Na cidade da Ponta Delgada, como em algumas partes da ilha, em dia de S. João Baptista do dito ano de mil e quinhentos e sessenta e três, começou a tremer brandamente, duas vezes cada dia, até a segunda feira seguinte, que foram vinte e oito de Junho, véspera dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo, que ao sol posto, na dita cidade, começou a tremer com maiores abalos e causar tanto espanto à gente que se não sabiam dar a conselho; e logo se ordenaram procissões, em que todos com grandes clamores pediam a Nosso Senhor misericórdia.
Andando nas mesmas procissões, apareceu sobre as serras de Bulcão e as outras já ditas, subitamente, um espantoso incêndio de fogo, lançando tão bravas línguas de si para todas as partes, que não houve pessoa nenhuma que com grande desacordo não desamparasse a procissão, fugindo desatinadamente sem saber para onde, por terem por sem dúvida que o dito fogo procedia do céu, porque não aparecia senão mui alto e criam que era a fim do mundo chegada. O qual fogo saía de uma altíssima coluna negra e temerosa, e cada vez se ia tanto mais subindo e alargando que parecia que todo mundo assombrava. Foi tanto o pasmo na gente aquela noite, que nunca cuidaram chegar à manhã, a qual sendo chegada, por verem a coluna, onde o fogo de noite aparecia, saía da terra, ficaram algum tanto mais sossegados e com menos espanto; posto que o ímpeto e fúria com que aquela coisa saía, não era de menor admiração, por ser tão basta e ir fazendo, caminho dos ares, tais ondas e bravuras, enovelando-se o fumo e nuvem com tanta pressa que parecia que por ali toda a ilha se estava vasando, tremendo assim as paredes e telhados com tão furiosos e repentinos abalos, que mui miudamente sobrevinham, que nem das igrejas nem de suas casas se ousavam fiar. Uns andavam pelas ruas sem sentido; outros se deixavam estar parados e pasmados, olhando para a tenebrosa nuvem como vinha crescendo e assombrando o mundo.
Diziam uns que se abria o céu; outros que era fogo da terra; outros que não podia ser senão infernal. Ouviam-se, de quando em quando, tão feros e impetuosos estrondos, que pareciam de muitos e diversíssimos tiros de artilharia.
Passada aquela espaçosa noite de tantos medos, de espantos, e chegada a manhã, que mui poucos esperavam ver, bem se viu nos rostos de todos o que em seus desmaiados corações haviam sentido e sentiam, porque ninguém amanheceu que não tivesse cor de finado; todos mais amarelos que cera, representando bem o cumprimento da profecia do Evangelho, que diz: — Andarão os homens secos e mirrados, com o temor dos grandes sinais que verão antes do dia do Juízo. Baltazar Álvares, escrivão do Eclesiástico, que tinha visto dantes, da ilha Terceira, onde estivera, o incêndio da ilha do Pico, esforçava a sua gente e outras pessoas, dizendo que não tivessem medo, que aquele fogo que viam era como o que se abrira na ilha do Pico; mas, era tanto o espanto e temor de todos, que ninguém se aquietava com isso, nem caíam na conta.
Com a claridade do dia, deixou de aparecer o bravíssimo fusilar do fogo e em seu lugar se viu aquilo, que de noite parecia nuvem, ser uma cousa tão basta, negra e medonha, que subia com tanta fúria e violência da terra, ondeando e dando voltas com tal ímpeto que parecia que por aquela, como infernal, boca se estava evacuando em pó e cinza toda a ilha até os abismos; e, depois de ser no ar altíssimo, aquela matéria queimada se encapelava e encorporava, em maneira que figurava uma formosa árvore e, daquela grandura e com o resplandor do sol que lhe dava, parecia toda de volumes de branquíssima lã cardada, mui aprazível à vista, se não fora tão danoso o efeito; e, como se punha o sol, tornavam a aparecer as espantosas línguas de fogo, que rompiam por mil partes daquela polvorosa matéria que subia. O dia dos Apóstolos, chegou nova à cidade como o mosteiro das religiosas da vila da Ribeira Grande era caído com a maior parte da casaria da vila, pelo que logo partiram muitas pessoas principais, com licença do custódio, para as levarem à cidade, onde no mesmo dia chegaram a horas de véspera, e saíram as cruzes das freguesias com a bandeira da Misericórdia, e toda a cleresia e frades de S. Francisco, a recebê-las, acima da ermida de Santo André, e com procissão ordenada de muita gente as levaram ao mosteiro da Esperança, onde já estava ordenado de as recolherem. Neste mesmo dia, pela manhã, pregou o padre custódio, frei António Alarcão, no adro da igreja de S. Sebastião, e não dentro dela, com arreceios dos grandes terramotos que não cessavam. Tratou mui substancialmente a matéria que em tal tempo convinha. Donde se seguiu haver muito perdão de ofensas, muita reconciliação de ódios e algumas restituições de encargos, e daí em diante muitas confissões, preparando-se todos para receber a morte, que viam mui presente ante seus olhos. Em maneira que, se Nosso Senhor se servira , segundo a gente no tempo daquela tribulação andava religiosa e convertida, se pudera crer que os tomava em bom estado.
Toda a noite da segunda feira ventou o vento oeste e oeste-sudoeste, que lançava todo aquele rescaldo para a banda do levante e do nordeste da ilha. E a noite da terça feira se mudou o vento ao nordeste e se começou o céu a toldar sobre a cidade, e se ordenou outra mui grande procissão de toda a cleresia e de muita gente, com grande cópia de foroes da Misericórdia e cera das confrarias e muitos penitentes, a qual foi à ermida de Nossa Senhora da Piedade, que está arriba da cidade menos espaço de meia légua. Quando veio a quarta feira, apareceu a terra sobresemeada de cinza muito miúda e de enxofre, com o cheiro tamanho que bem a pesar das pessoas se sofria. E, como Nosso Senhor em todas suas obras usa connosco de muita misericórdia, teve por bem de mudar outra vez o tempo ao ponente, porque se o contrário perseverara, ou o que ventou fora mais teso, não há dúvida senão que a perdição que aconteceu nas outras partes da ilha, acontecera também da banda da cidade e seu termo, por onde tudo se perdera de remate e fora forçado despejarem toda a ilha.
Em todo este meio tempo, continuaram os terramotos mui bravos e, quando vinha a noite, toda a gente se alojava pelos campos. E a furiosa boca, acrescentando cada vez mais em sua primeira fúria, não cessou de lançar e dispender sua pólvora até quinta feira, primeiro de Julho, até as nove horas do dia, pouco mais ou menos, que foi visto arrancar de raiz com terríveis e espantosos redemoinhos, fazendo pelos ares tantas e tais diabruras, que parecia que todas as quadrilhas infernais ali iam juntas, e se lançou para a banda norte da ilha, movendo pela terra e mar tão feras tempestades, que não há quem as saiba dizer, nem possa crer.
Em todos estes três dias, choveu infinita cópia de cinza na vila da Ribeira Grande, onde os terramotos foram tão excessivos, como tenho dito, que quase não ficou casa que não caísse, em parte ou em todo, porque, como a terra que se abriu estava muito a pique sobre a vila, participavam mais os moradores dela das terribilidades do fogo que pelos ares a todas as partes se estendiam, e dos grandes abalos da terra e dos medonhos estrondos que se sentiam, como de furiosos trovões, correr de cima da serra, por baixo da vila, até o mar.
Da Ribeira Grande até o lugar de Porto Formoso e Maia, caiu muita quantidade de cinza, em tanto que acravou todas as novidades e as cobriu em maneira que se perderam, sem delas se aproveitar senão mui poucas espigas. Da Maia para além, convém a saber, nas freguesias dos Reis Magos e em ambas Achadas, e na de S. Pedro da Lomba, e na vila do Nordeste até a Povoação e Furnas, além da muita cinza que também choveu, caiu tanta pedra pomes, misturada com algumas rachas de pedra brava, que não ficou coisa que não cobrisse, nem grota que não arrasasse, nem árvore que aparecesse, nem pessoa que não cuidasse senão que o mundo se acabava. Donde por toda aquela costa ficou tudo tão raso e desabafado, que não há lugar por onde mui à vontade carros não possam andar.
As pedras que caíam a lugares eram algumas delas de grandor de potes, e outras maiores e mais pequenas. E, quando davam no chão, nos telhados ou árvores, todas se esboroavam com muita facilidade. Mas deixaram a terra tão bravia, áspera e estéril, que não havia boi que a dois passos não se despeasse, nem erva que arrebentasse, nem esperança que jamais frutificasse. Foi nestes dias tanta a obscuridão daquelas bandas, que quase não se viam as pessoas umas às outras. E de quando em quando se sarrava tanto, que de nenhuma qualidade se podiam ver, senão às palpadelas.
Afirmam alguns que foram vistos os demónios alardear e soar espantosos estromentos, o que não se pode crer, posto que as bravuras foram em tanto excesso que parece não ser erro de fé crer que traziam eles muitos ministros nisso ocupados. Mas, o certo é serem estas coisas e suas causas naturais. De Vila Franca do Campo se pode dizer que padeceu segundo dilúvio, na qual também choveu tanto cinzeiro, do mesmo que ia daquela furna semelhante a infernal, que cuidaram os moradores haverem de ser submergidos com ele, como seus antepassados foram com a rotura do monte que sobre eles correu. E desacoroçoados com medo do fogo que viam sobre si e a estranha chuva, e dos terramotos que os desatinavam e obscuridão que os assombrava, desampararam muitos a vila e procissões em que andavam e se acolheram a maior parte ao ilhéu, que está apartado da ilha dois tiros de besta, parecendo-lhe lugar mais seguro para poderem escapar de tanta tribulação. E, por verem serem ali combatidos de maiores tremores e de mais basto cinzeiro, desampararam a estância dele com mui atribulados sucessos, e tornaram a embarcar em alguns navios que aí se acharam ancorados. Alguns dos quais foram ter à ilha da Madeira, outros se tornaram para a terra e se acolheram em companhia das freiras, que também desampararam seu mosteiro, para a Ponta da Garça, uma légua da vila para o levante, onde acharam algum tanto mais refúgio. Porém, a maior parte da gente se acolheu para a cidade, como fizeram todos os moradores das vilas de Água de Pau e Alagoa, onde também aconteceram os mesmos espantos e caíram muitas casas, mas não tanta cinza que fizesse dano às novidades.
Era coisa muito para ter grande mágoa ver os caminhos cheios de gente, homens, mulheres, mininos, fugindo com tanta pressa e desacordo, e as famílias tão espalhadas e divisas, que uns não sabiam parte dos outros, e, se é lícito, pudera-se bem dizer por esta pressa: — vae pregnantibus et nutrientibus in illis diebus, porque foi tanta a calamidade e trespassamento da gente, que se pode ter por mostra muito natural pintada daquele espantoso dia que esperamos.
Houve de toda aquela banda grande destruição de gados que se acravaram na terra e outros que, cegos e desatinados com a obscuridão da cinza e pedra pomes que caía, se lançaram pelas rochas ao mar; outros se crê que levaram os grandes redemoinhos pelos ares, como fizeram a árvores de mui grossos troncos, que foram depois achados por navios que vinham de fora, mui longe da ilha. Perderam-se todas as criações e pastos daquelas partes, que eram os mais e os melhores da ilha, onde apascentavam e criavam a maior parte dos gados dela; e depois não havia onde se pudesse repairar um coelho, de maneira que todos os moradores daquelas freguesias, em que havia homens de grossas fazendas, eles e os pobres trabalhadores ficaram iguais e todos se foram recolhendo para a cidade da Ponta Delgada e seus termos, perdendo a saudade a quanto dantes tinham e possuíam, por lá não terem que comer, nem que fazer. Padeceram todos naqueles dias comum miséria, porque, além dos trabalhos contados, tomaram a gente no fim dum ano mui apertado e entre foice e vencelho , por não haver ainda trigo segado nem debulhado, nem o tempo dava para isso lugar.
Sumiram-se as duas ribeiras maiores e mais necessárias da ilha, que eram a da Ribeira Grande, onde o povo da cidade ia moer, e a da Praia, onde se puderam remediar em falta da outra, ambas as quais nasciam na dita serra que se abriu; uma delas corria para a banda do norte; outra para a do sul. E, por a cidade estar desapercebida de atafonas, pelo Capitão Manuel da Câmara alcançar sentença que se quebrassem e o povo fosse moer à Ribeira Grande, foi tanta a necessidade que causou a falta das ribeiras, que, se não fora por andar a gente tão fora de si como andava, não pudera menos ser senão morrerem muitas pessoas.
A sexta feira logo seguinte, dois de Julho se abriu o outro fogo junto do caminho que vai da cidade para a vila da Ribeira Grande, na coroa do pico que chamam do Sapateiro, distante da dita vila para o sudoeste obra de um terço de légua, no qual se abriram duas temerosas bocas e delas saía mui bravo fogo, lançando para o ar muitas pedras, algumas de grandura de bois, que, tornando a cair, se desfaziam em peças miúdas, de modo que cobriram grande parte do pico, e algumas terras derredor, de mui áspero e negro cascalho, as quais pedras saíam ardendo como derretidas e, tanto que endureciam com o ar que lhes dava, se esmoucavam ao cair.
Da quinta feira, às horas que arrancou e despediu de raiz a fúria do primeiro fogo, não tremeu mais a terra, até o domingo à tarde, que foram quatro do mês de Julho, que tornou a dar dois mui grandes abalos, de que ainda caíram muitas casas na vila da Ribeira Grande, e algumas nas vilas de Água do Pau e Alagoa; de que a gente toda da ilha, que estava já algum tanto quieta e sossegada, se começou a alvoroçar e a perder a esperança de tão cedo se assegurarem. E logo se fez na cidade outra mui devota procissão na qual se tirou a imagem de Nossa Senhora da Concepção. Dali por diante, quis Nosso Senhor que cessaram os tremores. Mas sucedeu outra coisa de maior admiração, por nunca ser vista alguma semelhante nesta ilha, posto que, segundo agora mui claro parece, já nela por muitas vezes aconteceu o mesmo antes de ser descoberta; a qual é que de cada uma das bocas que se abriram no pico do Sapateiro, manou uma ribeira de fogo, correndo por tão estranho modo, que não havia pessoa que o pudesse compreender. Uma delas desceu pela Ribeira Seca até o mar, com um licor como de escumalho de ferro ardendo.
E o de baixo ia entufando o de cima e espraiando pela terra em largura de oiro, dez e, a lugares, doze braças, e depois de resfriar ficava bravo biscoutal de uma pedra bravia e escabrosa, assim como outros muitos que há pela ilha que, antes dela ser descoberta, correram da mesma maneira, donde se verifica que a mais dela ardeu com fogo que se acendeu do modo deste, quando arrebentaram as montanhas que chamam das Sete Cidades, ou as das Furnas, e outros muitos picos que não há dúvida senão que com outra tal violência romperam e encheram a terra de biscoutal e da pedra pomes que por ela dantes estava espalhada. A outra ribeira, das duas do fogo, encaminhou mais para o noroeste, desviada da primeira contra o lugar que chamam de Rabo de Peixe, fazendo grandes e temerosas aperturas pela terra ao redor, donde corria, convertendo em si quanto diante achava, queimando e abrasando arvoredo, silvas e vinhas por junto donde corria, ocupando a mesma largura da outra, e sumindo-se a lugares por debaixo da terra, não fazendo mais dano nas novidades por onde passava senão somente o que delas ocupava, cousa milagrosa de ver e difícil de crer, que, sendo fogo tão furioso que a nenhuma cousa perdoava, se houvesse tão benignamente com os pães, que não fazia mais que chamuscar-lhe tamalavez a palha seca pendurada da pargana da espiga, resguardando o grão, e sem mais dano ia correndo sua via.
Outras muitas particularidades aconteceram neste incêndio, que querê-las contar todas seria largo e infinito processo, porque não se pode dizer tanto, que muito mais não seja verdade. Afirma-se que se perdeu, além das terras de comedia dos gados, a terça parte das terras de pão, que ao que então parecia não dariam novidade tão cedo. E se perdeu da novidade, que aquele ano se houvera de recolher, perto de três mil moios de pão. E o Capitão Manuel da Câmara perderia de renda perto de trezentos moios de pão, em cada um ano.
A água da Ribeira Grande, depois de quinze dias que a dita serra se rompeu, tornou a correr tão basta de cinzeiro e pedra pomes, que tudo ia atupindo e por fim levava a maior parte das casas.
Depois disto acontecer, passaram trinta dias que o sol não deu sua claridade perfeita; e sempre a ilha andou toldada e coberta de grandes, obscuras e temerosas nuvens.

