual alcatifa trouxe um seu page , quando se veio para casa do mesmo Capitão e a têm ainda agora seus herdeiros; mas contudo, nem por isso deixava de andar com ferros a bom recado, porque se temiam que fugisse, até que o vieram a pôr em resgate, para ajuda do qual Ihe dava el-Rei seis mil cruzados, que ele não quis aceitar, pagando resgate e despesa, tudo de sua fazenda, pelo que a coroa destes Reinos ficou em grande obrigação à Capitania desta ilha. Em pago do qual el-Rei Ihe fazia mercê de o fazer Conde da vila da Lagoa, que ele não aceitou. Então Ihe fez mercê dos dízimos do pescado desta ilha e de sessenta moios de renda para sempre, nas terras dos próprios que Sua Alteza tem na Relva, termo da cidade, e assim dos ofícios da dita cidade, para que ele os pudesse dar a quem quisesse e por bem tivesse, sem mais confirmação, nem chancelaria, assim o do escrivão da Câmara como o dos órfãos, como todos os mais, tirando os da fazenda de Sua Alteza, coisa até hoje não vista neste nosso Reino em nenhum senhor que tenha chancelaria em sua casa para seus ofícios, sem mais confirmação de Sua Alteza. Também Ihe fez mercê de pôr o morgado desta Capitania fora da lei mental, que é das grandes e particulares mercês que os Reis fazem a seus vassalos.
Pelo que se cumpriu bem o pronóstico do letrado que na vila da Lagoa disse deste senhor que havia de passar por um grande trabalho e ser senhor de grande jurdição.
O qual foi muito liberal e amigo de seus criados, principalmente daqueles que eram homens honrados e que faziam pelo ser. E tão confiado das pessoas de que se confiava, que o tesouro de Veneza era pouco para o fiar delas. É tanto isto verdade que teve muitos criados a quem mandou com fazenda sua a vender a diversas partes, sendo os tais criados mancebos e de pouca idade, e nunca Ihe tomou conta do que em sua fazenda tinham feito. Basta que bem mostrava, assim no que representava, como nas obras, a magnificência de sua pessoa, em tanto que Ihe ouviram dizer muitas vezes que pela honra de um seu criado honrado gastaria o seu morgado de tão boamente como por seu filho Rui Gonçalves da Câmara, tão pontual era nas coisas da honra. Assim teve muitos criados mui honrados, os quais ele não tomava sem os conhecer, ou seus parentes ou se eram de obrigação, porque de outra maneira os não aceitava, e pelo contrário, ainda que fossem de muita obrigação, se os tais criados não faziam o que deviam, Ihe aborreciam de tal modo, que nem olhar para eles queria com bom rosto.
Foi este senhor de tal condição que se fora cobiçoso conforme a muita renda que nesta ilha de S. Miguel teve e ao muito que os moradores dela Ihe deviam das rendas de seu morgado, não há dúvida, antes é mui notório, que se lançara mão das fazendas dos tais, com zelo de Ihe ficarem, que toda a ilha fora sua. Mas muitos Ihe ouviram dizer por muitas vezes aos devedores a que tinha suas fazendas arrematadas, por não haver outro lançador que nelas lançasse: — todas as vezes que me tornardes o meu dinheiro por que vossa fazenda me foi arrematada, eu vo-la darei ou, se achardes quem vos dê mais por ela, sem embargo de ser minha pola arrematação, eu vo-la largarei de boa vontade; fazendo isto facilmente, mais largamente do que o digo.
Por extremo era devoto do Seráfico Padre São Francisco em tanto que dizendo-lhe uma vez nesta ilha um religioso da mesma ordem contra outro frade: — senhor, bem pode Vossa Senhoria mandar embarcar Frei Fuão por tal desobediência ou descortesia que Ihe fez, porque o mesmo fazem os Capitães dos lugares de África com os mandarem com uma carta a Sua Alteza da descortesia passada, porque desta maneira o há Sua Alteza por seu serviço.
Respondeu a isto: — bem sei tudo isso, mas não permita Deus que com a religião de São Francisco, nem com seus súbditos, eu corra. Era tão grandioso em suas obras que começou a fazer uma capela no mosteiro de S. Francisco de Lisboa, tão sumptuosa e custosa quanto palavras não alcançam dizer, mas os olhos podem ver, que serão mais fiéis e verdadeiras testemunhas de sua magnificência e riqueza.
Este senhor foi casado pela maneira que dito tenho, do qual legítimo matrimónio teve cinco filhas e um filho, que é o conde Rui Gonçalves da Câmara, Capitão que ora é desta ilha.
Destas cinco filhas, a mais velha, D. Filipa de Mendonça, foi casada com D. Fernando de Castro, filho de D. Diogo de Castro, alcaide-mor de Évora e capitão-mor e senhor de Alegrete e conde que ora é de Basto, um dos grandes morgados de Portugal, que entre outros tem um filho morgado, chamado D. Diogo de Castro, que casou com uma filha de Lourenço Pires de Távora, pai de Cristóvão de Távora, o grande privado de el-Rei D. Sebastião, chamada D. Maria de Távora. A segunda filha do Capitão Manuel da Câmara, D. Hierónima de Mendonça, não quis casar e rejeitou grandes casamentos de pessoas de título que a pediram, só por ao tal tempo em que seu pai a determinou casar ser de quarenta anos e por esta razão o não quis fazer com propósito de acabar santa e religiosamente; que ainda que não professasse os três votos da religião, ela os cumpria inteiramente, rezando de contino o ofício divino com tanta devação e curiosidade, que não posso cuidar que mais haja na vida, além de outras obras suas de grande virtude e abstinência; a qual dizia por muitas vezes a suas irmãs freiras que queria ser freira rica para sustentar as pobres e ter cuidado delas; desta maneira viveu com grande exemplo de santidade até acabar santamente, como adiante direi. As outras três irmãs, convém a saber, a terceira, D. Margarida, é freira no mosteiro da Madre de Deus de Enxobregas; a quarta, D. Joana de Mendonça, freira em Santa Clara de Coimbra; a quinta, chamada soror Isabel, é freira do mosteiro de Jesus de Setúbal, religiões das mais honradas e de mais virtude e por que Deus faz muitos milagres.
Em especial, nestas senhoras se vê isto bem claro e a todos é notório sua muita virtude, que, podendo ser grandes senhoras, se meteram freiras contra vontade de seu pai, de maneira que com verdade posso afirmar que no Reino não se viu homem nem ouviu dizer que houvesse senhor de tanta renda com filhas tão virtuosas e tão fora do mundo e de suas vaidades, como foram estas irmãs, tendo pai tão rico, pelo que bem têm mostrado a fineza de sua virtude. É de maneira que a mais moça delas, soror Isabel, que está em Jesus de Setúvel, a viram muitas vezes fazer que não jejuava por amor de sua mãe que Iho defendia, e indo à mesa de seu pai onde todos junto comiam, metia o bocado da carne e das sopas na boca com uma vontade que parecia que nunca comia e trazia o bocado tanto dentro na boca sem o gostar, até que com o guardanapo o tornava a tirar, fazendo que se alimpava e o botava aos gatos; e depois de dar graças se ia à casa onde pousavam as mulheres de sua mãe e lá comia uma sardinha com um pão, não muitas vezes alvo, mas de rala e somenos. Deste modo, Ihe não passava jejum nenhum de Santo de obrigação, antes todos os mais que a não têm ela jejuava e os adventos do ano. Basta que a ordem que depois professou, antes muito tempo de a professar, a guardava; pelo que com muita razão se pode dizer que no Reino de Portugal se não pudera achar senhor tão ditoso com filhas, como este foi.
Depois que o Capitão Manuel da Câmara se foi desta ilha e casou no Reino em vida de seu pai, não tornou mais a ela senão depois de seu falecimento, dali a dois anos pouco mais ou menos, trazendo grande casa, acompanhado de muitos pagens, criados e escravos mui lustrosos. Esteve desta vez pouco tempo na terra, como que não vinha senão visitar a Capitoa, sua mãe, viúva, e tomar posse da jurdição e Capitania, tornando-se logo para o Reino, onde esteve alguns anos sem vir a esta ilha. E, como o coração do Rei está na mão de Deus, ainda que aos povos é coisa dura e mal recebida fazerem-se fortalezas à sua custa, sem atentarem seu perigo, inspirado de Deus, el-Rei D. João, terceiro do nome, ou vendo as coisas ao longe e temendo que os luteranos cossairos saqueassem esta ilha e outras, determinou mandar fazer nelas alguns fortes, querendo que os Capitães residissem em suas terras; para o que veio o Capitão Manuel da Câmara a esta ilha a segunda vez, por mandado do dito Rei, no fim de dezembro de mil e quinhentos e cinquenta e dois anos.
Desembarcou no lugar dos Mosteiros, onde o foi receber muita gente de cavalo, acompanhando-o dois dias que pôs no caminho até à vila da Ponta Delgada. Trazia em sua companhia ao doutor Manuel Álvares, que fora corregedor nesta ilha, com armas para a gente e com cárrego de fazer o primeiro lançamento de trinta e três mil cruzados, sendo avaliadas todas as fazendas e alfândega de Sua Alteza, para se pagar a artilharia que trazia e se começar uma fortaleza nesta ilha, cuja traça havia de dar um Isidoro de Almeida, discretíssimo, douto e curioso homem, que, então, andava compondo um livro “De Condendis Arcibus”; e vinha com o dito Capitão, ele e um seu irmão, Inácio de Gouveia, também de raro engenho e discrição. Trazia o doctor por escrivão do que fazia e almoxarife das armas, que o povo pagou, a Simão Cardoso, e para começar a fazer exercício de guerra, veio um João Fernandes de Grada, desta vez por sargento-mor.