No tempo que governava esta ilha o ilustre Capitão Manuel da Câmara, na era de mil e quinhentos e trinta e seis, pouco mais ou menos, Pero Roiz da Câmara e sua mulher, D. Margarida de Betencor, fundaram o mosteiro de Jesus na vila da Ribeira Grande, no assento e casas onde eles mesmos moravam. E o dotaram por uma suplicação que fizeram ao Papa de dezoito moios de trigo e duzentos cruzados em cada um ano, para mulheres honradas e pobres, sem outra obrigação, sem sujeição alguma.

E, para a fundação do edifício espiritual, na mesma era, trouxeram duas religiosas de muita virtude e santidade e de não menos nobreza, filhas de um D. João de Noronha, da ilha da Madeira, professas, do convento da ordem de Santa Clara da mesma ilha e da obediência de S. Francisco, chamadas D. Joana da Cruz e D. Catarina de Jesus, as quais começaram a criação da dita casa em toda observância, como de tais servas de Deus se esperava. Mas, como elas foram principalmente tiradas de seu convento por uma letra do Sumo Pontífice, para a fundação e criação do mosteiro de Jesus da vila da Praia, da ilha Terceira, donde as trouxeram para esta ilha, foi necessário tornarem outra vez para a Praia, por certa razão de que se não puderam escusar, pela obrigação da letra. E por esta causa não estiveram no mosteiro da Ribeira Grande mais de quatro anos, pouco mais ou menos. E, como não se podia compadecer ficar gente tão nova sem quem as regesse, pediu então D. Margarida de Betencor, depois de elas idas, ao custódio frei António Taboado, que então residia com o selo nestas ilhas dos Açores, que por virtude da bula da fundação do dito convento lhe desse a madre Maria de Cristo para abadessa, a qual era filha do mosteiro de Vila Franca, do princípio de Val de Cabaços, natural da ilha da Madeira, filha de ilustres pais, Afonso Correia de Sousa e Helena Gonçalves da Costa. O custódio lha concedeu. E foi trazida para a dita casa com muita gravidade, acompanhada de muita gente honrada, de cavalo, e recebida na mesma vila da Ribeira Grande com repique de sinos e muita alegria do povo, onde sempre serviu de prelada na dita casa até a era de sessenta e três anos com muita paz e quietação e fez a muitas religiosas profissão. E foi em tanto crescimento pela fama de sua muita virtude, que havendo mosteiro na cidade da Ponta Delgada, algumas pessoas nobres levavam ali suas filhas e parentas a serem freiras no dito mosteiro, que, quando se dali foram pelo segundo terramoto, seriam trinta e uma religiosas, vinte e uma professas e dez noviças. 

A razão por que as religiosas dali se passaram para a cidade foi a do incêndio e terramoto já dito, que aconteceu nesta ilha na era de sessenta e três, a vinte e oito dias do mês de Junho da dita era, véspera de S. Pedro, havendo já cinco dias que a terra tremia muito; e tanto que véspera de S. João, estando todas as religiosas recolhidas no dormitório, tremeu tão rijo e tantas vezes, que do grande medo que tiveram lhe foi necessário abrir as portas e recolheremse às lógeas, parecendo-lhe que ali menos sentiriam os tremores, mas foi ao contrário, porque muito mais os sentiam que em cima no sobrado; pelo que se saíram das mesmas lógeas e toda a noite nunca se assentaram nem repousaram, mas até ao dia claro andaram em procissão; nem puderam entrar nas casas senão muito de corrida, agasalhando-se estes cinco dias na claustra, por lhe parecer que cada momento todos os edifícios se assolavam com os grandes abalos que por baixo do chão se sentiam, os quais indo em tanto crescimento, foram compelidas por algumas pessoas nobres da vila a se saírem para o seu pomar, por a claustra ser pequena, e caindo as casas corriam grande perigo. Estando dentro neste conflito, com muitas lágrimas e sentimento, algumas delas caíam desmaiadas pela dor que lhe causava apartar-se de sua clausura. Postas no pomar, onde lhe pareceram os tremores muito maiores, como eram, lhe parecia ser aquele o dia de sua particular conta. E não satisfeitas com a comunhão e confissão que no dia antes tinham feita, chamaram o confessor e no campo se tornaram a confessar todas, tendo por certo que aquela era sua fim, no que gastaram muita parte da noite. E por a terra onde estavam estar cavada para horta, houve quem lhe dissesse para que se tirassem dela porque mais depressa se abriria. Com este temor, se passaram para o páteo que está diante da porta da igreja, onde com muitas orações de lágrimas estiveram até depois da meia noite, passando tão temerosos e terríveis tremores, que se não podiam ter de giolhos, mas caíam em terra muitas vezes; até os sinos se tangiam então por si, de que tinham outro temor particular principalmente não se achando com elas, neste conflito, outro parente nem amigo, nem da vila, nem da cidade senão somente António de Sá de Betencor, que não sentindo trabalho nem temor da morte, de que todos fugiam, por amor de suas irmãs, parentas e conhecidas, deixou sua mulher na cidade e as foi acompanhar, de que elas receberam muita consolação. Estando ele com elas a dita noite, véspera de S. Pedro, no páteo da igreja, chamando e pedindo misericórdia ao Senhor, viram ir passeando muito devagar um homem, ao longo da capela, como que se ia a meter na igreja. António de Sá, cuidando ser um servente da casa, se ergueu para o desviar do perigo em que se ia meter e começou a querer ir para onde aquilo se mostrava, chamando muito por ele que não entrasse na igreja; mas, o que quer que era nunca mudou sua tenção, e, vendo que não quis deixar seu caminho, teve temor, parecendo-lhe que daquela maneira o queria levar após si e, em virando as costas, para se tornar aonde estava, veio um tão espantoso tremor que parecia assolar o mundo e abriu a abóbada da capela pelo meio, derribando-a até o chão, com tão grande estrondo e ruído, como semelhante coisa faria. E já a este tempo as casas e dormitório era tudo derribado. Com isto acabariam todas de crer que ali havia de ser sua sepultura. E como quem o sentia de verdade, com muita aflição de alma e copiosas lágrimas, começaram com novos clamores a invocar e pedir socorro e misericórdia a Nossa Senhora com devação estranha que então lhe não faltava.

Estando neste clamor, a maior parte delas afirmaram verem um vulto como de mulher na janela de grades do coro que deixaram fechada, muito claro e resplandescente, que toda a alumiava, como que se botava para fora da dita janela, o que todas entenderam ser sinal que se fossem daquele lugar.

Determinado por todas irem-se, se descalçaram, o que com desacordo até então não tinham feito, como do mais vestido fizeram, que só o hábito traziam. Desta maneira ordenaram sua procissão e foram pelo meio da vila, a qual estava desamparada de toda a gente que se acolhera com temor aquela noite, e encaminharam para uma ermida da Madre de Deus, que está fora da Ribeira Seca. Passando uma grota, que está antes de chegar à ermida, estando elas no mais baixo dela, deu tamanho abalo a terra que pareceu ajuntar-se a grota em cima delas e louvaram muito ao Senhor, quando se viram fora de tão grande perigo, de que lhe pareceu milagrosamente serem livres. Depois de entrarem na igreja e feita sua oração a Nossa Senhora, por ainda não estarem determinadas no que deviam de fazer, tornaram a caminhar para a vila por uns sarrados e silvas que as trataram tão mal que a muitas ia correndo o sangue dos pés. E, em querendo chegar à ponte, onde desceram direitas daqueles sarrados, houve alguns homens que entendiam o em que havia de parar o fogo, que lhe requereram não entrassem na vila, porque haviam de correr ribeiras de fogo, como correram, com o qual conselho tornaram a virar, encaminhando para o lugar de Rabo de Peixe, onde diziam não tremer a terra tanto, todas como mortas, sem poderem dar passada, pelo muito trabalho da noite passada e dos dias atrás.

Nestes dias de antes, foi um servente das ditas religiosas à cidade dar recado ao prelado como aquela noite se saíram do mosteiro e onde as deixava e como, o qual o achou pregando e todos seus parentes, a quem levava o mesmo recado, ouvindo a pregação, os quais entendendo da maneira que elas ficavam, se puseram logo todos a cavalo, sem tomarem refeição alguma, nem se lembrarem senão de quem chegaria primeiro, seguindo-os muitas pessoas nobres da cidade. Deram-se tanta pressa que dentro de uma hora chegaram ao lugar de Rabo de Peixe, onde já algumas religiosas tinham chegado e outras não, por não poderem caminhar de muito fracas e feridas nos pés, que levavam descalços. Como todas foram juntas, caminharam para a cidade, umas em carros e outras em ancas, por serem enjoadas e não poderem ir neles. Houve cavalo naquele dia que levou uma religiosa nas ancas, coisa que nunca consentiu, e era tal que seu dono muitas vezes se não podia sustentar sobre ele por ser muito bravo e malicioso e algumas vezes correu perigo de morte; mas, neste dia, se fez tão manso que até à cidade consentiu ancas, onde todos chegando acima de Santo André, perto do caminho para S. Gonçalo, as foram receber toda a gente da cidade e de outras partes da ilha, que nela estavam recolhidos, em uma muito triste e lastimosa procissão, em que iam todos os padres de S. Francisco com seis cruzes cobertas de negro e com a bandeira da Misericórdia, coisa que a todos acabou de fazer tristes, além da razão que tinham para o ser.

Desta maneira levaram as religiosas para o mosteiro da Esperança, das freiras da mesma ordem de Santa Clara, onde delas foram recebidas com muito amor e sentimento, com aquele psalmo de David: — Ad Dominum cum tribularer clamavi, etc. Depois de todas dentro, se foram em procissão ao coro de cima oferecer ao Santíssimo Sacramento que ainda tinham dentro. Feita sua oração, louvando ao Senhor que de tamanho perigo as tinha guardado, dando cada uma de giolhos obediência à abadessa, as religiosas da casa as agasalharam com muita caridade, consolando-as com grande amor, como de tais pessoas se esperava. No qual mosteiro estiveram três dias em que, nem de dia nem de noite, nem umas nem outras entravam nas casas, por causa dos grandes tremores que ainda faziam, pelo que estiveram em condição umas e outras de saírem do mosteiro. E, como as casas eram pequenas e gente muita, por mandado do prelado, que então era frei António de Alarcão, e com parecer de muitos homens honrados, que nisso o podiam dar, passaram as freiras para umas casas de Margarida Travassos Cabral, dona viúva, mulher que foi de Jorge Nunes Botelho, parenta da maior parte delas, onde estiveram um ano e meio. E, porque estavam ali gastando suas pobres rendas, sem haver ordem de se fazer mosteiro e o da Ribeira Grande não estar ainda para se poder reedificar, pois não estava a terra quieta e segura, dada esta informação ao Cardeal D. Henrique, mandou ao prelado que pusesse as religiosas cada uma em casa de seu pai ou parentes, para se ajuntar renda com que se fizesse mosteiro na mesma cidade. E, porque havia algumas religiosas que não tinham ninguém que as pudesse recolher, Barão Jácome Correia deu trinta moios de trigo para gastarem e comerem em três anos, as quais se passaram para outras casas mais pequenas, onde estiveram dois anos e cinco meses. No qual tempo, ordenavam Barão Jácome, António de Sá, Pero Castanho e outras pessoas nobres a fazer-lhe na cidade mosteiro, começando a ajuntar esmolas dadas e prometidas, com o que bem se pudera fazer a casa, para a qual António de Sá já tinha letras de Roma. E o dito Barão Jácome, afora a esmola que para o mosteiro queria dar, fazia a capela à sua custa. Mas, como Nosso Senhor tinha ordenado tornarem-se para sua casa aonde fizeram profissão, desviou isto de maneira que sem nenhuma ordem se desordenou. Neste tempo começou Diogo Vaz Carreiro o seu mosteiro sem letras nem ordem mais que de sua vontade. E, como ele havia mister mulheres para edificação dele, houve muitos pareceres que melhor se recolheriam as religiosas da Ribeira Grande nele, que haver em uma terra tantos mosteiros. Satisfeito ele desta razão, pediu ao vigairo Pero Gago, que então era da igreja Matriz da cidade, que lhe desse a igreja de Santo André, porque queria fazer o seu mosteiro naquele sítio, para recolher as religiosas da Ribeira Grande e para suas parentas; o qual Pero Gago, por serviço de Deus e por razão de ter quatro sobrinhas, filhas de uma sua irmã e outras parentas suas, lha largou, onde o dito Diogo Vaz fez o seu mosteiro e depois de feito recolheu nele a maior parte delas, com condição que se haviam de transferir à obediência do ordinário, por essa ser sua vontade, o que para elas foi muita desconsolação por não quererem senão a obediência em que professaram e muito contra sua vontade consentiram nisso pela necessidade em que se viam, havendo quatro anos que andavam por casas de seculares com muita desconsolação sua.

Recolhidas no mosteiro um dia de Nossa Senhora da Encarnação, não deixaram todavia de se sacramentarem com os religiosos de S. Francisco e ser visitadas pelos mesmos prelados. Mas contudo foi-lhe forçado dar a obediência ao ordinário. Depois, determinaram algumas tornar-se para o mosteiro da Ribeira Grande, onde professaram, se em algum tempo se tornasse a reedificar, como reedificou. E, como elas disso foram certificadas, fizeram petição ao Cardeal para se tornarem para sua casa, pois se recolheram também na de Diogo Vaz por uma provisão sua. Ele mandou ao inquisidor Marcos Teixeira se informasse se estava o recolhimento decente para se poderem agasalhar as ditas religiosas e, sabido dele estar para isso, lhes deu licença se tornassem as que quisessem. Com a licença se foram a nove dias de Maio da era de mil e quinhentos e setenta e seis , sendo do povo e cleresia da Ribeira Grande recebidas com procissão e muita devação. Daí a dois meses e vinte dias, foram seis religiosas das que ficaram na cidade e da mesma maneira as recebeu o dito povo. De modo que de vinte e uma professas, que do seu mosteiro foram, e dez noviças, não tornaram mais que treze freiras. No convento de Santo André da cidade, ficaram quatro professas da dita companhia e as mais levou o Senhor para si, que foram de sua casa por causa do incêndio na era de sessenta e três. E tornaram na de setenta e sete. Estiveram quatro anos por fora e os mais no mosteiro de Santo André da cidade, o qual deixaram já com quinze freiras, oito professas e sete noviças.

As religiosas que foram primeiro, a nove de Maio de mil e quinhentos e setenta e sete anos, são: Guiomar de Jesus, que foi muitos anos abadessa, Francisca dos Anjos, Beatriz da Madre de Deus, Maria de Santa Clara, todas quatro irmãs de António de Sá e filhas de Simão de Betancor; Ana da Concepção, filha de Pero Martins, da Ribeira Grande; e Isabel dos Santos, filha de Diogo Salgueiro; as quais, com Beatriz da Anunciação, que ficou sempre na vila da Ribeira Grande, em casa de seu pai, Henrique de Betencour de Sá, que depois foi abadessa, são sete.

As seis que foram a segunda vez, a vinte e nove de Julho da mesma era, são Isabel da Madre de Deus, filha de João de Betencor; Inês do Espírito Santo, sobrinha de frei Manuel Pereira; Isabel da Trindade; Isabel dos Arcanjos, filha de Fernão Tavares; Vitória da Cruz, filha de Fernão Corrêa; e Bartolesa dos Anjos, filha de Rui da Costa.

Depois destas, a dezassete de Abril da era de mil e quinhentos e oitenta e três, tornou para o dito mosteiro de Jesus, da vila da Ribeira Grande, a madre Maria da Trindade, que ficara no mosteiro de Santo André, da cidade de Ponta Delgada, alguns anos por abadessa.

Estão agora no dito mosteiro vinte e quatro religiosas professas e doze noviças.

No tempo que governava esta ilha o ilustre Capitão Manuel da Câmara, na era de mil e quinhentos e trinta e seis, pouco mais ou menos, Pero Roiz da Câmara e sua mulher, D. Margarida de Betencor, fundaram o mosteiro de Jesus na vila da Ribeira Grande, no assento e casas onde eles mesmos moravam. E o dotaram por uma suplicação que fizeram ao Papa de dezoito moios de trigo e duzentos cruzados em cada um ano, para mulheres honradas e pobres, sem outra obrigação, sem sujeição alguma.

E, para a fundação do edifício espiritual, na mesma era, trouxeram duas religiosas de muita virtude e santidade e de não menos nobreza, filhas de um D. João de Noronha, da ilha da Madeira, professas, do convento da ordem de Santa Clara da mesma ilha e da obediência de S. Francisco, chamadas D. Joana da Cruz e D. Catarina de Jesus, as quais começaram a criação da dita casa em toda observância, como de tais servas de Deus se esperava. Mas, como elas foram principalmente tiradas de seu convento por uma letra do Sumo Pontífice, para a fundação e criação do mosteiro de Jesus da vila da Praia, da ilha Terceira, donde as trouxeram para esta ilha, foi necessário tornarem outra vez para a Praia, por certa razão de que se não puderam escusar, pela obrigação da letra. E por esta causa não estiveram no mosteiro da Ribeira Grande mais de quatro anos, pouco mais ou menos. E, como não se podia compadecer ficar gente tão nova sem quem as regesse, pediu então D. Margarida de Betencor, depois de elas idas, ao custódio frei António Taboado, que então residia com o selo nestas ilhas dos Açores, que por virtude da bula da fundação do dito convento lhe desse a madre Maria de Cristo para abadessa, a qual era filha do mosteiro de Vila Franca, do princípio de Val de Cabaços, natural da ilha da Madeira, filha de ilustres pais, Afonso Correia de Sousa e Helena Gonçalves da Costa. O custódio lha concedeu. E foi trazida para a dita casa com muita gravidade, acompanhada de muita gente honrada, de cavalo, e recebida na mesma vila da Ribeira Grande com repique de sinos e muita alegria do povo, onde sempre serviu de prelada na dita casa até a era de sessenta e três anos com muita paz e quietação e fez a muitas religiosas profissão. E foi em tanto crescimento pela fama de sua muita virtude, que havendo mosteiro na cidade da Ponta Delgada, algumas pessoas nobres levavam ali suas filhas e parentas a serem freiras no dito mosteiro, que, quando se dali foram pelo segundo terramoto, seriam trinta e uma religiosas, vinte e uma professas e dez noviças.

A razão por que as religiosas dali se passaram para a cidade foi a do incêndio e terramoto já dito, que aconteceu nesta ilha na era de sessenta e três, a vinte e oito dias do mês de Junho da dita era, véspera de S. Pedro, havendo já cinco dias que a terra tremia muito; e tanto que véspera de S. João, estando todas as religiosas recolhidas no dormitório, tremeu tão rijo e tantas vezes, que do grande medo que tiveram lhe foi necessário abrir as portas e recolheremse às lógeas, parecendo-lhe que ali menos sentiriam os tremores, mas foi ao contrário, porque muito mais os sentiam que em cima no sobrado; pelo que se saíram das mesmas lógeas e toda a noite nunca se assentaram nem repousaram, mas até ao dia claro andaram em procissão; nem puderam entrar nas casas senão muito de corrida, agasalhando-se estes cinco dias na claustra, por lhe parecer que cada momento todos os edifícios se assolavam com os grandes abalos que por baixo do chão se sentiam, os quais indo em tanto crescimento, foram compelidas por algumas pessoas nobres da vila a se saírem para o seu pomar, por a claustra ser pequena, e caindo as casas corriam grande perigo. Estando dentro neste conflito, com muitas lágrimas e sentimento, algumas delas caíam desmaiadas pela dor que lhe causava apartar-se de sua clausura. Postas no pomar, onde lhe pareceram os tremores muito maiores, como eram, lhe parecia ser aquele o dia de sua particular conta. E não satisfeitas com a comunhão e confissão que no dia antes tinham feita, chamaram o confessor e no campo se tornaram a confessar todas, tendo por certo que aquela era sua fim, no que gastaram muita parte da noite. E por a terra onde estavam estar cavada para horta, houve quem lhe dissesse para que se tirassem dela porque mais depressa se abriria. Com este temor, se passaram para o páteo que está diante da porta da igreja, onde com muitas orações de lágrimas estiveram até depois da meia noite, passando tão temerosos e terríveis tremores, que se não podiam ter de giolhos, mas caíam em terra muitas vezes; até os sinos se tangiam então por si, de que tinham outro temor particular principalmente não se achando com elas, neste conflito, outro parente nem amigo, nem da vila, nem da cidade senão somente António de Sá de Betencor, que não sentindo trabalho nem temor da morte, de que todos fugiam, por amor de suas irmãs, parentas e conhecidas, deixou sua mulher na cidade e as foi acompanhar, de que elas receberam muita consolação. Estando ele com elas a dita noite, véspera de S. Pedro, no páteo da igreja, chamando e pedindo misericórdia ao Senhor, viram ir passeando muito devagar um homem, ao longo da capela, como que se ia a meter na igreja. António de Sá, cuidando ser um servente da casa, se ergueu para o desviar do perigo em que se ia meter e começou a querer ir para onde aquilo se mostrava, chamando muito por ele que não entrasse na igreja; mas, o que quer que era nunca mudou sua tenção, e, vendo que não quis deixar seu caminho, teve temor, parecendo-lhe que daquela maneira o queria levar após si e, em virando as costas, para se tornar aonde estava, veio um tão espantoso tremor que parecia assolar o mundo e abriu a abóbada da capela pelo meio, derribando-a até o chão, com tão grande estrondo e ruído, como semelhante coisa faria. E já a este tempo as casas e dormitório era tudo derribado. Com isto acabariam todas de crer que ali havia de ser sua sepultura. E como quem o sentia de verdade, com muita aflição de alma e copiosas lágrimas, começaram com novos clamores a invocar e pedir socorro e misericórdia a Nossa Senhora com devação estranha que então lhe não faltava.