Correndo o Capitão a ilha toda à roda, ordenou, por mandado de el-Rei, capitães e bandeiras com seus oficiais, dos mais nobres que achava em cada uma das vilas. Na cidade da Ponta Delgada fez quatro capitães: Jorge Nunes Botelho, Gaspar do Rego, Mendo de Vasconcelos e Álvaro Velho, com seus alferes e sargentos e mais oficiais. Em Vila Franca fez também os capitães que já tenho dito. E na vila da Ribeira Grande três bandeiras de duzentos e cinquenta homens, cada uma: o primeiro capitão, Rui Gago da Câmara, alferes, António de Sá Betencor, sargento, Pero Lourenço; o segundo capitão, João Tavares, alferes, Gaspar de Braga, a que sucedeu Ciprião da Ponte, logo Baltasar Tavares, que depois foi capitão da mesma bandeira; o terceiro capitão, Gaspar do Monte, alferes, Diogo de Morim, seu genro. E em Rabo de Peixe, termo da dita vila, fez capitão Fernão de Anes, pai do licenciado Bertolameu de Frias, com os oficiais necessários para o dito cargo. Feito isto no mês de Junho de mil e quinhentos e cinquenta e quatro, durou assim até o ano de mil e quinhentos e setenta e um, em que se mudaram os capitães e fizeram capitão-mor a Rui Gago da Câmara.
Neste meio tempo, foi o Capitão Manuel da Câmara ao Regno e se tornou por mandado de el-Rei para defensão da terra na era de mil e quinhentos e setenta e seis anos da Fonseca, que foi o segundo sargento-mor) trazendo consigo a seu filho D. Rui Gonçalves da Câmara e esta foi a primeira vez que o dito D. Rui Gonçalves veio a esta ilha já casado. E esteve então o capitão Manuel da Câmara perto de oito anos nesta terra, em que ajuntou grande tesouro porque tinha mil moios de pão cada ano, afora a redízima das entradas e saídas na Alfândega, que muitas vezes montavam quinhentos, seiscentos mil réis; e para carregar uma sua caixa de dinheiro em um carro, oito valentes e forçosos homens Ihe não puderam dar vento, que levou para o Reino. E segundo alguns têm deitado conta, tinha e tem agora melhorados o Capitão desta ilha, cada mês, mil e quinhentos cruzados de renda e cada dia mil réis e cada hora oitocentos réis, mas segundo a experiência, que é mais certa conta, tem o que já tenho dito, que é muito mor contia.
Ao sargento-mor pagava el-Rei de um tributo que se pôs de dois por cento de saída; depois mandou que se pagasse das imposições das vilas, pondo-lhe outras obrigações e, a petição dos povos que tinham necessidade delas para as igrejas, pontes e fontes, médicos, aposentadorias, enjeitados e outras coisas urgentes, Ihe concedeu el-Rei, também em tempo do dito Manuel da Câmara, as imposições, contanto que se fizesse outro lançamento, o qual fez Fernão Cabral, provedor de sua fazenda, de onze mil cruzados, pelos quais compraram os povos as imposições, por Ihe ficarem livres para as coisas sobreditas, consentindo neste lançamento; e assim foi julgado no Reino que as provisões que depois houveram Simão de Quental, terceiro sargento-mor, e o conselheiro Cristóvão de Crasto, para Ihe pagarem seu ordenado das imposições de toda esta ilha, prorata, não se cumprisse nesta parte, porquanto os povos tinham compradas as imposições pelos ditos onze mil cruzados. O terceiro lançamento se fez também em seu tempo pelo provedor Duarte Borges de Gamboa. Manuel Machado, natural desta ilha, foi o primeiro mestre das obras de el-Rei que começou a fazer a fortaleza. E depois prosseguiu na obra dela Pero de Machado e outros mestres das obras de el-Rei. O Capitão e eles eram murmurados do povo, que não olha senão o presente. Mas o tempo Ihe tem bem ensinado e desenganado quão necessária era a fortaleza na terra.
Foi curioso este Capitão de ver coisas novas na terra, pelo que mandou trazer de Londres, por Baltasar Tavares, extremado cavaleiro, alguns cirnes que duraram algum tempo nela, e uma águia. Tinha também em sua casa falcões e açores. Fez vir de Portugal cinco casais de perdizes que na era de mil e quinhentos e sessenta e um, por seu mandado, o licenciado Francisco Pires Picão, seu ouvidor, e António Correia de Sousa e Pedro Homem, seu escrivão, deitaram acima da cidade da Ponta Delgada, na Fajã de Gaspar Ferreira. E depois mandou deitar outras na Atalhada, para a banda da vila da Lagoa, por João Lopes, seu meirinho, as quais multiplicaram tanto e há na terra tanta abundância delas que se arreceia fazerem perda nas novidades. E as que o Capitão Rui Gonçalves da Câmara, seu pai, mandara deitar antes, sem multiplicação morreram.
A Capitoa D. Joana de Mendonça foi mulher de grande virtude, mui senhora e grandiosa, pelo que nunca quis vir a esta ilha, além de outras razões que a isso a moviam, porque a qualquer pessoa é coisa dificultosa e cara mudar o lugar da criação e natureza, quanto mais a uma senhora da sua qualidade. Faleceu alguns anos antes do Capitão, seu marido, e foi enterrada na sua rica capela, que tem no mosteiro de S. Francisco de Lisboa.
Depois que o Capitão Manuel da Câmara se partiu desta ilha a última vez que tenho dito, levando consigo grande tesouro de dinheiro amoedado para o Reino, veio de lá D. Rui Gonçalves da Câmara, seu filho morgado, por mandado de el-Rei a governar a Capitania por seu pai; ao qual, em Lisboa, estando-se um domingo vestindo às nove horas do dia para ir à missa, Ihe deu mal de parlesia , a que o povo chama ar, com que logo perdeu a fala, aleijado da parte direita, com a boca a uma banda. Durou cinco dias, nos quais se confessou e recebeu os sacramentos da comunhão e unção, com que partiu para a outra vida, bem julgado do povo da sua freguesia das Martes e de toda Lisboa. Tanto que enfermou, foi logo seu genro D. Fernando de Castro para casa, com sua mulher D. Filipa, e estando à quarta-feira já com a agonia da morte, dizem que se chegou à cabeceira uma pessoa de casa por algumas razões que tinha e cortou-lhe uma fita do pescoço com cinco chaves; feito isto, deu-lhe Deus ainda vida, com que tornando sobre si se reconciliou com Frei João Cordovil, da ordem de S.
Francisco, ao qual disse: — padre, acabando eu, entregareis estas chaves a D. Joana, minha nora, porque são suas e toda esta casa. Indo o padre para Ihe tirar as chaves, se não acharam, de que se muito agastou, e disse ainda: — grande atrevimento foi este, a muito se atreveu quem tal fez, muito mal feito é tomarem as chaves a meu filho e bulirem-lhe com os seus papéis. Com isto lidou tanto, que veio logo Manuel de Melo e D. João Telo, seus cunhados, com as chaves, tornando-lhas a pôr no pescoço; e ele disse: — não é esta a fita que elas traziam. Então as tomou o padre confessor para as dar a D. Joana; ela as não quis aceitar e se foi para cima, a seu aposento, agravada. D. Hierónima caiu em cama, muito doente de um vágado que Ihe deu, recolhendo-se com D. Filipa, sua irmã.
Não faltou em casa quem vendo esta revolta o fosse fazer a saber ao conde do Redondo, irmão da Capitoa D. Joana, e ao comendador-mor, seu cunhado, avisando-os do que era passado, os quais logo foram presentes, aonde o comendador-mor e um irmão do conde, mancebo, e outro cunhado do mesmo conde, assistindo também o senhor D. Teotónio, arcebispo de Évora, filho do duque de Bragança, onde todos estiveram aquele dia todo sem comer nem beber, até as nove horas da noite, em que acabou de expirar o dito Capitão.
Depois de morto e amortalhado no hábito de S. Francisco, estendido sobre uma alcatifa, com muita cera acesa e sua cruz de prata à cabeceira e uma caldeirinha de água benta aos pés, entrou diante, onde assim estava, o dito arcebispo e o comendador-mor, logo D. Fernando e o conde detrás, aonde estavam os da casa fazendo seu pranto, e, depois que Ihe deitaram água benta e rezaram por sua alma, chamaram o padre confessor. Estando o conde de una banda do escritório, o qual aberto, buscando pelas gavetas, achou-se nele em uma folha de papel um breve testamento, no qual deixava a seu filho D. Rui Gonçalves da Câmara por seu universal herdeiro e testamenteiro, tomando trezentos mil réis de sua terça para se gastarem por sua alma em três ofícios de presente, e aos oito dias e mês, deixando aos padres de S.
Francisco de esmola por cada ofício cinquenta cruzados, com oferta de um moio de trigo e uma pipa de vinho; e outros três ofícios na sua freguesia, com dez mil réis de esmola por cada um.
Dizia também que o levassem os religiosos sem pompa no ataúde, com um pano preto, e que não chamassem nenhuns fidalgos, senão os seus criados somente o acompanhassem, a quem pagassem muito bem seus serviços, o que tudo se fez como dizia.
Antes que o levassem a enterrar, se fez de vestir de dó para todos seus criados, e de seu genro e nora, em que foram quinze capuzes, afora pages e moços de esporas, que tinham cargo de espevitar as tochas. Os religiosos de S. Francisco, com todo o convento e os padres das Martes , o levaram e a cada um se mandou dar círio de cinco arráteis de cera que levavam nas mãos, afora trezentas tochas que ardiam no mosteiro, enquanto se fizeram as exéquias e um solene ofício. Foi enterrado na sua rica capela, onde já dantes a Capitoa D.
Joana de Mendonça, sua mulher, estava sepultada.
Nasceu este ilustre Capitão na era de mil e quinhentos e quatro e faleceu em Lisboa nas suas casas, que tinha na freguesia das Martes , aos treze dias do mês de Março da era de mil e quinhentos e setenta e oito , sendo de idade de setenta e quatro anos, dos quais quarenta e três governou a Capitania, por si ou por seu filho D. Rui Gonçalves da Câmara, que então estava nesta ilha governando por ele. Foi muito humilde, afável para todos e para ninguém avaro da cortesia.
Quando um besteiro, entre uma manada de pombas, faz um tiro ou dois e mata uma ou duas delas, as outras espantadas se alevantam fugindo, voando pelos ares, pondo-se em lugar mais seguro. Assim Deus, atirando a seta de sua ira e castigo aos moradores desta ilha, com o tremor e peste dela feriu a Vila Franca do Campo com seu limite, e ao lugar da Maia e outras partes, subvertendo-as e matando muita gente delas; e com outra seta de peste feriu as vilas da Ponta Delgada e Ribeira Grande, com que também matou muita gente. E em lugar de se converterem e alevantarem, voando como pombas os pombos da ilha, que são a gente que ficou viva, e pôr-se em lugar seguro de penitência e emenda, não se sabe claramente que ninguém isto fizesse, senão só duas pombas, santas fêmeas e religiosas, que quiseram deixar a terra e quanto nela havia, e voar para o Céu e lugar seguro da religião como agora direi.
Passada a assolação de Vila Franca do Campo, andando a peste acesa na vila da Ponta Delgada, havia em Vila Franca um Jorge da Mota, nobre e virtuoso homem, cavaleiro do hábito de Aviz, que escapou em uma sua quinta, onde tinha uma ermida da invocação de S. João Baptista, junto das suas casas e pomar; o qual, entre outras, da primeira mulher com que fora casado tinha uma filha de muito grande virtude, discrição, prudência e saber, da qual todos julgavam que pretendia casar com filho de algum conde. Esta, a quem deu Deus este talento, não o soube mal empregar na terra, mas, granjeando com as graças que Deus Ihe deu os tesouros do Céu, vendo quanta vaidade era tudo o do mundo , virando as costas a tudo o que dantes pretendia, determinou fazer vida penitente. Havia, então, em casa de seu pai, uma virtuosa mulher, natural de Braga ou Ponte de Lima, filha de pais honestos, a qual, sentindo que seu pai a queria casar, se saiu de sua casa escondidamente, vindo para esta ilha de S. Miguel em companhia de um Rodrigo Afonso, homem muito virtuoso e honrado, que trazia para esta terra uma sua sobrinha para a casar, por ser aqui morador. Chegando a Vila Franca esta Isabel Afonso, com a sobrinha deste homem, teve notícia de Maria de Jesus, filha de Jorge da Mota, que tinha deixado o mundo em sua vontade e queria ser religiosa, pelo que a ia muitas vezes visitar a casa de seu pai. Esta Isabel Afonso era muito espiritual e amiga de Deus, achando a Petronilha da Mota conforme a seu coração; tomou com ela muita amizade e tanto amor que quase todos os dias ia comunicar com ela, de modo que Jorge da Mota, pela ver tal e tão amiga de sua filha, e ambas em um modo de vida religiosa, a recolheu em casa para sua companhia.
Sua conversação de ambas era rezar e jejuar o mais do tempo a pão e água, visitar as igrejas a seus tempos vestidas de burel e andar descalças. Suas práticas todas eram em Deus e coisas de Deus, em tudo mortas ao mundo, de maneira que era grande edificação a quem as via. O Rodrigo Afonso, que trouxe a Isabel Afonso, era tão honrado, amigo de Deus, e homem de tanta verdade que foi o primeiro síndico que o mosteiro de Santo André de Vila Franca do Campo teve, de cuja boca não era nomeada esta Isabel Afonso, ou Maria dos Anjos , senão por sua filha e nesse lugar a tinha.
Com este alto propósito e celestial pensamento, a dita Maria de Jesus, filha de Jorge da Mota, e sua companheira Maria dos Anjos determinaram ir fazer vida santa e recolher-se em uma ermida de Santa Clara que estava na vila da Ponta Delgada, e uma noite se saíram de casa de seu pai para sua ermida de S. João, levando consigo, a dita Maria de Jesus e sua companheira Maria dos Anjos, quatro meninas suas irmãs, a mais velha das quais era de idade de nove anos, e as outras daí para baixo, dizendo a seu pai que havia de fazer aquela noite uma devação e queria ter as meninas consigo, tendo já ordenado fazer o que tinha em propósito, que era fazer convento de religiosas e servir a Deus nele.
Estando elas na ermida, sem ser seu pai sabedor de mais do que ela Ihe dizia, e não do que encobria, aquela mesma noite, dormindo ele e sua mulher em sua cama, sonharam ambos o seguinte. O pai chorou por sonhos, de modo que o espertou a mulher e perguntando-lhe que havia, disse: sonhava que me diziam — uma nuve levou as freiras —, porque assim Ihe chamavam já, pelo hábito que traziam e pelo propósito que tinham de o serem. Na mesma noite e hora que o marido acordou, tornou a mulher a dormir e, sonhando, chorou por sonhos da maneira que seu marido tinha feito; o qual, espertando-a e perguntando-lhe que havia, respondeu: sonhava que me diziam — as freiras fizeram como fez Santa CIara.
Maria de Jesus, na mesma noite, com sua companheira e quatro pequenas irmãs se saiu da ermida de S. João, caminhando de noite, por muita chuva e tempestade, secretamente, sem pessoa alguma o saber, com companhia honesta, por fora da Vila e caminhos desviados, por não serem sentidas, com tenção de irem ter à dita ermida de Santa Clara, da vila da Ponta Delgada; mas, como Deus que as encaminhava, determinava outra coisa e pô-las em outro lugar, chegando elas e a mais companhia a Vale de Cabaços, em direito da ermida de Nossa Senhora da Concepção, Ihe veio desejo a cada uma, em seu coração, de ficarem ali, sem nenhuma o saber da outra, nem o ousavam descobrir, esperando, se era obra de Deus, como foi, que cada uma o dissesse, porque uma dava obediência à outra nos tais casos, de maneira que queria uma que a outra fosse a primeira que falasse na sua ficada ali, porque a cada uma delas Ihe parecia que na sua vontade dentro Ihe diziam — aqui, aqui. Desceram então abaixo ao Vale já de madrugada e, entrando na Casa de Nossa Senhora, se acharam com todo o repouso, quietação, determinação e vontade de fazer ali sua habitação; e mandando chamar os oficiais da Câmara e Justiça da vila da Água do Pau, Ihe deram relação do seu intento, o que eles Ihe agradeceram, entendendo serem movidas da mão de Deus, e depois o fizeram a saber ao Capitão, que muito as favoreceu, como adiante direi.
Seu pai Jorge da Mota, com todos os mais parentes e amigos que nisso tinham razão, anojados pelo dia seguinte não achar suas filhas, por parte nenhuma onde as buscassem, cuidando serem idas para Lisboa, por ser partido aquela noite um navio do porto de Vila Franca, Ihe foram novas como estavam naquela ermida. E indo logo lá com alguns homens honrados que o acompanharam, tomou as meninas e mandou-as para casa. Depois trabalhou muito com Maria de Jesus e Maria dos Anjos que se tornassem, o que por nenhuma via pôde acabar, nem por bem nem por mal, nem com rogos nem com ameaças.
Dali a poucos dias, soando isto por toda a ilha, foi outra vez seu pai Jorge da Mota e os filhos que eram para isso, com pessoas honradas de Vila Franca e alguns padres de S.
Francisco, o Capitão Rui Gonçalves e o ouvidor do eclesiástico, com muitas pessoas nobres de algumas partes da ilha, a ver o que determinava Maria de Jesus e sua companheira. Mas, tanta foi a constância de seu propósito, que nem pai, nem irmãos, nem Capitão com sua justiça, nem o ouvidor da igreja, nem pessoas letradas, nem muita gente que naquele dia para isso se ajuntou, as puderam mover nem tirar do que tinham na vontade, e todas suas questões elas venciam, como quem tinha por mestre o Espírito Santo, que as ensinava, de modo que claro se viu ser obra do Mui Alto. E por fim de muita e grande porfia que com elas se teve, disse o Capitão a seu pai Jorge da Mota: — isto é obra de Deus; não trabalheis pola estorvar.
Partiram-se então todos para seus lugares e casas, ficando elas ambas na igreja de Nossa Senhora com muita alegria, onde estiveram seis meses , com tanta clausura como se fora dentro em mosteiro muito encerrado e amurado. A Câmara e povo daquela vila da Água do Pau as visitavam com muito amor e caridade, e fizeram à sua custa uma casa pequena em que se elas ambas recolheram com as quatro meninas, suas irmãs, que Maria de Jesus depois mandou vir, para todas juntas entrarem nela.
Acabada esta casa pelos moradores da vila da Água do Pau, a qual não tinha mais oficinas que a casinha, que agora é sancristia daquele oratório, e outra cerca pequena e estreita de pedra ensossa, tão grande como a mesma sancristia, tendo determinado de entrar nela uma véspera de Páscoa , escreveu Maria de Jesus a seu pai que Ihe levasse as quatro irmãs, para todas juntas entrarem. Mas, seu pai, por ser já perto da Páscoa, as não queria levar, fazendo conta que passada a festa as levaria. Foi grande o requerimento de Maria de Jesus que as levasse, porque, como entrassem, se havia de fechar a parede que não tinha porta; ao que disse seu pai que, quando as levasse, mandaria derribar a parede e a tornaria alevantar. Tornou outra vez Maria de Jesus a escrever que se não fossem as meninas não entrariam elas. Quando seu pai viu sua importunação, fez pergunta à mais pequena, que era de quatro anos, por nome Ana de São Miguel, pondo-lhe diante como sua irmã as mandava levar para entrarem naquela casa, e que estavam em véspera de Páscoa, se a queria ela antes ter em casa e comer folares e bolos, com outras palavras de meninos que Ihe pôs diante, dizendo mais que o que ela dissesse, isso havia de fazer. Respondeu a menina, com muita alegria, que antes queria ir servir a Nosso Senhor com sua irmã que ter aqueles mimos em casa de seu pai, aquela festa. Vendo o pai sua resposta, pareceu-lhe que era ensinada pelo Espírito Santo e ser assim vontade de Deus, pelo que as levou véspera de Páscoa, em que foram amanhecer a Vale de Cabaços, e à tarde, em que se acabou de telhar a casinha, entraram todas nela. A mais velha destas meninas se chamava Guiomar da Cruz, e as outras Catarina de São João, Maria de Santa Clara e Ana de São Miguel, os quais nomes Ihe tinham elas ambas já postos em casa de seu pai para quando fossem freiras, não havendo ainda determinação do que depois foi. Nestas coisas se exercitavam e as criavam, ensinando-lhes em casa do pai que quando fossem chamadas não respondessem senão por Deo Gratias. E assim foram costumadas, nem falavam de outra maneira. Recolhidas estas seis religiosas em tão estreita casa, viviam ali em muita penitência. E os oficiais da Câmara da vila da Água do Pau tinham cuidado delas, tirando eles mesmos aos domingos esmolas pelas portas para seu mantimento, afora a provisão que também Ihe mandava seu pai.