Estando neste clamor, a maior parte delas afirmaram verem um vulto como de mulher na janela de grades do coro que deixaram fechada, muito claro e resplandescente, que toda a alumiava, como que se botava para fora da dita janela, o que todas entenderam ser sinal que se fossem daquele lugar.

Determinado por todas irem-se, se descalçaram, o que com desacordo até então não tinham feito, como do mais vestido fizeram, que só o hábito traziam. Desta maneira ordenaram sua procissão e foram pelo meio da vila, a qual estava desamparada de toda a gente que se acolhera com temor aquela noite, e encaminharam para uma ermida da Madre de Deus, que está fora da Ribeira Seca. Passando uma grota, que está antes de chegar à ermida, estando elas no mais baixo dela, deu tamanho abalo a terra que pareceu ajuntar-se a grota em cima delas e louvaram muito ao Senhor, quando se viram fora de tão grande perigo, de que lhe pareceu milagrosamente serem livres. Depois de entrarem na igreja e feita sua oração a Nossa Senhora, por ainda não estarem determinadas no que deviam de fazer, tornaram a caminhar para a vila por uns sarrados e silvas que as trataram tão mal que a muitas ia correndo o sangue dos pés. E, em querendo chegar à ponte, onde desceram direitas daqueles sarrados, houve alguns homens que entendiam o em que havia de parar o fogo, que lhe requereram não entrassem na vila, porque haviam de correr ribeiras de fogo, como correram, com o qual conselho tornaram a virar, encaminhando para o lugar de Rabo de Peixe, onde diziam não tremer a terra tanto, todas como mortas, sem poderem dar passada, pelo muito trabalho da noite passada e dos dias atrás.

Nestes dias de antes, foi um servente das ditas religiosas à cidade dar recado ao prelado como aquela noite se saíram do mosteiro e onde as deixava e como, o qual o achou pregando e todos seus parentes, a quem levava o mesmo recado, ouvindo a pregação, os quais entendendo da maneira que elas ficavam, se puseram logo todos a cavalo, sem tomarem refeição alguma, nem se lembrarem senão de quem chegaria primeiro, seguindo-os muitas pessoas nobres da cidade. Deram-se tanta pressa que dentro de uma hora chegaram ao lugar de Rabo de Peixe, onde já algumas religiosas tinham chegado e outras não, por não poderem caminhar de muito fracas e feridas nos pés, que levavam descalços. Como todas foram juntas, caminharam para a cidade, umas em carros e outras em ancas, por serem enjoadas e não poderem ir neles. Houve cavalo naquele dia que levou uma religiosa nas ancas, coisa que nunca consentiu, e era tal que seu dono muitas vezes se não podia sustentar sobre ele por ser muito bravo e malicioso e algumas vezes correu perigo de morte; mas, neste dia, se fez tão manso que até à cidade consentiu ancas, onde todos chegando acima de Santo André, perto do caminho para S. Gonçalo, as foram receber toda a gente da cidade e de outras partes da ilha, que nela estavam recolhidos, em uma muito triste e lastimosa procissão, em que iam todos os padres de S. Francisco com seis cruzes cobertas de negro e com a bandeira da Misericórdia, coisa que a todos acabou de fazer tristes, além da razão que tinham para o ser.

Desta maneira levaram as religiosas para o mosteiro da Esperança, das freiras da mesma ordem de Santa Clara, onde delas foram recebidas com muito amor e sentimento, com aquele psalmo de David: — Ad Dominum cum tribularer clamavi, etc. Depois de todas dentro, se foram em procissão ao coro de cima oferecer ao Santíssimo Sacramento que ainda tinham dentro. Feita sua oração, louvando ao Senhor que de tamanho perigo as tinha guardado, dando cada uma de giolhos obediência à abadessa, as religiosas da casa as agasalharam com muita caridade, consolando-as com grande amor, como de tais pessoas se esperava. No qual mosteiro estiveram três dias em que, nem de dia nem de noite, nem umas nem outras entravam nas casas, por causa dos grandes tremores que ainda faziam, pelo que estiveram em condição umas e outras de saírem do mosteiro. E, como as casas eram pequenas e gente muita, por mandado do prelado, que então era frei António de Alarcão, e com parecer de muitos homens honrados, que nisso o podiam dar, passaram as freiras para umas casas de Margarida Travassos Cabral, dona viúva, mulher que foi de Jorge Nunes Botelho, parenta da maior parte delas, onde estiveram um ano e meio. E, porque estavam ali gastando suas pobres rendas, sem haver ordem de se fazer mosteiro e o da Ribeira Grande não estar ainda para se poder reedificar, pois não estava a terra quieta e segura, dada esta informação ao Cardeal D. Henrique, mandou ao prelado que pusesse as religiosas cada uma em casa de seu pai ou parentes, para se ajuntar renda com que se fizesse mosteiro na mesma cidade. E, porque havia algumas religiosas que não tinham ninguém que as pudesse recolher, Barão Jácome Correia deu trinta moios de trigo para gastarem e comerem em três anos, as quais se passaram para outras casas mais pequenas, onde estiveram dois anos e cinco meses. No qual tempo, ordenavam Barão Jácome, António de Sá, Pero Castanho e outras pessoas nobres a fazer-lhe na cidade mosteiro, começando a ajuntar esmolas dadas e prometidas, com o que bem se pudera fazer a casa, para a qual António de Sá já tinha letras de Roma. E o dito Barão Jácome, afora a esmola que para o mosteiro queria dar, fazia a capela à sua custa. Mas, como Nosso Senhor tinha ordenado tornarem-se para sua casa aonde fizeram profissão, desviou isto de maneira que sem nenhuma ordem se desordenou. Neste tempo começou Diogo Vaz Carreiro o seu mosteiro sem letras nem ordem mais que de sua vontade. E, como ele havia mister mulheres para edificação dele, houve muitos pareceres que melhor se recolheriam as religiosas da Ribeira Grande nele, que haver em uma terra tantos mosteiros. Satisfeito ele desta razão, pediu ao vigairo Pero Gago, que então era da igreja Matriz da cidade, que lhe desse a igreja de Santo André, porque queria fazer o seu mosteiro naquele sítio, para recolher as religiosas da Ribeira Grande e para suas parentas; o qual Pero Gago, por serviço de Deus e por razão de ter quatro sobrinhas, filhas de uma sua irmã e outras parentas suas, lha largou, onde o dito Diogo Vaz fez o seu mosteiro e depois de feito recolheu nele a maior parte delas, com condição que se haviam de transferir à obediência do ordinário, por essa ser sua vontade, o que para elas foi muita desconsolação por não quererem senão a obediência em que professaram e muito contra sua vontade consentiram nisso pela necessidade em que se viam, havendo quatro anos que andavam por casas de seculares com muita desconsolação sua.

Recolhidas no mosteiro um dia de Nossa Senhora da Encarnação, não deixaram todavia de se sacramentarem com os religiosos de S. Francisco e ser visitadas pelos mesmos prelados. Mas contudo foi-lhe forçado dar a obediência ao ordinário. Depois, determinaram algumas tornar-se para o mosteiro da Ribeira Grande, onde professaram, se em algum tempo se tornasse a reedificar, como reedificou. E, como elas disso foram certificadas, fizeram petição ao Cardeal para se tornarem para sua casa, pois se recolheram também na de Diogo Vaz por uma provisão sua. Ele mandou ao inquisidor Marcos Teixeira se informasse se estava o recolhimento decente para se poderem agasalhar as ditas religiosas e, sabido dele estar para isso, lhes deu licença se tornassem as que quisessem. Com a licença se foram a nove dias de Maio da era de mil e quinhentos e setenta e seis , sendo do povo e cleresia da Ribeira Grande recebidas com procissão e muita devação. Daí a dois meses e vinte dias, foram seis religiosas das que ficaram na cidade e da mesma maneira as recebeu o dito povo. De modo que de vinte e uma professas, que do seu mosteiro foram, e dez noviças, não tornaram mais que treze freiras. No convento de Santo André da cidade, ficaram quatro professas da dita companhia e as mais levou o Senhor para si, que foram de sua casa por causa do incêndio na era de sessenta e três. E tornaram na de setenta e sete. Estiveram quatro anos por fora e os mais no mosteiro de Santo André da cidade, o qual deixaram já com quinze freiras, oito professas e sete noviças.

As religiosas que foram primeiro, a nove de Maio de mil e quinhentos e setenta e sete anos, são: Guiomar de Jesus, que foi muitos anos abadessa, Francisca dos Anjos, Beatriz da Madre de Deus, Maria de Santa Clara, todas quatro irmãs de António de Sá e filhas de Simão de Betancor; Ana da Concepção, filha de Pero Martins, da Ribeira Grande; e Isabel dos Santos, filha de Diogo Salgueiro; as quais, com Beatriz da Anunciação, que ficou sempre na vila da Ribeira Grande, em casa de seu pai, Henrique de Betencour de Sá, que depois foi abadessa, são sete.

As seis que foram a segunda vez, a vinte e nove de Julho da mesma era, são Isabel da Madre de Deus, filha de João de Betencor; Inês do Espírito Santo, sobrinha de frei Manuel Pereira; Isabel da Trindade; Isabel dos Arcanjos, filha de Fernão Tavares; Vitória da Cruz, filha de Fernão Corrêa; e Bartolesa dos Anjos, filha de Rui da Costa.

Depois destas, a dezassete de Abril da era de mil e quinhentos e oitenta e três, tornou para o dito mosteiro de Jesus, da vila da Ribeira Grande, a madre Maria da Trindade, que ficara no mosteiro de Santo André, da cidade de Ponta Delgada, alguns anos por abadessa.

Estão agora no dito mosteiro vinte e quatro religiosas professas e doze noviças.

Não se podem perfeitamente contar em todos os terramotos estranhos e nunca vistos que aconteceram nesta ilha de S. Miguel na era de sessenta e três, atrás dita, havendo passado muitos, cada ano, por serem próprios e coisa natural a todas as terras marítimas, mormente a ilhas que estão cercadas de mar. E tampouco se pode dizer o incêndio que, com os mesmos terramotos, se seguiu nesta ilha de S. Miguel, nas partes já ditas e na vila da Ribeira Grande, de que agora direi, porque universalmente foi uma opinião de morte à ilha; pelas terribilidades que se viram, persuadiram-se todos que haviam de morrer e que tudo se acabava, porque, com menos mostras, havia quarenta e quatro anos, no de vinte e dois, atrás dito, que no mês de Octubro, na noite de S. Hilarião, abade, com um terramoto, arrebentou um monte sobre Vila Franca do Campo, principal povoação desta ilha, o qual, com a veemência do espírito e exalação que saiu, súbita e juntamente, pelos poros da terra, sem abrir boca alguma desde a concavidade onde estava, arrevessou, ou, por melhor dizer, sacudiu a faldra do dito monte tanto lodo, feito polme, que quase em um momento alagou a dita povoação, sendo a melhor, mais fresca e mais deleitosa de todas as ilhas, em que morreu toda a gente sem escaparem mais que os que atrás tenho dito. Naquele primeiro terramoto, o terror foi súbito e teve o medo subsequente e não precedente, como este segundo. No primeiro, sem Deus ameaçar, castigou e morreram quase todos; neste segundo, ameaçou a todos e não morreu nenhum. Mas, foi tão terríbel medo da ameaça, que o centro da ilha ardia, a terra tremia, o mar se embalançava e o ar roncava com o rumor desvairado do estrondo das pedras que a boca aberta lançava para riba, como furioso trabuco. Os ânimos dos homens e a palavra se lhe encolhia de horror; tudo lhe era uma semelhança do juízo final e assim o julgavam alguns doctos e quase todo o vulgo ignorante.
O medo foi comum em toda a ilha, como foram os terramotos e espectáculo de fogo que ameaçava a todos. Mas, particularmente em cada povoação, se sentiram e viram novidades que nas outras não passaram; e assim se não pode contar tudo.