Daí a um mês, pouco mais ou menos, duas mulheres principais, ricas e honradas, filhas de João de Arruda da Costa, de Vila Franca do Campo, tendo prometido uma romaria à mesma ermida de Nossa Senhora da Concepção de Vale de Cabaços, tendo seu pai casada por cartas a mais velha em Portugal, com escritura feita, esperando pelo esposo cada dia, por horas e momentos, para a vir receber, chamada esta Isabel da Costa, que depois se chamou Isabel do Espírito Santo, e a outra sua irmã, Maria da Costa, que depois se chamou Maria da Trindade, determinando ambas cumprir a romaria e se tornarem logo para casa de seu pai, chegando à dita ermida de Nossa Senhora, antes que entrassem na igreja, disse Maria da Trindade a sua irmã, mulher segunda de Jorge da Mota: eu não me hei-de ir daqui por terra, nem por mar — não sabendo o que dizia, nem com pensamento de ficar, e, se soubera que havia de ficar, dali se tornaram sem cumprir a romaria. E, em pondo o primeiro pé dentro na igreja, Ihe começou o coração a dar grandes abalos ; entrando na capela, se pôs de geolhos para fazer oração, e nunca pôde rezar nem uma Avé-Maria, estando sempre suando de afrontada, não entendendo aquela diferença que achava em si, porfiando até quatro vezes, estando de geolhos, se podia dizer uma Avé-Maria, sem a poder dizer. E, estando o palratório junto com ela dentro na capela, mandou chamar três vezes a Petronilha da Mota, que já se chamava Maria de Jesus, e nunca foi, não desejando a dita Maria de Jesus senão fa!ar com ela, e uma com outra. Alevantou-se então Maria da Trindade e saindo-se fora da igreja para ver se achava algum lugar por onde a visse e Ihe falasse.
Tinham elas na mesma casa onde estavam uma cerca pequena, de oito ou nove côvados ao redor e quatro varas de medir, em alto, as três varas de pedra e a outra de silvado sobre aquela pedra; a qual parede era muito cerrada, sem nenhum buraco, senão um só, o qual foi achar Maria da Trindade para sua conversão , logo pegado com a igreja, em que não cabia mais que um olho, por onde na pequena cerca via andar as quatro irmãs meninas brincando, que haviam entrado com Maria de Jesus. E, chamando por uma que fosse chamar a dita Maria de Jesus, que estava ela ali e Ihe queria falar, três vezes a mandou chamar e de nenhuma veio, estando a dita Maria da Trindade sempre com o olho no buraco, esperando por ela; e tanto tardou que, de desconfiada dela vir, veio Maria de Jesus, não aonde ela estava, e pôs-se sobre o portal da porta da mesma casa que ia para a cerca, e Maria da Trindade sempre com o olho no buraco a ver o que ela fazia e dizia, a não querer vir aonde ela estava. Em se pondo Maria de Jesus espaço de abrir e cerrar uma mão, mudou Deus a vontade a Maria da Trindade com tanta força, dando-lhe o coração aquelas pancadas que dantes dava com grande suor e afrontamento, que chamou uma menina que Ihe chamasse Petronilha da Mota, que era Maria de Jesus, que a fosse tomar por cima da cerquinha pela banda do mar, pois não tinha porta, e por ali subiu, sem ninguém Ihe dar nenhuma ajuda de fora, nem de dentro. Quando Maria de Jesus a viu sobre a cerca, logo a foi receber. E vendo-a entrar, Isabel do Espírito Santo, sua irmã, fez o mesmo que ela, sem nunca querer obedecer a dez ou doze parentes, que foram e estavam com elas, dizendo a Isabel do Espírito Santo se estava casada, porque queria dar tão grande desgosto a seu pai.
Tornaram-se todos para a Vila Franca e, dando nova a seu pai, partiu ele daí a três dias para as tirar. Mas, porque aquela obra tinha Deus feito como Ele foi mais servido, vindo seu pai, Ihe disseram que não haviam de sair donde Nosso Senhor as metera, e com tanta constância perseveraram, que palavras de rogo, nem ameaças, por bem nem mal, as puderam tirar de seu propósito; o que vendo eles, disseram que ficasse a mais moça, e a mais velha, Isabel do Espírito Santo, saísse, pois a tinham já casada e no primeiro navio esperavam vir do Reino seu esposo, como veio. Respondeu ela que já estava desposada com outro Senhor, a que mais queria que a homem da terra, e que se fossem embora, que não havia de ir com eles.
Aqui acabou esta batalha; daí por diante começou de se ajuntar convento, visitadas todas as que iam por Deus, a exemplo da vocação das primeiras.
Dali a pouco tempo o Capitão da terra, Rui Gonçalves da Câmara, movido por sua devação e bom zelo, tomou cargo daquela casa de novas religiosas e foi seu padroeiro, mandando a Roma por bula para que fosse convento e mosteiro com seus privilégios, e que ele e sua mulher fossem padroeiros dele; e logo se moveu com mulher e casa e se foi assentar junto da dita ermida de Vale de Cabaços. Mandou ali vir muitos oficiais a fazer muros e oficinas, porque não havia mais que aquela que agora é sancristia e ele movido com toda a devação e amor de pai, andava sempre presente nas obras. Nove ou dez anos que naquele lugar esteve o convento junto, eles o sustentaram e mantiveram com sua fazenda, de pão e todo o mais necessário para a vida humana, sem antrevir pai nem outro parente nenhum delas.
Mas, por estar o mosteiro naquele lugar e sítio muito junto do mar, remoto de moradores e vizinhança, por causa e perigo dos franceses que ali podiam ir ter, requereram seus parentes as tirassem e mudassem daquele lugar. Partiu-se então o convento por meio e, sendo o Capitão falecido, a Capitoa D. Filipa levou para a vila da Ponta Delgada uma parte, e outra levaram primeiro seus pais e parentes para Vila Franca, onde eles fizeram mosteiro e está convento de religiosas da invocação de Santo André. E na cidade da Ponta Delgada está outro de Nossa Senhora da Esperança.
São todas as de Vila Franca da primeira regra de Santa Clara, pela qual causa, por não terem rendas, nem fazenda alguma em comum, nem em particular, e guardarem ao pé da letra a pobreza da regra, tomou o dito Capitão Rui Gonçalves da Câmara cargo delas e por sua devação as provia de todo o necessário. No qual modo de viver perseveraram vinte anos; e por a qualidade da terra o não sofrer e passarem muitas necessidades, por não haver na ilha quem pudesse suprir com sua fazenda o que o senhor dela podia, por ser muito rico e poderoso, enfermavam muitas e morriam, de modo que se temeu despovoar-se o mosteiro.
Então, por conselho de letrados e homens prudentes, determinaram buscar dispensação em algumas coisas, como em poderem ter renda em comum, e em outras asperezas, com que, por serem mulheres fracas e debilitadas, já não podiam. Mandaram então seus pais e parentes impetrar dispensacão a Roma e desta maneira vivem há mais de quarenta anos depois da dispensação, guardando em o mais a primeira regra de Santa Clara. Com o exemplo deste convento, que foi o primeiro das ilhas dos Açores, se fundaram depois pelas outras ilhas alguns, todos da ordem de Santa Clara.
Quando se dividiu o convento de Vale de Cabaços, foram dele para Vila Franca as religiosas seguintes: Maria de Jesus, abadessa; Maria dos Anjos, sua companheira; Isabel do Espírito Santo, Maria da Trindade, Helena da Cruz, Catarina do Salvador, Maria de Cristo, Catarina da Madre de Deus, Cecília do Redentor, Guiomar da Cruz, Maria de São João, estas todas professas. E as mais, noviças, eram: Catarina de São João, Maria de São Pedro, Maria de Santa Clara, Francisca de Cristo, Maria de São Lourenço, Maria de São Boaventura, Ana de São Miguel e Úrsula de Jesus, ambas meninas.
Ficaram em Vale de Cabaços Maria do Espírito Santo, presidente, Maria da Madre de Deus, Isabel dos Arcanjos, Clara de Jesus, Maria de Santo António, Inês de Santa Iria, Catarina da Concepção, professas. As noviças eram: Hierónima de São Paulo e Isabel do Espírito Santo, filhas naturais do Capitão Manuel da Câmara, e Águeda de Cristo.
Depois se acrescentou este garfo, que ficou neste mosteiro, com outras religiosas que entraram nele: que dali a anos, na era de mil e quinhentos e quarenta um domingo de Pascoela, vinte e três de Abril, pelo mesmo receio de franceses, deixaram o dito lugar e se passaram para o mosteiro da Esperança, que a Capitoa D. Filipa Ihe tinha feito na vila da Ponta Delgada, onde, chegando aquele mesmo domingo à tarde, foram recebidas de todo o povo mui honrada-mente, com grande festa e solene procissão, e logo se recolheram em seu convento ainda não de todo acabado, mas começado e feito um dormitório da banda do ponente e a crasta, e uma igreja de uma água, encostada à crasta da banda de dentro, que agora serve de cemitério, onde se enterram as religiosas que falecem.
As freiras professas que foram então e se mudaram de Vale de Cabaços, primeiras fundadoras do dito mosteiro da Esperança da vila da Ponta Delgada, foram: Maria do Espírito Santo, que era presidente no tal tempo , era filha de André Afonso da Praia e de sua mulher Violante Coelha; a segunda era Clara de Jesus, que antes se chamou Domingas Soares, filha de Francisco Soares, que muito tempo foi veador do Capitão Rui Gonçalves da Câmara e de D. Filipa, sua mulher, e com ele foi a África; a terceira, Inês de Santa Iria, muito virtuosa e de grande penitência, natural de Portugal, que se tomou por amor de Deus; a quarta, Maria da Madre de Deus; a quinta, Isabel dos Arcanjos, sua irmã, natural da vila de S. Sebastião da ilha Terceira, as quais agasalhou o Capitão Rui Gonçalves por amor de Deus, e por suas virtudes as fez fazer professas; a sexta, Maria de Santo António, mulher de grande virtude, filha do Abade de Moreira, irmão de Fernão de Anes, pai do licenciado Bartolomeu de Frias o qual foi ouvidor do eclesiástico nesta ilha; a sétima, Isabel de São Francisco, muito virtuosa, irmã de Maria Dias, mãe de Rui de Melo, a outra Catarina da Concepção, filha do ermitão de Vale de Cabaços, que perdeu o siso por muitos anos e à hora de sua morte o tornou a recuperar, confessando-se e comungando como se nunca o perdera.
As noviças, que em companhia destas foram e depois fizeram profissão na mesma casa da Esperança, eram quatro: a primeira, Águeda de Cristo, filha do licenciado Diogo de Vasconcelos e de Genebra Anes, sua mulher, irmã do melhor contrabaixa que houve nas ilhas dos Açores, chamado Diogo de Vasconcelos como seu pai, que foi muito tempo ouvidor do Capitão nesta ilha; a segunda, Isabel de Santiago; a terceira, Hierónima de São Paulo, ambas filhas naturais do Capitão Manuel da Câmara; a quarta, Maria de São João, filha de João Fernandes Raposo, por outro nome Alcalá. Também foi uma filha de Gaspar Ferreira, de extremada contralta, menina de dez anos, que faleceu moça, sem ser freira.
Tem ao presente o dito mosteiro de Santo André, da ordem de Santa Clara, de Vila Franca do Campo, quarenta e cinco freiras professas e oito noviças, e com as serventes e outras pessoas de serviço, serão oitenta pessoas.
Assolada Vila Franca e morta muita gente nela e em outras partes desta ilha de S. Miguel, assim como o bom Capitão Rui Gonçalves da Câmara acudiu nestes perigos e perdas, a consolar seu povo com sua presença, palavras, conselhos e fazenda, assim também, vendo os homens depois de passado aquele tempo do infortúnio tão debilitados e desmaiados, que quase todos se queriam ir para Portugal e deixar esta terra com o grande medo que conceberam do terribel castigo que sobre ela viram com seus olhos e de outros semelhantes que receavam, ordenou como prudentíssimo divertir no coração de seus súbditos semelhantes pensamentos com mandar fazer uma grande festa de jogo de canas na vila da Lagoa, onde tinha então seu principal assento, armando o desafio entre as duas vilas, da Ponta Delgada e da Lagoa, contra os da Ribeira Grande e Vila Franca e Água do Pau.
Foi este jogo de canas ao longo do mar, em um campo que fica em baixo na praia, e a gente de toda a ilha, com o dito Capitão, estavam em cima, vendo este notável folgar em um dia de Páscoa.
Da Ponta Delgada veio André Gonçalves de Sampaio, chamado o Congro, com dois cavalos, em um ia e outro a destro, e uma azémala carregada de canas, com chocalhos de prata e seu reposteiro, e vestido de cores, de seda; e Jorge Nunes Botelho, também consertado, levando por companheiro seu genro Pero Pacheco, que ia vestido de seda vermelha, com muitos golpes e botões de ouro; e Diogo Nunes Botelho vestido de sede branca; e Amador da Costa com dois cavalos bem ajaezados, um castanho, em que ele ia, tão gordo, que correndo uma carreira, se Ihe fendeu a anca pelo meio e nunca mais foi são; Rui Martins Furtado também foi em um cavalo fouveiro, mui formoso, e levava vestido uma marlota de veludo verde com debruns brancos e botões de ouro; todos com seus moços de esporas, de ricas librés. O meirinho do corregedor, que era Gaspar Manuel, também ia em um cavalo mui formoso, vestido de roxo e azul.
Da vila da Alagoa ia Álvaro Lopes de Vulcão e Cristóvão Soares e outros, todos bem ornados e lustrosos, onde o dito Álvaro Lopes de Vulcão, ainda que era homem de dias, jogou mui valentemente as canas, e João Álvares, seu filho, e Vasco de Medeiros, Fernão Vieira, João Cabral, Pero Velho e João Álvares Examinado, em bons cavalos, vestidos de libré de sedas.
De Vila Franca foram em favor da Ribeira Grande e da Água do Pau alguns poucos, com vestidos honestos de preto e roxo porque traziam ainda muitos deles dó por seus parentes e amigos que morreram pouco havia na subversão da dita vila. Foi Lopo Anes de Araújo vestido de pano preto tosado, muito fino, com Matias Lopes, seu filho, vestido com um pelote de chamalote roxo, sem águas, e gibão de veludo preto, com três cavalos entre o pai e o filho. Foi João de Arruda com seu filho Pero da Costa vestidos de seda preta, e Pero da Costa com botões de ouro, e entre ambos três cavalos; foi António de Freitas de roxo, em um cavalo murzelo, mui formoso; e Hierónimo Gonçalves em outro cavalo pombo; Jorge da Mota e André da Ponte também em outros dois cavalos, vestidos de azul anilado, com gibões de veludo; e outros alguns. Da vila de Água do Pau foram Afonso de Oliveira e Estêvão de Oliveira, irmãos, com três cavalos, vestidos eles de cores e bem tratados, Gaspar Pires, o Velho, Gaspar Pires, o Moço, Amador Coelho, Manuel Afonso Pavão, o licenciado Diogo de Vasconcelos, Rui Vieira e outras pessoas; todos mui galantes e bem vestidos de panos finos e de seda e peças de ouro.
Da Ribeira Grande, foi o Abade de Moreira, que ali estava naquele tempo; levava dois cavalos bem ajaezados, com que jogou mui bem as canas, porque era bom cavaleiro, e teve desafio com Manuel da Câmara, filho do Capitão, que então era moço, sobre o jogo das canas, por Ihe tirar o Abade uma cana e Ihe dar na adarga, e tudo causou sua mãe D. Filipa Coutinha; mas o Capitão Rui Gonçalves da Câmara atalhou a isso, dizendo ao Abade que Ihe atirasse outra cana, porque a Capitoa dizia que matassem ao Abade por atirar a seu filho e Ihe dar na adarga, dizendo que Ihe não havia de atirar, senão botar a cana por cima, como a el-Rei. O Abade vendo isto, como era homem muito valente e de grandes espritos, tomou um arremessão na mão, com sua adarga na outra, dizendo que o Abade não se matava sem ele primeiro matar cinco ou seis.
Foram mais da Ribeira Grande Rui Tavares e João Tavares e Baltasar Tavares, ambos seus filhos, com seis cavalos, os três em que iam e outros três a destro, mui bem ataviados e vestidos de ricas librés; ia Gonçalo Tavares e seu irmão Henrique Tavares, também com dois cavalos, muito adornados de vestidos ; foram Paulo Gago e Jácome Gago, filhos de Rui Gago , bem vestidos e com mui formosos cavalos; foram Baltasar Vaz de Sousa, Simão Lopes de Almeida, Manuel da Costa, Gaspar de Sousa, Pero Teixeira, Adão Lopes, de Rabo de Peixe, e outras pessoas principais, todos bons cavaleiros e bem ordenados.
Com que se celebrou a festa mui solene, e fizeram uns e outros grandes avantagens, porque quase todos os homens nobres desta ilha de S. Miguel e seus filhos mancebos são tão grandes cavaleiros que parece que nasceram sobre seus cavalos, como se parece em outros folgares e jogos de canas que nesta terra em outros tempos se fizeram, principalmente um na cidade da Ponta Delgada, onde foi Rui Tavares a ele com sete filhos, grandes cavaleiros, João Tavares, Baltasar Tavares, João Roiz Tavares, Gaspar Tavares, Belchior Tavares, que depois foi frade de S. Domingos, bom pregador e mudando o nome chamava-se Frei Paulo, Garcia Tavares e Pero Tavares, que era moço pequeno de catorze até quinze anos, jogou as canas com uma adarga pequena que Ihe mandou o pai fazer para isso, maravilhando-se todos de o ver tão atrevido e tão bom cavalgador; e saindo-lhe os Regos, convém a saber, cinco irmãos, Belchior Baldaia, Gaspar do Rego, Gonçalo do Rego, Manuel do Rego e Aires Pires e dois parentes seus, Lopo Cabral e Nuno Gonçalves Botelho, todos sete lindos cavalgadores, jogaram as canas uns contra os outros, os sete irmãos da Ribeira Grande contra os cinco irmãos e dois parentes da cidade, fazendo-o de uma parte e da outra tão bem e escaramuçando tão galantemente que não se desejavam aqui melhores africanos e por tais foram julgados do Capitão e de homens principais da terra e de fora, dando todos muito louvor aos Tavares que iam todos vestidos ricamente de sedas de muitas cores, levando entre si doze cavalos, o que tudo o pai sustentava, por ser muito rico e poderoso.