No ano sobredito de sessenta e três, na vila e termo da Ribeira Grande, uma sexta-feira, vinte e cinco do mês de Junho, no princípio da noite, pouco mais de uma hora, se começaram a sentir tremores pequenos e amiudados e não fizeram tanto espanto pelo costume que têm de os sentirem quase todos os anos. Mas, na perseverança depois o povo, também confuso e com sobejo espanto, se alterou, mormente lembrando-lhe o terramoto e dilúvio de Vila Franca. Chamaram por Deus e acolheram-se aos templos a ordenar procissões, as quais frequentaram muitos dias, não ousando confiar-se das próprias casas, porque toda a mesma noite e o sábado seguinte não cessaram os terramotos, antes iam em crescimento, assim na frequência como na quantidade, e o que mais era de temer que, ainda que os terramotos tinham intervalo nos grandes abalos que faziam, a terra não deixava de cernir e tremer.
Chegada a tarde da segunda feira, que era véspera de S. Pedro, vinte e oito do mesmo mês, com duas ou três horas de sol, eram os terramotos tão grandes, crescendo cada vez mais, que se foram os sacerdotes à igreja Matriz e, fazendo tanger os sinos, se ajuntou todo o povo, sem ficar pessoa alguma nas casas e começaram a fazer uma solene procissão que, saindo pelo adro com grande pranto e medo de todos, se iam abraçando uns a outros, pedindo perdão de ódios de muitos anos. E assim chegaram ao mosteiro de Jesus onde não acharam as freiras dentro, senão na segunda cerca, todas trespassadas de medo. Ali se começaram ouvir grandes urros e vozes a modo de trovões, de tal maneira e tão temerosos que quase todos pasmavam de espanto e não parecia senão que o mundo se acabava. Tornando a procissão, se iam as mulheres com grandes lágrimas abraçando umas com as outras, e os homens o mesmo, uns com outros, pedindo perdão como dantes.
Passando a procissão pela ermida de Nossa Senhora da Concepção e chegando à de S.
Sebastião, para consolar e animar o povo, pregou o doutor Francisco Bicudo, assentado em uma cadeira sustentada por dois homens, para não cair, por causa dos grandes abalos que com o tremor a terra dava; e, entre outras coisas, disse que se não espantassem de tremer a terra, pois era coisa que muitas vezes acontecia; que aquela noite passassem fora das casas, pelo perigo que havia estando dentro nelas; amoestando a todos que se confessassem e arrependessem de seus pecados, para assim aplacar melhor a ira de Deus.
Acabada a procissão, porque os terramotos iam crescendo, o povo não guardando ordem, nem sossego, se derramou por uma e outra parte e em magotes ordenaram suas procissões com cruzes que tomavam das ermidas, e sem mais ora pro nobis davam brados e gritos, levantando as palmas a Deus, somente dizendo: — Senhor Deus, Misericórdia, Jesus, Madre de Deus.
Se aquele dia atrás foi assás triste, a noite o foi muito mais, na qual, pelo perigo, tanto se fugia de entrarem nos templos, como dantes nas casas, ou mais. Logo do princípio da noite em diante, se sentiu diferença nos terramotos que, além de serem muito bravos, por baixo da terra sentiam correr coisa de muita quantidade e com desacostumados estrondos e veemência, porque parecia correr pelas concavidades da terra toda a artilharia do mundo e, como os grossos pelouros de bombardas vão ondeando pelo ar, assim se sentiam outros muito maiores ir ondeando por baixo da terra, do mar contra a serra da mesma vila. E o que se sentia claro era fazer a terra seus movimentos do sul para o norte e do norte para o sul, tão grandes e com tanta ligeireza que parecia uma leve barca sobre as águas que com mãos ligeiras se move e torna a recolher, tais eram os balanços que dava. Quando parecia que queria repousar fazia movimentos para os lados e, por serem contrários, faziam arruinar todas as casas, como de feito até a manhã se assolaram quase todas, e as que ficaram em pé, tão abertas que não era seguro entrar nem habitar nelas. Guardou Deus a igreja Matriz, que é de Nossa Senhora, mas ficou toda aberta. E a torre dos sinos, forte e de caracol, também abriu e ficou tão desbaratada que para se tornar a fazer é necessário derribar grande parte dela.
Nem podia ser menos, pois os sinos que estavam nela por si davam repique aquela noite, tal era o movimento que padeciam.
Estando a cousa nestes termos, se sentiram grandes estampidos na serra e foram tais que por sua grandeza privaram o sentido a todos de não poderem discernir onde podia ser e julgavam Vila Franca ser subvertida, como já da outra vez fora. A este tempo estava muita gente da vila nos campos, ao redor dela, e outra mais quantidade alojada em magotes nos biscoutaes de Rabo de Peixe, seu termo.
Sendo já meia noite, se viu na serra de Vulcão uma nuvem mui espessa e negra, tão alta que parecia comunicar com o céu, e assim nos básis e pé dela, como no mais alto, e por toda se viram tantos cometas e com tantos e tão ligeiros discursos, que logo na primeira vista, assim os populares, como os que alguma coisa entendiam, cuidaram ser fogo do céu, para castigo universal de todos. Não vejo cousa que com isto se compare, dado que seja mui pequena a respeito do que se viu, senão os disbarates que os moços fazem de pólvora com papel complicado de muitas dobras, que com lhe darem fogo dão muitos estoiros e mui ligeiros saltos, mostrando muitos foguetes. Assim eram os que pareciam na nuvem, mas mais perspícuos e com tantos dilates que bem pareciam forjados de mão muito forte, nem se podem pintar aos ouvidos com palavras, porque foram muito dificultosos aos olhos de quem os viu.
Saiu esta nuvem da serra contra o vento, que era nor-noroeste, e tão súbita por sua ligeireza que ninguém a viu sair, mas daí a pouco espaço se entendeu claro que da serra saíra, pela fusilada e raios de fogo que viram sair do pé da nuvem e por muitas torres de fogo que viram levantar após isso; pelo que caíram logo na conta que a serra havia arrebentado e que os espíritos e exalações e fogo lhe faziam a guerra e tinham achado saída e evasão por ali. Em alguma maneira se confortou algum povo avisado disto. Mas assim como, com a força da matéria que subia, se ia ampliando a abertura, assim o fogo se mostrava mais e com maior estrondo e artilharia, de que nasceram novos tremores. Ajudava a isto que, quando havia de disparar debaixo algum grande penedo ou matéria muito grossa e não podia caber facilmente pelo orifício e abertura, padecia o fogo e espíritos repulsão atrás para a vila e logo sentiam, após o estrondo, tremer e mugir a terra, e por baixo grande soltura e corrida, como de coisas que se arrancavam e faziam força para sair. E, sem dúvida, ainda que aquele fogo na serra se via por toda a ilha e com o mesmo espanto, e aquela nuvem, e os foguetes e fusilada que faziam, ameaçava a todos e por sua altura parecia que estava sobre todos, todavia o mal carregou para a vila da Ribeira Grande e nela sentiu mais. A prova disto é que, estando Vila Franca bem perto da mesma serra e padecendo lá iguais medos, não se sentiram nela os estrondos por baixo da terra, que digo, nem se arruinou alguma casa, ficando a vila da Ribeira Grande quase de todo assolada.
Também, demorando a ilha Terceira desta ao noroeste trinta léguas, tremeu lá a terra então notavelmente, o que foi porque as cavernas e comissuras da terra, em que estava a matéria em que acendeu o fogo, carregava para a parte do norte e, assim como se foi despejando a matéria do fogo, assim afloxaram os terramotos algum tanto, dado que grandes e muito frequentes, que não parecia senão que o céu chovia fogo, água, ferro, sangue e morte. Com o terror dos trovões, como de artilharia, e com a fumaça e o fusilar do fogo e mistura da grita da gente, parecia um vivo inferno, sem uns e outros se poderem ouvir, por tudo ser uma confusão e obscuridão de fumaça, porque o fogo arrebentado, e subido o fumo e nuvem começou a fazer uma obra que dava semelhança de inferno. E de quando em quando, entre aquele grosso fumo, apareciam uns relâmpagos envoltos com a trovoada que procedia deles, tão temerosa aos ouvidos e espantosa à vista, que assombrava a gente; o que não parecia tudo aquilo sombra nem sinais do dia do juízo, senão o mesmo juízo presente, como muitos, até alguns letrados, creram e cuidaram. Representando pois tanto o dia do juízo, fusilando fogo, vaporando fumo e atroando os ares com estas cousas e com os enxames de árvores que andavam nos ares, andava a gente sem cor e sem sentido, como morta de medo. Tudo era uma confusão na vista e nos ouvidos de todos e se a terra com grandes abalos tremia, maiores tremores e abalos havia nos corações da gente. Finalmente, tudo era um grito e nas procissões pedir a Deus misericórdia, sem uns dos outros se acordarem, nem pai de filho, nem casado de sua mulher, nem mulher do marido, nem filhas de suas mães. Tão derramadas andavam as ovelhas sem pastor, que muitas nobres, formosas e virtuosas moças se trasmontaram para longe e algumas foram ter à cidade, indo em tal tempo mais seguras sós, que em outros acompanhadas. Tudo era enfim uma obscuridão e fumaça de morte, pelo qual a gente antes que fosse manhã e por verem a vila destruída, a despovoaram com pranto assás; o que as religiosas de Santa Clara da mesma maneira fizeram, como adiante direi, indo-se, como gado sem pastor, caminho da cidade, deixando seu mosteiro posto por terra, que para todos foi grande mágoa. E conquanto a noite foi de sobejíssima aflição e de tanto desatino que cada um perdia o cuidado de si sem conselho, quanto mais de outrem. E houve pessoas que falavam desatinos, como doidos; contudo, sabendo que as religiosas eram idas daquela maneira, choraram seu mal por maior.
Esta serra de Bulcão é a mais alta e está no meio de toda a ilha, pelo que dela se notam duas coisas: uma, que quis Deus pôr ali aquele espectáculo de fogo com que ameaçou a todos, para nossa emenda, porque em outra parte não pudera ser tão manifesto; a outra, que quem lhe pôs nome Bulcão, que quer dizer fogo, ou deus do fogo, na imposição de tal nome pronosticou o que havia de ser.
Também se podem notar outras muitas coisas e dar muitas graças a Nosso Senhor que, irando-se dos pecadores, juntamente há misericórdia deles. Uma é que, saindo a matéria da abertura com tanta cópia que cobriu a maior parte da ilha, assim de cinza como de pedra pomes e penedos, que a veemência do fogo lançava tão grandes como uma casa, uma e duas léguas apartados da boca por que saíram, com que pereceu muito gado e os matos ficaram cobertos e destruídos, todavia não pereceu alguma criatura humana.
Na mesma noite de S. Pedro, se viu levantado no pé da nuvem um globo de fogo que parecia na vila da Ribeira Grande, tão grande como a maior mó que há de lagar de azeite, e, levantado tanto como duas lanças, o viram tornar para baixo; parece que, por ser grande peso, a força não pôde mais com ele e por sem dúvida se tem que era calhau de desproporcionada grandeza. A cinza que saiu, por ser mais leve, se levantou no ar, da qual como fumo se fazia aquela nuvem que disse, e depois se espalhou e encheu todas as terras que estavam derredor, duas e três léguas. Mas, a pedra pomes, por ser de mor quantidade, com a força caiu pela vila do Nordeste, que estava nove léguas e lá encheu todas as terras e as da parte do norte, de maneira que por alguns anos ficaram estériles, nem sofriam cultura, até que foram limpas a poder de homens com enxadas e águas. Perderam-se também todas as searas daquela parte de Vila Franca, que naquele tempo estavam ricas e tão grandes que se não podiam ver mais formosas, louras e chegadas à foice. Cobriram-se também as terras, matos e comedias de gados, e do gado pereceu muito, e o que escapava, bramando, se vinha acolher à gente, por mais bravos que fossem, tão domésticos como cavalos.
Aquela noite, da mesma parte se viram mortos, assim da pedra pomes, que não entendiam donde vinha, cuidando que caía do céu, como de uma cinza e fumo que os afogava, e lhes fez o dia seguinte tanta obscuridade que podemos dizer que tiveram as trevas palpáveis de Egipto.
Também caiu muito cinzeiro na vila da Ribeira Grande e houve trevas de dia, mas não duraram muito por causa do vento que as desviou. Subiu tão alta aquela nuvem de cinza e fumo, que caiu além de Braga parte dela. A pedra pomes foi em tanta quantidade que igualou a serra, sendo muito fragosa e de grandes quebradas. Muita caiu no mar, e alguns homens, vindos de Portugal, quarenta léguas desta ilha, acharam restingas dela tão grandes que lhe não podiam ver cabo em muitas horas, e tão grossa e alta que tinha oito palmos em montes, como areias gordas, onde se tiveram por perdidos.
Ao dia de S. Pedro, amanheceram na dita vila e pelos montes muitas casas caídas e as paredes dos caminhos até o chão, de uma banda e da outra, sem ter a gente por onde passar.
Da igreja Matriz, caiu a cruz de pedra que estava no frontespício, que com os grandes tremores parecia que punha a ponta no chão. Caiu a ermida da Madre de Deus, sem ficar pedra sobre pedra, e toda a igreja de S. Pedro da Ribeira Seca , termo da dita vila, com quantas casas nele havia, sem deixar de tremer todo aquele dia e o fogo da serra fazer grande terramoto, e a nuvem no ar grande espanto, alumiando e dando claridade com seus raios e fusis, sem deixar de dar espantosos urros, com grandes e insofríveis fedores que saíam daquele fogo alevantado na serra, caindo infinita cinza e enxofre, que todo o mato e picos cobriu de tal sorte que não apareciam paus, nem rama. Também se alevantou muito vento que trazia nos ares aquela cinza, com que cobriu toda a vila, ruas, praça e telhados. E então se acabou de despejar a dita vila, sem ficar pessoa nela, porque todos fugiram para diversas partes, sem esperança de nunca mais a tornar a povoar. Era o vento sudoeste, que foi deitando a cinza e pedra pomes do mar até à serra, desde o lugar do Porto Formoso até à Lomba de S. Pedro, em altura de cinco, seis e mais palmos, e acravando todas as serras, pelo que os moradores daquelas cinco freguesias, Achada Grande, Achadinha, Fenais da Maia, Maia e Porto Formoso, que poderiam ser mil e quinhentos fogos e duas mil almas, vendo as casas acravadas, as searas perdidas, os gados mortos e perdido quanto tinham , deixaram seus assentos e terras, fugindo para a cidade da Ponta Delgada.
A quinta-feira, primeiro dia do mês de Julho do dito ano, depois de véspera, se alevantaram muito grandes terramotos e fusiladas, com grandes arruídos, e desceram pela ribeira do Salto abaixo contra o mar. Então tiveram todos para si que eram perdidos, por lhe parecer que viam os diabos naquelas nuvens, botando muitos fusis de fogo. Um Afonso Luís, homem velho, que morava na Ribeirinha, termo da Ribeira Grande, e um moço, filho de Sebastião Álvares, morador na dita vila, afirmaram que viram ir mais de quarenta mil demónios nas nuvens que iam muito baixas, vestidos de muitas cores, atirando com fogo uns aos outros, caminhando contra o mar, e que detrás deles ia um homem, grande de corpo, com vestiduras brancas, que levava na mão uns azorragues com que lhe ia dando, levando-os diante de si até os deitar no mar, com aqueles grandes arruídos e alaridos que iam fazendo, e, como chegaram ao mar, logo o fogo na serra deixou de dar os acostumados brados e a terra teve algum pequeno descanso, sem tremer tanto como dantes; pelo que creu o povo que aquele homem vestido de branco seria o Arcanjo S. Miguel, padroeiro da ilha, que em favor dela açoitaria e deitaria fora os ministros do inferno. Mas, o que mais com verdade se pode crer, é que começando-se a desfazer a grande e temerosa nuvem que a todos assombrava, na parte dela que o vento levava para o mar ia infinidade de árvores chamuscadas, que a força do fogo tinha alevantado do mato e deitado pela boca fora do lugar donde arrebentou, cujas raízes pareciam cabeças com cabelos e os troncos chamuscados, corpos negros e as ramas, pés e braços, sendo árvores e não demónios, como depois se acharam no mar infinidade delas. Mas a gente, com aquele falso entendimento, algum tanto descansou e perdeu o medo.
A sexta feira, dois de Julho, dia da Visitação de Santa Isabel, se tornaram alguns já mais quietos à vila da Ribeira Grande, e fizeram a procissão solene, costumada cada ano. Mas, sendo já perto da noite, se tornaram a alvoroçar com medo, por um novo fogo que, com grandes terramotos e labaredas, se alevantou em um pico junto da dita vila, como agora direi.