Gaspar Tavares fazia muitas avantagens, gentilezas e grandes sortes de bom cavaleiro e era o mais ligeiro homem que se viu; corria em pé em cima de um cavalo cada vez que queria, e, estando dois cavalos juntos, cavalgava de um em outro, sem pôr pé em estribo, e também da mesma maneira cavalgava do chão; por altos que dois homens fossem, saltava por cima de uma lança que eles tivessem atravessada com outra lança.
João Roiz Tavares, seu irmão, por ser esquerdo, se avezou a trazer a espada na mão direita e corria em um cavalo sempre com a lança na mão direita e às vezes com duas lanças e com ambas escaramuçava, trazendo a rédea do cavalo na boca.
João de Betencor, filho de Gaspar de Betencor, foi bom cavaleiro; correndo uma carreira, ou quando jogava as canas ou escaramuçava, apanhava as laranjas do chão.
Também João Roiz Camelo foi grande cavaleiro, afora os que tenho ditos quando tratei da progénie de cada um. Gaspar Tavares, filho de Rui Tavares, era tão bom cavalgador e tão afeito em riba de um cavalo, que o fazia subir por uma escada de pedra de muitos e estreitos degraus, que são dezanove, por que sobem em cima de um tabuleiro de pedra muito pequeno, para a casa da audiência da vila da Ribeira Grande, com seu peitoril de pedra, que o faz parecer mais estreito, onde se virava e tornava a descer. O mesmo fazia um seu sobrinho, por nome António Barradas, bisneto de Rui Tavares e filho de João Fernandes Barradas. Os dois irmãos Gaspar Tavares e João Roiz Tavares, fazendo muitas sortes na Índia, morreram lá em serviço de el-Rei.
Por mais que os homens inventem passatempos, como o do jogo das canas que tenho contado, se eles não são os que devem diante dos olhos de Deus, manda logo outro castigo do Céu, como foi a peste que veio a esta ilha de S. Miguel depois da subversão de Vila Franca e tremor de toda a ilha, que foi castigo da terra enviado pelo mesmo Deus; e assim, a peste, que sobreveio, comeu algum resíduo dos pecadores que ficaram do dito tremor e subversão, porque, como contam os antigos desta terra, no ano seguinte, logo depois dela, que foi o de mil e quinhentos e vinte e três, uma segunda-feira, andando um moço vaqueiro guardando gado na lomba chamada de João Soares, no termo da vila do Nordeste, em o lugar dela que está junto do mar, entre a dita vila e freguesia de S. Pedro, seu limite, Ihe apareceu uma mulher vestida de branco, dentro em umas cortinas, alçada do chão dois ou três palmos, a qual vendo ele, a adorou, parecendo-lhe ser Nossa Senhora. E ela, chamando-o, Ihe disse que fosse à vila do Nordeste e dissesse a quantos achasse que fossem ali ter à quarta-feira seguinte, onde se haviam de ajuntar sete cruzes, ; disse-lhe mais , que acharia uma bicha no caminho, que viria com a boca aberta a ele, mas que não houvesse medo, porque aquela era a bicha da peste que havia de vir à vila da Ponta Delgada, e se, estando esta gente junta, viesse alguma trovoada, cavassem daquela terra, em cima da qual ela tinha os pés, e a espalhassem por cima de todos e não houvessem medo; e que naquele lugar Ihe fizessem uma casa, que se chamasse Nossa Senhora do Pranto, porque ela rogava a seu filho irado pelo povo todo. Contava mais que Ihe mandara que trouxesse um cordão em que Ihe faria uns nós, para que rezasse por eles o seu rosairo; e, trazendo ele uns do Nordeste, ela Ihe dissera que não aqueles porque rezara por eles uma mulher pecadora; então, Ihe pediu um cordão que traria cingido, em que Ihe fez os nós por sua mão, dizendo-lhe que os desse a beijar a todas as pessoas. E tudo se cumpriu depois como ela disse. E foram juntas as sete cruzes de diversas partes, do Nordeste, da Maia, da Povoação Velha, da Chada Grande e de outras partes, com muita gente, que fizeram a igreja no mesmo lugar, da dita invocação de Nossa Senhora do Pranto, como ela mandou. A qual está hoje em dia ali e é de muita romagem, onde dizem que se fizeram já muitos milagres. E pelos tremores da terra que vieram depois, muito grandes, caindo outras muitas igrejas, ela sempre ficou em pé.
Logo no mesmo ano de mil e quinhentos e vinte e três, aos quatro dias do mês de Julho da dita era, deu a peste na vila da Ponta Delgada desta ilha de S. Miguel, em casa de um João Afonso Seco, de alcunha, que morava junto da igreja de S. Pedro, e dali se ateou na vila, onde durou oito anos, contando o tempo precisamente; mas, se contamos as eras, durou nove anos, tomando parte no ano de vinte e três, em que começou, e parte da era de trinta e um, em que cessou, que foi no mês de Maio, pouco mais ou menos.
E já na era de vinte e um se temia esta praga nesta ilha, por andar iscada em outras terras que tinham comércio com ela, principalmente na ilha da Madeira, donde se apegou aqui, de certa mercadoria que veio, dentro em uma caixa, ter a vila da Ponta Delgada, parece que na dita era de vinte e um, ficando seu dono da caixa na ilha da Madeira.
E vindo a esta ilha na era de vinte e três, no mês de Julho e abrindo a caixa, deu a peste na dita vila da Ponta Delgada, por mais guardas que tinham e posturas que faziam nas Câmaras das vilas, que não se recolhesse coisa impedida. Dando a peste na vila da Ponta Delgada, se acolheu muita gente dela para os lugares da Relva, Feiteiras, Fenais e outras partes de fora. E em toda esta ilha se guardavam da dita vila da Ponta Delgada e seus termos, porque nela morreu muita gente; e algumas vezes cessava e outras tornava a picar, pelo que diziam: já se acabou a peste, já tornou a peste.
No cabo de três anos, que desta maneira durou na vila da Ponta Delgada e seus limites, deu na vila da Ribeira Grande, na era de mil e quinhentos e vinte e seis, levando-a um João Afonso, por alcunha o Cabreiro, que morava sobre uma alagoa funda que fazia a ribeira que corta a vila, chamada o Paraíso, da banda do ponente, a qual se disse que levara em uma manta que Ihe deram em a vila da Ponta Delgada; e logo aquela noite deu o mal em uma negra sua que dormiu na manta, a qual enterrou ele sem ninguém o saber; e a noite seguinte do outro dia se foi a jogar com um Martim de Leão, correeiro, a casa de um João Gonçalves Fidalgo, por alcunha chamado da Serra de Água, porque tinha uma serra de água junto de sua casa. E logo na mesma noite deu a peste em dois filhos do dito João Gonçalves. Tornando Martim de Leão para sua casa, na mesma noite foram feridos de peste outros dois seus filhos, os quais todos quatro morreram daquele mal; pelo que os moradores foram queimar a casa de João Afonso Cabreiro. Dali se foi ateando tanto que dizem alguns que, de vinte do mês de Fevereiro até o mês de Março, morreram na dita vila cento e setenta pessoas. Outros dizem que foram feridas da peste noventa e quatro, das quais morreram sessenta e três e escaparam trinta e uma. Então despejaram a vila por mandado do Capitão Rui Gonçalves, e ficou Simão Lopes de Almeida, filho de Lopo das Cortes, por guarda-mor, o qual mandou destelhar todas as casas, por causa dos maus ares.
Esteve impedida a vila até vinte e oito de Julho de mil e quinhentos e vinte e sete, em que a desimpediu o licenciado Diogo de Vasconcelos, ouvidor do dito Capitão, indo a ela com os oficiais da Câmara e mais povo junto, mandando apregoar que se recolhesse toda a gente que estava espalhada na Ribeirinha e Ribeira do Salto e por outras partes. E não podendo entrar a gente nas casas, com o grande ervaçal, que se tinha criado nas ruas, de meloeiros, pepineiros, aboboreiras, malvas, milhãs, bredos e outras ervas, e também por causa dos ares maus, mandou o dito Simão Lopes de Almeida, guarda-mor, a todos os criadores que trouxessem os gados à vila para comerem, quebrarem e destruirem aquelas ervas tão crescidas, que o gado em muitos lugares andava com a barba no ar se não aparecia entre elas. Esta gente que se acolheu para a Ribeirinha fez um moinho na Ribeira do Salto; e os que se acolheram para a banda do ponente fizeram outro na Ribeira Seca, porque mandaram que não moessem os moinhos da vila, ainda que às escondidas moíam.