A serra do Bulcão, onde ardia o fogo que tenho contado, estava quase tão perto da Ribeira Grande como da Vila Franca do Campo, e todas águas vertentes para a banda do norte, cujo cinzeiro e pedra pomes lhe cobriu, secou a atupiu as ribeiras e fontes, sem lhe ficar água que beber, e a grande, dos Moinhos, que corta a vila pelo meio, atupindo as moendas, o que deu grão trabalho de sede e principalmente de fome, não somente à mesma vila, mas também à cidade de Ponta Delgada, que outras moendas não tinha, sem lhe cair a pedra pomes, nem cinza grossa, no povoado nem terras feitas, senão muito pouca, que cobriu as ruas e telhados; e nenhum dano fez mais que, vendo um dia um Herculiano Cabral, sacerdote, beneficiado do lugar de Rabo de Peixe, seu termo, ir da dita serra um nevoeiro dela ao longo do chão sobre a dita vila, cuidou que corria terra sobre ela e que a subvertera, e assim o parecia. E levando esta nova à cidade houve nela grande alvoroço, tristeza e pranto em todos e muitos mais naqueles que tinham lá seus parentes e amigos, tendo para si que eram todos mortos. Mas não recebeu dano a dita vila, nem com esta nuvem de cinza, nem com a que sobre ela choveu miúda como peneirada, porque ficava ao noroeste do dito fogo e monte abrasado, e daí pela maior parte foi o vento, todos aqueles dias tristes.
Na dita vila da Ribeira Grande, apartado algum pouco dela para a banda do sudoeste, está um pico, chamado do Sapateiro, por em outro tempo ser dum oficial deste ofício, o qual pico, por ter junto de si e por baixo no seu centro os mesmos materiais de enxofre, caparosa, salitre, rosalgar e pedra hume, como ali perto dão mostras as Caldeiras, que acima da vila fervem, e os fumos que de outras furnas há muitos anos saem e das terras que por ali vão ardendo, pelo que se chamam os Fumos, e porventura também por se comunicar algum vieiro do outro pico das Berlengas por algumas cavernas da terra, com este pico do Sapateiro, ardendo o das Berlengas primeiro e tremendo a terra com aqueles contínuos abalos e horrendos tremores que tenho dito, foi forçado que este pico do Sapateiro, seu vizinho, se acendesse e alterasse e buscando também violentamente porta e saída para resfolegar com a brava guerra que dentro em si tinha e o outro lhe incitava, começou a fazer maiores tremores e estrondos que todos os passados, que toda a ilha abalavam, mas na dita vila, como mais vizinha, mais se sentiam. A dita sexta feira, dia da Visitação de Santa Isabel, dois de Julho da dita era, em que começou a abrir o dito pico do Sapateiro, fazendo em si grandes gaivas e causando maiores medos, abrindo no seu cume uma furiosa boca por onde com grandíssimas e altíssimas labaredas de fogo botava para o ar muitas pedras mui altas, algumas tão grandes como meias casas, outras tão compridas e quadrangulares como grandes caixas, outras como trouxas de muita roupa, outras como lavradas para cantaria de algum edifício, e outras, sem medida nem feição, ásperas e toscas. E todas moles, abrasadas em vivo fogo, que depois de arrefecidas se tornavam de várias cores. Mas não saíram dali nenhumas pedras pomes grandes nem pequenas. E, como este fogo se abriu, o primeiro começou a abrandar; foram as chamas em crescimento tão grande e saíam com tanto soído, tão altas, que bem parecia a veemência do esprito que as espertava.
Ardendo assim na mesma fúria, parecendo primeiro grandes faxas e línguas de fogo, o domingo seguinte à tarde deitou pela boca e abertura do cume, com estrépito terríbel, uma grandíssima bola abrasada e começou a correr de cima uma grande ribeira de fogo em uma matéria fundida que parecia vidro ou alcatrão derretido. E correu para o nascente por uma grota abaixo, que estava junto do mesmo pico, em grande cópia como um rio, até chegar ao mar, indo muito devagar e, por onde quer que passava, queimava e destruía quanto achava, assim de silvas, matos, árvores mansas e bravas, canaviais e pomares que nela estavam, como qualquer outra matéria que achava disposta, e assim as lambia como estopas, lançando de si grandes fedores de enxofre. E nisto se deve louvar muito Deus, Nosso Senhor, que como misericordioso Pai se lembra dos pecadores, que não deixando este fogo coisa seca nem verde que não gastasse em um momento, por ser grande e como um ferro abrasado. Todavia, chegando aos pães que estavam mais duros e secos e mais dispostos para a fogueira que todo o mais, não os queimava e, se algum cobria, depois se achou inteiro, fresco e são; pelo que está manifesto suspender-lhe Deus a virtude nos pães. E, como ia pela grota abaixo ardendo, assim se ia por detrás coalhando e fazendo em pedra de biscouto, em altura da grota que era grande, até ficar rasa com as terras de pão. Alguns homens, vendo correr o dito fogo, chegando-se com sachos e enxadas, tiravam daquele licor para fora, o qual resfriando-se logo se tornava pedra de feição e parecer de escumalho de ferreiro. E, do dia que saiu do pico, e entrou na grota, por três dias e três noites, até que chegou ao mar, uma quarta feira, sete do dito mês de Julho, onde encontrando sua seca quentura com a água fria e húmida, fazia tão grandes estrondos, deitando aqueles fedores de enxofre, que causava maior espanto e medo.
E, tomando posse do mar um curto e largo espaço, ficou ali uma larga quantidade sobre suas águas, feita um grande e espaçoso cais de áspera pedra e não lisa penedia, e, como ia resfriando a ribeira, começaram a passar todos por cima, ainda que o polme derretido por baixo corria.
Logo outro dia, não se sabe se foi o seguinte, se quantos eram adiante, andando o fogo no dito pico fazendo seus acostumados estrondos, ao pé dele tornou a fazer outra boca do mesmo modo que a primeira, com grandes labaredas e estrondos. E começou a correr para o norte, atravessando o caminho que vai da vila da Ribeira Grande para a da Alagoa; dali correu pelo sarrado do doutor Francisco Bicudo. E antes de chegar ao atalho que vai da dita vila da Ribeira Grande para a cidade da Ponta Delgada, ali se sumiu por debaixo da terra, deixando feito um pequeno algar e boca, e espraiada alguma pedra ao redor; logo mais adiante, para o pico da Madeira, pela terra que trazia um Jorge Vaz, tornou a arrebentar e botou fora da superfície, cobrindo quantidade de dois alqueires de terra, e então se tornou a meter debaixo da terra, atravessando o atalho que disse, e, correndo por baixo, a terra se abaixou e gretou notavelmente por onde o fogo ia, que foi grande espanto para todos. Dali foi sair sobre a terra, a cabo de espaço de três tiros de besta, espraiando ali e ocupando espaço de quarenta alqueires de terra aos Nateiros, que foram de Gonçalo Vaz Delgado, correndo ao longo do pico do Potasinho e do biscouto que vai para casa de Fernão de Azevedo, onde cobriu algum trigo do filho de Gonçalo Anes Piquete e do filho de Afonso Lopes. E chegando mais abaixo à vinha do Meleiro, se deteve sem correr mais pelas terras de pão, antes minou para dentro do biscoutal e por baixo dele ia comendo a terra e fazendo grande terramoto para contra o lugar de Rabo de Peixe, abrindo diante e gretando o biscouto, fazendo grotas até a terra de pão que trazia João Roiz, do dito lugar de Rabo de Peixe. Ambas estas ribeiras, resfriadas com o ar, se tornaram logo biscoutos ou biscoutaes de ásperas pedras, como outros muitos em muitas partes desta ilha semelhantes, e da mesma maneira já corridos muitos anos atrás, por muitas vezes, antes que esta ilha fosse habitada; os quais ninguém entendia, nem acabou de entender a origem e causa deles, senão depois que viram correr estas ribeiras de pedra derretida, que descobriram o segredo desta filosofia porque dantes havia diversas opiniões deles, como irei dizendo.
Há-se de notar que nesta ilha há muito enxofre, como se vê claramente em muitas partes dela, principalmente nas Furnas, onde se acha infinidade dele que, por mais que tirem e levem daquele lugar onde o acham, torna a crescer outro de novo e nunca falta. Também na Ladeira da Velha, no meio dela, onde se chama a Selada, por fazer ali a terra como maneira de sela, dali para a serra um bom espaço, se acha muito enxofre, onde João de Torres o mandou fazer e apurar algumas vezes. E nas Furnas se acha caparosa e se fez pedra hume, como na vila da Ribeira Grande, e em muitas partes da ilha se acham pedreiras dela, que também é mineral e isca de fogo. Há também em muitas partes da mesma ilha, principalmente na Ribeirinha, termo da vila da Ribeira Grande, do caminho para a serra, muita marquezita, pelo que se conjectura que também deve de haver outros minerais que sejam cevo do fogo, como é rosalgar e outros, pois o fedor de alguns mata cães, pássaros e gado, que se chegam aos lugares onde os tais materiais estão, como se vê claro no campo dos fedores das Furnas e junto das Caldeiras da vila da Ribeira Grande, de que já tenho contado. Também parece que deve de haver minas de prata, mas mui profundas e cobertas de pedra que correu e de cinza e de pedra pomes, que caiu por cima, ou, se não houver prata, pode ser que será por não penetrarem os raios do sol ou da lua a terra, por serem oblíquos e não tão rectos e ponteiros que tenham força para criar minas de ouro ou prata nas entranhas desta terra, que é em extremo húmida, pelo que tudo nela cria bolor, mofo, e nas armas muita ferrugem.