Passada a peste na vila da Ribeira Grande, não cessava na Ponta Delgada, pelo que o Capitão se mudou da vila da Lagoa, arreceando que se Ihe pegasse este mal, de lugar tão vizinho, e se foi morar à dita vila da Ribeira Grande, por pouco espaço de tempo; no cabo do qual, tornando-se para a vila da Lagoa, a morar em seus paços, que já tinha feitos e acabados, por haver ainda peste na Ponta Delgada, mandou pôr uma bandeira no lugar de Rosto de Cão, ao poço, defronte das casas de Jorge Nunes Botelho, tendo dantes outra posta junto da vila da Lagoa, perto do biscoito que está junto do porto dos Carneiros, que era a bandeira geral que sempre ali estava. E, vendo os da governança da vila da Ponta Delgada que os apertavam tanto com duas bandeiras, Pero de Teves e Fernão do Quintal e Gaspar do Rego Baldaia, que era então mancebo e grande cavaleiro, que, andando nas partes de além em África, fora pagem do Conde de Linhares e trouxera lá o seu guião, ajuntaram-se com outros homens da governança e misteres, tomando conselho o que sobre este caso fariam, por não poderem sofrer tanta sujeição, e tomando assento do que haviam de fazer, o dito Pero de Teves e Fernão do Quintal e Gaspar do Rego, oficiais da Câmara e outros homens principais, com o mais povo, ajuntaram até trezentos homens, entre espingardeiros e besteiros e homens de lanças, espadas, rodelas e alabardas, afora os de cavalo, que seriam vinte, todos os mais escolhidos e esforçados que acharam; os quais, partindo da Ponta Delgada, passaram a bandeira do lugar de Rosto de Cão, indo pela via do pico de João Ramos, caminho desviado do direito, para a vila da Alagoa, onde estava o Capitão e seu ouvidor, o licenciado Diogo de Vasconcelos, segundo letrado natural desta ilha, porque o primeiro foi Diogo Pereira, da vila da Alagoa. Indo assim esta gente junta, foram ter à quinta do Capitão, que se chama o Cavouco, que está sobre a dita vila, sem serem sentidos por não irem pelo caminho ordinairo, senão quando, descendo do Cavouco por uns picos abaixo, descobriram a vila, onde vendo-os uns homens que andavam lavrando, foram correndo dar a nova ao Capitão, o qual, pondo-se com seu ouvidor e outra muita gente de cavalo e de pé, se foi ao encontro; e achando os da Ponta Delgada arriba das suas casas, onde se chama o Vale da Senhora, que foi de D. Inês, sua mãe, chegando a eles, perguntou que queriam. Fernão do Quintal Ihe propôs a prática, dizendo que não era bem apertá-los e sogigá-los com duas bandeiras e dizendo mais adiante algumas razões. Acudiu Pero de Teves , dizendo: sabeis o que se passa, sr. Capitão, nós não somos mouros para nos pordes duas bandeiras; mandai cortar vossas posturas, senão tomarei esta gente toda que vem nesta companhia e romperei esse lugar, porque a mais honrada vila que tendes na vossa ilha é a Ponta Delgada e não nos haveis de tratar dessa maneira, com duas bandeiras, pois nós trabalhamos tanto para a desimpedir, abasta só uma bandeira como dantes. Disse então o ouvidor ao Capitão: Senhor, quereis que o prenda? Respondeu o Capitão: Tá, não façais tal, que aquele homem é como doido e, assim como o diz, o fará.
Vieram por fim assentar e concluir com boas palavras o que se podia e devia fazer, que era terem uma só bandeira, como dantes, junto do Porto dos Carneiros. Disse então Pero de Teves ao Capitão: — Senhor, isto é tarde e muito longe para nos tornarmos por onde viemos; mandai-nos abrir aqui caminho por cima destes sarrados , até a bandeira que está junto da vila, por fora dela. E assim o mandou fazer o Capitão, e por ali se foram e tornaram para a vila da Ponta Delgada, já tão tarde que quando chegaram à bandeira, fora da vila da Lagoa, era noite, e pelo escuro se recolheram para a Ponta Delgada, sendo isto no mês de Janeiro, estando as terras lavradas de camalhão para se semearem.
Neste tempo, havia nesta terra muitos mouros que trouxe o Capitão Rui Gonçalves da Câmara, quando veio de África, e os cavaleiros que com ele foram e vieram, e outros que trouxeram outras pessoas de Portugal. Valiam tão baratos por causa da fome que houve em África na era de mil e quinhentos e vinte e um anos, antes da subversão de Vila Franca, a treze de Dezembro , da qual fome morreu em África muita gente, muitos cavalos e muito gado; e, entre os mouros, os pais vendiam os filhos e davam cada um por duzentos réis, e muitos se vinham a Portugal a fazer cristãos por ter que comer, onde no Algarve davam um por uma ceira de figos ou por um alqueire de cevada; e não havia homem desta ilha que, indo lá, não comprasse um, dois, três, quatro, segundo a posse e fazenda que cada um para granjear e beneficiar tinha, por onde vieram a ser tantos nesta terra, por morrerem de fome nos campos, e nas praças e pelas ruas no campo da Duquela e em outras partes de África, principalmente no reino de Fez. E alguns vendiam mais barato do que tenho dito, porque se furtavam uns a outros, para se venderem. Os quais mouros, quando viram que no tempo do tremor passado morrera muita gente, assim em Vila Franca, como em toda a ilha, e vendo que também morriam muitas pessoas com a peste presente, dizem alguns que se amotinaram e determinaram juntos ir sobre a vila da Água do Pau e outras vilas, para matarem os moradores e ficarem em posse de tudo. E muitos andavam na Mediana, arriba da casa de um Fernão de Pinho , e matavam ali muito gado, e de noite e de dia com fogueiras cozinhavam, assando e cozendo algum dentro nas peles, postas em covas com o fogo ao redor, ou em cabaças, como atrás tenho contado que se usava nesta ilha, no tempo antigo. E estando ali, salteavam alguns que passavam, tomavam-lhe o pão, mantimentos e dinheiro que levavam. E, dali a alguns anos, correndo água e descarnando a terra em uma ribeira que está além de Nossa Senhora dos Remédios para a banda do oriente, se descobriu algum dinheiro em tostões e em outras moedas de prata, que diziam soterrarem ali os mouros no tempo que andavam amotinados.
E em outras partes da ilha salteavam os mouros os caminhantes, pelo que não ousavam os homens caminhar senão acompanhados e se guardavam e vigiavam nas vilas e lugares, de dia e de noite, com tão grande resguardo, que andando uma noite um asno em um canavial junto da vila da Água do Pau, ouvindo a gente a ramalhada das canas, acudiu ali com grande pressa, cuidando que eram mouros, e foi grande riso entre eles quando acharam o asno.
Alguns dizem que porque um moço os viu estar comendo na serra, como é costume de mouros e pastores, com esta nova que levou ao povoado, se temeu o povo deles.
Mas outros afirmam que eles, com ocasião do terramoto e peste, fizeram entre si consulta de se alevantarem contra seus senhores, fazendo seu capitão um mouro do Capitão Rui Gonçalves, que chamavam Badaíl; pelo que o Capitão mandou que todo o que tivesse mouro Ihe pusesse um ferro, peia ou grilhão no pé e que todos ferrolhassem e fechassem seus escravos cada dia, em anoitecendo, e, se algum se achasse sem isto, o pudessem matar; e a mesma licença deu com os que achassem desmandados.
Por esta razão, se ajuntaram alguns homens principais, bons cavaleiros desta ilha, como foram Antão Teixeira, que morava na Lomba da Ribeira Seca, Guterres Lopes, Lourenço Teixeira, Cristóvão Luís e Manuel Pinheiro, da vila da Água do Pau, Vasco de Medeiros, da vila da Lagoa, e outros valentes cavaleiros, de outras partes; os quais, indo junto do Cavouco, acima da vila da Lagoa, achando um palheiro, não viram nele pessoa alguma, e, passando adiante, Vasco de Medeiros que atrás ficava, metendo a lança pela palha do palheiro, sentindo que bulia pessoa viva debaixo e ouvindo um gemido daquele que a lança tocava, carregou nela e matou o que gemia, e tirando-o fora, de debaixo da palha, conheceram ser o Badaíl, capitão dos mouros e, chegando-se alguns homens de pé, Ihe cortaram a cabeça, a qual um João Gonçalves Xastre levou dependurada pelos cabelos e, chegando à vila da Lagoa, a dava a beijar aos mouros que achava, dizendo: — Mouro, vês aqui o teu capitão. Com a cabeça cortada, enfraqueceram os membros, e os moradores desta terra ficaram livres do grande sobressalto em que estavam todos e do muito enfadamento que tinham muitos.
Durou a peste pelos anos adiante, somente na vila da Ponta Delgada, ora cessando, ora tornando, até a era de mil e quinhentos e trinta e um.
Outros dizem que veio a peste a esta ilha da ilha da Madeira em uma caixa, a qual esteve fechada na vila da Ponta Delgada dois anos, em casa de um João Afonso Seco, pai de Bartolomeu Vaqueiro, e não se abriu porque ficava lá seu dono; o qual, vindo da ilha da Madeira na era de mil e quinhentos e vinte e três , em abrindo a caixa, logo se apegou na dita vila e começaram a morrer em casa de Sebastião Barbosa da Silva, sendo juiz Agostinho Imperial, e se ateou até dar na vila da Ribeira Grande e somente nestas duas vilas, Ponta Delgada e Ribeira Grande, houve a peste e não em outra parte da ilha. Na vila da Ponta Delgada dava muitos rebates; ora morriam muitos, ora poucos, e uns se saíam da vila, outros entravam, e por isso não cessava a peste; mas, em uns tempos andava mais acesa e em outros menos, e posto que muitos despovoassem a vila da Ponta Delgada, sempre ficou gente nela.
Em casa de Bartolomeu Afonso Pereira, morador na dita vila da Ponta Delgada, faleceram da peste onze pessoas e um seu filho, chamado Pedro Afonso Pereira, foi ferido da mesma peste, mas não morreu dela.
Além da grota da Figueira, entre a Relva e as Feiteiras, estão mais de duzentos corpos enterrados, que morreram ali da peste, dentro no tempo que ela durou, porque os que se queriam desimpedir pediam degredo para aquela parte, onde estes, cuidando de escapar, morreram.
Alguns dizem que no tempo que durou a peste morreram dela na vila da Ponta Delgada duas mil pessoas; outros dizem mil, afora as que faleceram na Ribeira Grande. Mas, disto não há certeza; o mais certo é que, entre os que morreram no tempo do terramoto, ou tremor e subversão de Vila Franca, e no tempo da peste, seriam por todos cinco mil almas em toda esta ilha.
No ano de mil e quinhentos e trinta e um foi o Capitão Rui Gonçalves da Câmara com o seu ouvidor , da vila da Lagoa à da Ponta Delgada e a desimpediu no campo de Rui Lopes Barbosa da Silva, que é no cabo da vila, para o nascente, na casa de António Borges de Gamboa, para a freguesia de S. Roque. Ali mandou chamar as guardas e homens da governança da dita vila da Ponta Delgada e dando-lhe juramento com seus ditos a houve por desimpedida, por haver alguns meses que nela não morriam já de peste. Tomaram então na cidade por seu intercessor o Mártir S. Sebastião, cuja freguesia tinha, mas, por ter a igreja pequena, determinaram de a fazer muito grande e sumptuosa, como com muita brevidade fizeram. E nunca mais, daquele dia até agora, houve peste nesta ilha. Louvado seja o Senhor, que guarda seus povos por intercessão de seus Santos.