Também se há-de notar outro pressuposto, que estes vieiros de enxofre e salitre e caparosa e outros materiais que estão debaixo da terra, vindo-se lá a acender ou por crescer a matéria deles, ou com o movimento de espíritos e exalações, como o natural do fogo é subir para cima para sua esfera, buscando por onde sair, vai principalmente buscar o mais alto lugar que são os montes, ou porventura por achar neles maiores meatos, cavidades e cavernas, e por ali respira. E por isso quase todos os montes e picos desta ilha estão arrebentados, que pelos anos atrás, antes de ela ser povoada, ora arrebentava um, ora outro, e deitaram de si uns terra, outros cinza, outros pedra pomes, outros pedra derretida feita polme, do parecer e cor de mel de canas, e resfriando-se tornava-se pedra de biscouto, que são os biscoutaes e pedras que agora vemos nesta ilha claramente, que em outro tempo correram ribeiras deste polme, dos quais biscoutos muitos estão agora prantados de vinhas.
Outros terramotos aconteceram, como o de Vila Franca, onde não correu biscouto, senão terra, e parece que não foi de fogo, senão de humidade e exalações que nas cavernas da terra se converteram cada pouco em dez tanto de água ou de ar ou de outro elemento superior mais seu vizinho e não podendo caber no estreito do lugar que antes ocupava, andou aquele espírito e ar movendo-se para os lados, buscando saída e sacudiu com a força com que se movia o pedaço da terra que correu do monte sobre Vila Franca, como feita polme, por ser terra húmida, alagando-a e matando aquela madrugada quase todos seus moradores.
Punha em muita confusão aos moradores desta ilha verem a pedra destes biscoutos assim queimada, e havia muitas opiniões e juízos, não sabendo atinar como se fizeram e forjaram. Entre outras diziam que, quando os primeiros descobridores acharam esta ilha, antes de saírem em terra fizeram dizer no ilhéu de Vila Franca uma missa e dizendo-a ouviram grande grita dos demónios na terra, que diziam: — não é vossa, não é vossa; nossa é, nossa é — como os gritos que se ouviram na ilha de deus Pan, quando disse uma voz aos que em uma nau por ali passavam: — dizei lá na terra para onde ides que é morto deus Pan; e acabada esta voz, ouviram os que iam na nau grandíssimos gritos e alaridos na terra, como que pranteavam a morte daquele deus fingido. Assim se dizia nesta ilha que, acabando os que estavam no ilhéu de ouvir estas vozes, os demónios se foram com grande alarido pela ilha e puseram fogo a toda ela, donde ficaram as pedras e biscoutos queimados, como escória de ouro e prata que se queimara. Mas, o tempo em nossos dias, com este segundo terramoto, descobriu a verdade disto, pois os biscoutos não são outra coisa senão umas ribeiras de fogo que de alguma matéria que do centro ou concavidade da terra, incendida com enxofre e salitre e outros materiais, saía derretida em diversos tempos e anos pelos pés e mais altos cumes dos montes, quase todos, como claramente suas bocas que neles se vêem abertas, dão testemunho verdadeiro.
Também pode ser que o fogo, acendendo-se em sua matéria, derrete pedra dura ou mole, que está lá debaixo do mar e da terra e arrebenta derretida pelos montes, fazendo as ribeiras que vimos, que correram pela face da terra, e resfriado aquele licor se tornou outra vez pedra sobre a terra, como dantes era lá no centro ou caverna, e por ser assim cosida duas vezes e ser dura e áspera, lhe chamamos biscoutos, que quer dizer duas vezes cosidos, uma debaixo da terra quando se coseu a matéria de que eles se fazem, ou na criação, ou na ereição das ilhas e terras que os têm, e outra, quando se derreteu com o fogo e saída fora da terra, com o frio circunstante se congelou e endureceu.
Também parece provavelmente que os biscoutos que correram são material de ferro e marquezita, tudo fervido com a força do salitre e dos vieiros de enxofre e fogo, com alguma mistura de terra, e de tudo se faz um polme como melado ou grosso remel quase preto de canas de açúcar, o qual correndo pela superfície da terra, indo-se resfriando com o ar frio, se vai congelando e tornando pedra, muita da qual é boa alvenaria para edificar e fazer casas; outra é mais leve e crespa e mais queimada, de cor quase vermelha, para fazer fornos e abóbadas, caldeadas com cal, por ser muito leve; outra crespa, tosca, preta e mais pesada que a vermelha, a que chamam biscoutos; outra cinzenta. Também, segundo diversos vieiros e fundições e misturas debaixo da terra, outra pedra branca e outra preta, para obra de cantaria, portais e janelas, muito boa; outra de cor de boi, a que chamam tufo e serve para fazer chaminés e desta há uma pedreira no lugar de Rosto de Cão, melhor que as mais das outras partes, porque caldeia melhor a cal nela. A branca que parece cinzenta, tira, algum tanto a azul claro; desta, que é melhor, há na ribeira do Salto; a somenos no pico do Sapateiro e a medíocre no pico dos Ginetes. Da preta, há grande quantidade perto da Vila Franca, no caminho junto do mar, onde já tenho dito.
Assim como a matéria da pedra pomes é um material preto que se parece com azeviche, que dizem que se chama atabona, ainda que eu tenha a atabona por mais rija, pois dela se fazem navalhas e lancetas com que sangram, de que há grande cópia nas Canárias, assim a matéria mais principal dos biscoutos é a marquezita, de que há muita nesta ilha. E não parece haver prata porque falhou a influência do céu para a perfeiçoar, ou por ser esta terra húmida, ou por estar muito profunda no centro, e também não a fitarem os raios do sol e da lua tão direitos nela, ou por outras causas ignotas. E a prova mais certa de ser esta a matéria dos biscoutos é porque o doutor Gaspar Gonçalves e João de Torres, quando aqui fizeram experiência da prata, derretendo a marquezita para ver se a tinha, o que dela saiu era pedra de biscouto e não prata. Como também derretida a pedra preta, que alguns chamam atabona sem o ser, cresce muito no fogo como escuma e se torna pedra pomes, como se há visto por clara experiência.
Alguns dizem ser matéria dos biscoutos o acernefe que se acha nas Furnas, que é um material amarelo como pedra luzente, no qual pega o fogo mais que em enxofre e queimado se derrete e torna em escória, da maneira que são os biscoutos que correram nesta ilha, ou ambos juntos, acernefe e marquezita, são matéria deles.
Do acima dito parece claro que os biscoutos de pedra, que há nesta ilha e ilhas dos Açores, não são outra coisa senão escória de alguns metais e principalmente de acernefe ou de marquezita, de que nesta ilha há grande cópia. E se há algum metal fundido com os incêndios que se levantam debaixo da terra, de certos em certos anos, como coisa de mais substância e peso, vai abaixo e fica nas cavernas e cavidades da terra, e a escória como mais leve e vomitada com grande força do fogo e espíritos vai acima e corre pela terra, como se vêem nesta ilha os biscoutos, os quais se assentaram na terra mais chã e fértil e nos mais principais vales. E assim nestas ilhas o melhor delas está ocupado com estes biscoutos. Foi isto agora cousa nova para a gente desta ilha, que nunca tal viram, mas não é cousa nova à mesma ilha, porque muitas vezes e em diversos anos há acontecido o mesmo, o que parece claro, como tenho dito, pois pela encumeada da serra, começando da serra de Bulcão que disse, até os Mosteiros, onde está o derradeiro promontório que a mesma ilha faz ao ocidente, por intervalo de algumas nove ou dez léguas, quase não há monte que não tenha de si lançado um biscouto; e em cada um há uma boca de pedra queimada e vermelha, certo sinal de incêndio que precedeu. E uns estão mais frescos que os outros, pelo que se mostra que foram em diversos tempos. Além disso, há biscoutos nesta ilha, uns cobertos de mato antiquíssimo e de terra, e outros ainda tão frescos, descobertos e sem virtude de criar alguma erva ou árvore, que bem parece serem vomitados de pouco tempo, como este que correu do pico do Sapateiro, que os presentes viram nascer e crescer, que daqui a muito tempo não terá virtude de frutificar coisa alguma. Podem os homens deste tempo dizer que são tão velhos, ainda que mancebos, que viram nascer pedras e crescer e correr em tanta cópia que delas se podem edificar muitas e mui populosas cidades, o que não é para crer, sendo verdade. Mas menos para crer e muito mais para chorar, não com qualquer choro, senão com lágrimas de sangue; e para muito maravilhar e espantar é ver alguns que esta tão terríbel ameaça de Deus com seus olhos viram e com os espantosos temores e tremores e furioso fogo da terra, como estes biscoutos, se derreteram enternecidos e contrictos das demandas falsas que faziam, do ódio e rancor empedernido de seus próximos, da fama alheia com falsos testemunhos e murmurações e juizos temerários roubada, e do alheio mal levado, pediram públicos perdões uns a outros e depois do perigo passado, quase com esquecimento eterno dele, resfriados como os mesmos duros biscoutos, tornando a tragar o vomitado, tornaram a suas ilícitas demandas e ódios antigos e a ratificar seus falsos testemunhos e inventar outras detracções, injúrias e novas suspeitas e reter a fazenda alheia publicamente, feitos biscoutos recosidos e mais duras pedras que eles, sem temor de Deus, que os pode, não somente ameaçar, como então fez, mas asperamente castigar, e sem pejo de si mesmos contra o escrúpulo de sua consciência que forçadamente os há-de estar e está remordendo e tendo em má conta, julgando-os por tições do inferno; pelo que, Senhora, não é para me estranhar a grande saudade que tenho de meu irmão Torme, desterrado do mundo e da minha irmã Nhervoga, já perdida dele, de todo absente, fugida e degradada.