Em Vila Franca do Campo, que de nobre precedia Na ilha de S.Miguel a quantas Vilas havia, Era de mil e quinhentos e vinte e dois que corria, Vinte e dois dias de Octubro, quatro de lua seria; Era uma quarta-feira, quarta-feira, triste dia, Em a noite mais serena que o céu fazer podia, Inda que corre levante, nada dele se sentia; Não corre bafo de vento, nem folha de árvore bulia; Estrelado estava o céu, nuve não o escurecia, Ante manhã duas horas, inda não amanhecia, Começou tremer a terra mais que outras vezes tremia, E a dar fortes balanços, parecendo maresia; Não treme de baixo a cima, mas para os lados tremia; Nem abre boca nenhuma o esprito que isto fazia; Sacudiu somente a terra dos lados em que feria; Sacode a terra dos ombros, com o peso que sentia, O grão gigante Almourol que deitado ali jazia.
Movem-se todas as coisas, quando seu corpo movia, Estrondos que faz a terra, roncos são do que dormia; Que de ser velho cansado ronca, quando adormecia.
Correu a terra de um monte que da alta serra pendia, E com ímpeto furioso sobre a vila se estendia.
Ali começa dar gritos a gente que se afligia, Deles chamavam por Deus, deles por Santa Maria; Quando chegou a manhã, nenhum deles parecia, Todos cobertos de terra e de grande penedia, Que correu daquela serra que sobre a vila jazia.
Essa gente que escapara, como pasmada morria, Outra que viva ficava, vivendo assim não vivia.
Aqui chega Frei Afonso, e com a tocha que trazia, Da ordem de S. Domingos de Toledo, reluzia, Esse padre glorioso que da glória parecia; Para consolar o povo, assim falava e dizia: Confessai-vos, irmãos meus, enquanto nos dura o dia; Rezai todos o rosairo da Virgem Santa Maria; Edificai-lhe uma casa, indo a ela em romaria; Tomai-a por valedora que ela por vós rogaria; Tende nela confiança, que certo vos valeria.
Não acaba de falar, quando a casa se fazia; Uns acarretavam pedra, outros madeira, a porfia; Trabalham moços e velhos, pessoas de grã valia; Até as nobres mulheres serviam sem fantesia ; Trazem telha dos telhados que no arrabalde havia; Como formigas ligeiras, andam a quem mais faria, Tanto que em poucos dias a ermida já servia; Já celebram missas nela, já lá vão em romaria.
O Capitão Rui Gonçalves, que da Câmara se dizia, Como soube em sua quinta desta terra que corria, Manda selar seu cavalo, a espora fita corria, Por socorrer a seu povo que estava nesta agonia.
E, chegando a Vila Franca do Campo, campo só via, Campo em que esteve Troia, que soberba ser soía.
De mui populosas casas nem uma só parecia; Seus paços postos por terra, terra que neles cobria Um seu filho e duas filhas a que ele muito queria; Também um filho bastardo, que não tinha bastardia, E uma sua irmã, chamada D. Melícia.
Dissimula sua dor, inda que muito a sentia, Seus olhos se arrasam de água, por mais que ele se encobria; Com coração esforçado de senhor de grã valia, Esforça todo seu povo que de pasmo falecia.
Manda logo cavar gente onde antes estar soía O Santíssimo Sacramento, cuidando que se acharia; Vendo quanto Deus nos ama, quão grande bem nos queria, Que, querendo dar castigo, sobre si o tomaria, Em todos nossos trabalhos companhia nos faria, Dos açoites que nos dava também participaria, Sendo uma vez sepultado, outra se sepultaria, Por estranhar nossas culpas a si mesmo enterraria.
Mas, tão mal cheiravam elas que Deus dali se desvia, Pois que, cavando a grã pressa, ali já não aparecia.
A arca acham no altar, mas sem ele está vasia.
Não sabem se foi ao céu, se na terra ficaria, Nalgum sacrário metido, para o qual se mudaria.
Alguns sinais viram disto a gente que ali acudia, Vendo daquele lugar uma nuve que subia, Ouvindo muitos cantares de suave melodia, Suspeitando ser dos Anjos alguma grã companhia, Que da terra para os céus a Deus acompanharia, Ou por mãos angelicais noutra vila se poria.
Mas, quando não foi achado, um grande grito se erguia, Daquela grande companha que misericórdia pedia; Vendo uma tal maravilha, com gritos ninguém se ouvia; Daquele povo tão triste, quem então não gritaria? Batendo todos nos peitos, quem peitos não quebraria, Em tempo de tanta angústia, pois deles seu Deus fugia, Para Ihe pedir remédio naquela triste agonia; Já não sentem perder nada, só não ver Deus se sentia; Este castigo mais choram, este só mais Ihe doía.
Vendo apartar-se Deus deles quem não esmoreceria? Depois cavam em outras partes por ver se alguém viveria.
Acham mortos pelas ruas, que a terra afogado havia.
Outros acham em seus leitos sem temor do que viria, Cuidando dormir de noite, mas também dormem de dia Sono de uma noite só para sempre duraria.
Alguns vivos se acharam, pouco número seria; Mas quem quer que os vira vivos por mortos os julgaria; Tinham todos cor de terra, que toda a vila cobria Mas não cobre uma criança que sós três anos havia, A qual acharam folgando sobre a tábua em que jazia.
Nove dias são passados depois de morta a alegria Quando com grã diligência a gente cavando ia; Coisa de grande temor quem contar a ousaria? Indo o povo em procissão que com choro se fazia, Ouvida foi uma voz do outro mundo parecia; Mui fraco vem o tom dela, porque do centro saía; Muitos ouvem o som confuso mas ninguém o entendia; Ali vem o Capitão que a tudo sempre acudia; Manda cavar a grã pressa onde aquele tom se ouvia, Entendendo que era gente que soterrada gemia; Depois de muito cavarem uma trave descobria, Com uma ponta para o chão, que encostada assim jazia.
Fazem logo uma abertura em um vão que ali havia, Vão era, que fora lógea onde sobrado caía; Saem por ela três vivos, mortos cada um parecia, Com as mãos alevantadas, como cada um saía, Geolhos postos no chão, a seu Deus graças rendia, Pelo livrar de tal morte, que vivendo ali sofria, Onde estavam mais confusos não sabendo o que seria, Se era toda a gente morta ou se o mundo se fundia; Não sabem quando amanhece, se um galo Iho não dizia, Que cantava às horas certas que sempre cantar soía; Mantinham-se com biscoito que para a viagem havia, Que queriam navegar, para onde o sol saía, Onde tinham sua terra, mas a terra Iho impedia, Que, correndo aquela noite, ali todos os prendia.
Bebem água que do lodo gota e gota Ihe caía, E também de uma fundagem que vinagre se fazia; Assaz de morte passava quem escuro ali vivia.
Contavam isto chorando, com choro o povo os ouvia; Tantas lágrimas choravam que a terra se humedecia.
Já não choram seus parentes mortos, que a terra cobria; Muito mais choram os vivos, que mais morre o que vivia.
Não choram amigos mortos, nada disto Ihe doía, Pois sabem que tarde ou cedo qualquer dos vivos morria; Choram não saber da morte em que estado os tomaria, E mais choram a si mesmos pelo que inda se temia.
Choram seus próprios pecados de que o castigo nascia, Que quem pranta culpas graves graves castigos colhia.
Era tudo ali um grito que ao céu Empyrio subia, Pedem misericórdia a Deus, cada um assim dizia: Senhor Deus, misericórdia, que eu, meu Deus, não merecia.
Também tiraram um morto que entre eles ali jazia, Que faleceu às escuras, entre a viva companhia, A quem dava grão trabalho pelo muito que fedia; O qual depois de enterrado, como a outros se fazia, Vão todos em procissão a uma ermida que havia, Da Virgem Santa Catarina, que de parróquia servia.
Dão todos graças a Deus, como cada um podia, Pelos livrar da prisão da terra que os cobria.
Cinco mil foram os mortos que em toda a ilha haveria, Porque afirmam antigos tantos morreram tal dia.
Outros contam nesta conta os que a peste feria, Logo nos anos seguintes em que entre os vivos ardia; O que parece mais certo que então tantos não havia.
Alguns morrem nos lugares debaixo de casaria, Que com o tremor da terra em todas partes caía.
Morreram religiosos, morreu muita cleresia, Morre muita gente nobre, que em toda a ilha vivia.
Qualquer rico e poderoso sem a riqueza partia, Que por ventura ficava a quem não Iha agradecia.
Cuidando gozá-la muito, no melhor se despedia; Não a logrou muitos anos nem jamais a lograria; Se fez alguns bens com ela, isto só Ihe valeria.
Morreram altos e baixos, sem Ihe valer fidalguia; Morrem grandes e pequenos, todos a morte ofendia; Mas, mais morrem em Vila Franca, onde mais povo havia, quase todos ali morrem, senão algum que fugia; Mas são poucos os que fogem porque cada um dormia; Poucos são os que escaparam debaixo da terra fria; E alguns no arrabalde, além da água que corria; Outros escapam nas quintas porque Deus assim queria.
Cuidando ser acabado o mal, que mais não seria, As nove horas são passadas, depois que já o sol saía, Eis torna a tremer a terra mais que dantes parecia; Corre na Ponta da Garça, e na Maia o mesmo dia, Terra que matou a muitos deste número e contia , Contando moços pequenos de que contar não sabia.
Lembra-me das dores grandes, das pequenas me esquecia. Onde houve máguas sem conto, quem contar as poderia?
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