Na dita era de mil e quinhentos e sessenta e três anos, a vinte e dois dias do mês de Junho, se sentiu na vila do Nordeste começar a tremer esta ilha e foi tremendo mansamente até uma segunda-feira, véspera do Apóstolo S. Pedro, que foram vinte e oito do dito mês, em que tremeu tão fortemente e tanto que caíram a maior parte das casas na vila de Água do Pau e da vila da Ribeira Grande, onde caiu o mosteiro das freiras e uma igreja de S. Pedro e uma ermida da Madre de Deus e quase todas as casas da Ribeira Seca. Logo no mesmo dia, uma hora e meia da noite, começou a terra, em toda a ilha, da parte do norte e sul, a tremer e a fazer um tom a modo de urro de touro, muito espantoso, e após ele deu um mui temeroso trovão, de tal modo nunca ouvido. E logo da parte do norte, desde a ribeira do Salto até o morro do Nordeste, que são nove léguas ao longo da costa, começou a chover cinza tão branca e miúda que parecia peneirada, e depois muita pedra pomes, tão grossa como avelãs, e daí para cima, até serem, em muitas partes deste espaço e léguas, tamanhas pedras como pipas, que caíam pela serra daquela comarca; mas, a maior quantidade eram como avelãs e nozes, e maiores dos matos para baixo, chovendo-as toda a noite da véspera de S. Pedro, até que foi manhã, que tardou por se o sol eclipsar, e sendo vinda se tornou o dia a fazer noite, das oito horas até às onze, ainda que em alguma parte destas dez léguas se viu o sol. E o dia seguinte de S.
Pedro, que era terça-feira, se tornou a fazer noite muito obscura até uma hora e meia de dia, que tornou a dar uma claridade à maneira de labareda de fogo, chovendo em todo este tempo cinza e pedra pomes.
Tornou a anoitecer com uma noite muito obscura, sendo já dez dias de lua, a qual nunca foi vista, nem planeta, nem estrela que desse claridade, somente a noite que começou com muitos e mui temerosos trovões e espessos fachos de fogo, que punham grande temor, por serem tantos e tão contínuos que estava sempre o céu ardendo da banda do sudoeste, aos que estavam da parte do norte, e aos da parte do sul ficava esta nuvem que ardia em fogo da parte do norte e do nor-noroeste. Toda esta noite de terça-feira choveu pela costa do norte a dita pedra e cinza misturada com enxofre e lama, de maneira que ora vinham os chuveiros com pedra, ora com cinza, ora com areia e enxofre, ora com lodo muito fedorento, mais que um peçonhento lamarão de maré, que não havia, pelo grande fedor que tinha, quem lhe tivesse o rosto direito.
Desta maneira esteve a noite até que amanheceu a quarta-feira, trinta de Junho, em que foi visto o sol alumiando com a claridade e lume esbranquido fora de sua natureza, porque qualquer pessoa olhava com os olhos direitos para ele, como lua cheia, e sendo horas de meio-dia, da nuvem que estava da parte do sudoeste começaram a vir correndo para a banda do norte e nordeste umas nuvens muito obscuras e negras, de modo que tolheram a claridade ao sol e foi-se tornando o dia em noite, o qual parecia a mais triste e obscura que nascidos no mundo viram; as quais nuvens começaram a dar muitos e espantosos trovões, misturados com bastos fachos de fogo, que parecia arder toda a ilha, chovendo muita e grossa pedra e lama mui fedorenta. Estando assim nesta obscuridade e trevas até uma hora de sol, que tornou a ser claro, com uma claridade azulada e amarela, como fogo de enxofre, e pela mesma maneira fedia e punha grande temor e espanto, tornando a anoitecer, foi a noite muito mais espantosa e temerosa que nenhuma, assim de muito obscuro e de muitos e amiudados trovões, grandes e terribeis , e infinda chuva de pedra, que em toda a noite nunca um momento deixou de chover. Amanheceu a quinta-feira, primeiro de Julho, uma manhã triste e mui obscura, por todo o céu e sua redondeza, estando a nuvem dos castelos mais feia que dantes, chovendo muita cinza, pedra e lodo, e ventando muito e espantoso vento sudoeste, até o meio-dia, em que estiou e deixou de chover pedra, mas tornou a chover da véspera por diante muita e grossa água, a qual fez grande e forte taipa nas terras com a lama e pedra pomes, de maneira que não se podia andar por cima, polas pedras ficarem tão calçadas com a lama, que pareciam aguilhões e pontas de diamães ; também com a água, se fizeram pelas terras muitos e bastos grotilhões pela pedra pomes e lama, os quais chegavam até à nossa primeira e boa terra, com a qual água e corrente se acabaram de perder as novidades de pão e de toda a sorte, que estavam as melhores que nunca foram de quarenta anos até então; de modo que ficaram as terras da parte do norte todas alagadas e as novidades acravadas, por ficar a pedra e cinza chovida, o mais baixo, de altura de três palmos e daqui para cima, até quinze e vinte, e nos matos muito mais, pela qual pedra, pó e lodo, toda a dita terra; assim de criações e pastos de gados e terras de lavranças ficaram tão perdidas que, segundo o parecer então de todos, nunca mais dariam erva, nem fruto, senão permitindo-o Deus por sua misericórdia.
Dentro nestas nove léguas assim alagadas, estão sete freguesias e a vila do Morro do Nordeste, que darão cada ano, uns por outros, trezentos moios de trigo de dízimo, o melhor e mais limpo de toda a ilha, afora pastel, cevada, centeio, milho e outros legumes. Era terra de muitas e boas criações de todo o gado vacum, cabrum e ovelhum, e muitos porcos e bons cavalos, e as frutas que dava eram todas como de Portugal. Com este dilúvio, morreram todos os pássaros de toda a sorte, havendo tanto número deles que faziam perda nas novidades, principalmente canários, sachões, mélroas e codornizes, que se metiam pelas casas entre a gente, como que pediam socorro e refúgio de seu trabalho e morte, o que também os coelhos faziam, vindo a morrer nas casas, e pelos caminhos os acharam mortos. E os pombos tomavam às mãos, sem se quererem alevantar nem fugir, e o mesmo faziam os gados.
Também nestes dias foi tanta e tão grossa a madeira que andava no mar, que do ar caiu das nuvens, que não tinha conto, com infindos gados de toda a sorte, o que tudo foi achado quarenta léguas desta ilha pelos navios que para ela vinham, dentro nos dias deste terramoto, pelo que parece claro serem levados pelo ar e não das enchentes, polas não haver senão à terça-feira seguinte, seis dias do mês de Julho, em o qual dia a lua foi eclipsada quase toda e choveu na serra, da parte do norte, tanta água que encheram as ribeiras em tal maneira qual nunca até então foram vistas encher. Nos dias atrás da quinta-feira, primeiro de Julho, foram achados muitos bois, cabras e ovelhas, o mesmo espaço de quarenta léguas desta ilha, por alguns navios que vinham do Reino para ela e acharam tanta quantidade de pedra pomes na dita paragem que vieram a dar em oito palmos de alto da dita pedra, e quase ficaram enxorados em seco, vindo com tormenta de sudoeste que não podiam trazer mais de uma vela; tanto que se viram enxorados na restinga da pedra pomes, que dizem seria tão larga como um quarto de légua e tão comprida como uma vista, dando logo todas as velas se não podiam sair, por os navios se não poderem bulir entre a dita pedra, pelo que lhes foi forçado às varas com força se lançarem fora dela, o que lhes foi a todos grande pavor e medo, cuidando ser a ilha alagada e metida debaixo do mar. Eram estes navios uma caravela de Alfama e uma naveta de Viana, que vinha carregada de vinhos, os quais, com outros muitos que do Reino para esta ilha vinham, disseram achar muita quantidade de cinza que lhe chovera à quarta-feira, derradeiro de Junho, e à quinta, que foi o primeiro de Julho; e a muitos choveu tanta que às pás a lançavam fora do convés, por se não alagarem, afirmando os pilotos e toda a mais companhia que seriam no tal tempo oitenta até noventa léguas desta ilha, achando também muita e grossa madeira com toda sua frança, que lhe pareciam navios alagados, tanta e tamanha era e toda retorcida. Toda esta madeira, pedra pomes e lama traziam as nuvens de um pico, que estava na serra sobre a ribeira da Praia e sobre a vila de Água do Pau, o qual ardendo fez uma boca de uma légua e meia em redondo com grande concavidade, sobre o qual estava sempre a nuvem dos castelos, e ao longo deste pico, entre ele e outros, estava uma grande alagoa, donde se presume que nasciam duas ribeiras, a da Praia e a da vila da Ribeira Grande, a qual alagoa secou e as ribeiras também foram quase secas, levando tão pouca água que por algum tempo não moeram os moinhos, assim de uma como da outra.
Deste pico lavrou o fogo por debaixo do chão e foi dar em outro, que chamam o pico do Sapateiro, que está sobre a Ribeira Grande, da parte do norte, o qual começando arder a terça-feira, começou depois a correr dele uma ribeira de fogo pela Ribeira Seca abaixo até chegar ao mar, correndo mansamente como metal derretido, por fazer fio como alféloa, sendo pedra que estava fervendo e fazendo grande estrondo quando entrou no mar, onde fez um grande cais ou ilhéu de penedia, ficando, ali, e por toda a ribeira acima um bravo biscoutal da feição dos outros biscoutos desta ilha, que pela mesma maneira em outros tempos correram.
Depois, correu outra ribeira de fogo do dito pico, que acabando de resfriar ficou tudo o que corria feito pedra de biscouto, fedendo muito a enxofre.
Na vila do Nordeste e seu termo foram nestes dias vistas grandes e espantosas visões, terrores e medos, e se fizeram excessivas penitências, principalmente uma moça que as fez maiores que todos. Tão desmaiados andavam, que achando-se aí então o licenciado Rodrigo Afonso Azinheiro, juiz de fora na cidade, lhe foi necessário subir na igreja Matriz ao púlpito e dali como pregador consolar, esforçar e animar o povo e buscar bocetas de marmelada para repartir com os doentes do desmaio, porque ali choveu muita cinza e pedras de diversas maneiras e granduras e desceu do fogo que cuidavam ser do céu um raio e língua mui grande, entrando assim solta na igreja onde estava muito povo e visivelmente se tornou em uma horrenda figura de um bravo leão, todo de fogo, que parecia queimar toda a igreja e quantos nela estavam, dando espantosos rugidos, e logo desapareceu com grandes estouros. E na mesma vila caíram de noite muitas casas e algumas igrejas.
Na freguesia de S. Pedro da Lomba, termo da vila do Nordeste, onde as primeiras coisas atrás ditas foram vistas, se achou também Bartolomeu Nogueira, homem nobre e de grandes espíritos e animou e esforçou a gente, andando com ela sempre em procissões com a ladainha, servindo nisso, pelo vigairo da dita freguesia enfraquecer, por ser velho, com o temor do tal trabalho. E, indo um dia dos acima ditos, com todo o povo em procissão, para uma ermida de Santo António, que está na mesma freguesia, da qual a ela se metem duas grandes ribeiras, chegando no cimo da primeira, indo com a ladainha e todo o povo, grandes e pequenos, respondendo — ora pro nobis —, desceu da serra pela grota abaixo uma nuvem negra, espessa, horrenda e feia, e tanto que chegou sobre toda a gente deu um mui grande e espantoso trovão, caindo dela muito brazido e fachos de fogo, os quais eram paus que vinham ardendo dentro na nuvem; e ao dito Bartolomeu Nogueira caiu uma faísca sobre a mão esquerda em que levava as Horas de Nossa Senhora com que ia dizendo a ladainha, a qual deu tanto medo ao povo que logo quiseram fazer volta e tornar-se a recolher para a igreja de S.
Pedro, onde era sua colheita, o que Bartolomeu Nogueira lhe não consentiu, persuadindo-os que fossem avante, seguindo sua romaria, porque aquilo era obra do demónio para os estorvar de sua devação e bom propósito. Tornando a caminhar, como dantes em sua procissão, a mesma nuvem começou a correr ao mar pela ribeira abaixo, com tanta obscuridão e fealdade que metia pavor, ficando o ar por detrás dela algum tanto mais claro. Chegaram à ermida de Santo António, donde acabadas suas orações se tornaram para a igreja de S. Pedro que era o seu castelo, onde, quando chegaram, já não viam o caminho. Nesta igreja estiveram sempre recolhidos desde a véspera de S. Pedro, em que começou a chover a cinza e pedra até que se acabou toda a tribulação e tempestade.
Estando recolhidos na dita igreja a horas do meio-dia, que estava tão obscuro que se não enxergava nada, apareceu fora na rua um lume como de uma candeia, em altura de uma lança do chão, o qual parecia azul e amarelo. E, sendo chamado o dito Bartolomeu Nogueira para o ver, saiu fora da igreja, e vendo-o mandou sarrar as portas por lhe parecer que podia ser alguma lucerna reverberada do lume que dentro estava. Mas, antes de as sarrarem, a dita candeia entrou pela porta e foi correndo por cima da gente como um foguete, sobre cujas cabeças fez dois lumes, um para baixo, e outro para cima, e no meio deles ficou uma meia lua e sobre ela um vulto de grandura de dois palmos, com as vestiduras brancas e o manto preto, como de S. Domingos, o qual vendo todos mui claro, chamando uns que era Nossa Senhora do Pranto, e outros pelo Corpo Santo, mas afirmando-se mais que era Nossa Senhora do Pranto , chamavam a grandes brados por ela, que lhes valesse em tal aflição. Visto isto assim, pela maneira dita, logo o dito lume se tornou como entrou, em modo de foguete, a pôr no lugar onde aparecera e daí a um momento desapareceu; cuja vista deu boa esperança a todo o povo com as palavras de consolação e esforço que o dito Bartolomeu Nogueira lhe dizia, o qual, todos aqueles dias trabalhosos e obscuros, tinha cuidado de mandar subir gente acima do telhado da igreja de S. Pedro, com tábuas e algumas pás e com as telhas a descarregá-lo da cinza e pedra que de contínuo em cima lhe estava chovendo, o que, se não fizera com tanta diligência, sem dúvida caíra e matara a mor parte do povo que dentro sempre estava.
Seriam passados cinco ou seis dias deste tão trabalhoso dilúvio, quando o mesmo Bartolomeu Nogueira ordenou com todos que fossem em procissão a Nossa Senhora do Pranto, cuja igreja acharam toda alagada, com a porta aberta por onde se alagou, e tinha cinco palmos de alto de pedra, lodo e água dentro, como nas paredes está bem matizado, em que se mostrou como um milagre para sua consolação, que foi ficar o altar todo enxuto pela dianteira e lados, sem chegar nenhuma água, lama nem pedra ao frontal, nem a parte alguma do altar, estando pelas paredes de toda a ermida, até por detrás dos lados do altar, um risco, como feito com régua, que mostrava a altura de água que nela tinha entrado, de que todos pasmaram e louvaram a Deus, por verem que a água não ousara de chegar ao altar da Senhora e lhe tivera reverência. Dali a três dias, a tornaram a despejar de toda a pedra, cinza e lama que dentro tinha, que era em muita quantidade. E a descarregaram de cima, maravilhando-se como não caíra com tanta carrega, que tirada de cima ficou o telhado igual da terra, pela muita que se despejou dele.
Outras muitas coisas foram vistas, por muitas pessoas, de prodígios, figuras e fantasmas, que seria longo processo contá-las.
Também indo sete homens da freguesia da Chada Grande, em romaria à dita casa de Nossa Senhora do Pranto, e tornando a horas de meio dia, se lhe fez o dia noite, muito obscuro, e indo em uma ribeira, que se chama da Mulher, chamando eles pela mesma Senhora donde vinham, por não verem por onde ir, de improviso se lhes pôs nos bordões a cada um uma claridade de candeia, com que se viram uns a outros e puderam caminhar, até se tornarem para sua freguesia.
No lugar da Chada Grande, estando o vigairo um dia, mais obscuro que a noite, dentro na igreja recolhido com todo o povo, com a porta principal sarrada e a travessa aberta, não se vendo nem conhecendo uns a outros, senão pela fala, fora da igreja e dentro nela, com a claridade dos círios e tochas, até vésperas em que, tornando já claro, viram todos pela porta travessa entrar uma coisa à maneira de nuvem grossa e negra, redemoinhando e foi até o cruzeiro da dita igreja; daí tornou para trás até meio dela, onde inchou como uma grande botija e arrebentou, dando tão grande estouro como uma bombarda, lançando fogo de si, a modo de labareda quando dispara algum tiro, de que a gente toda ficou pasmada e fora de si e uma mulher quase morta, dizendo depois que a força daquele fogo a derreara. E ao dito vigairo deu aquele ímpeto nos peitos. Nestes lugares da Chada Grande, Achadinha, Fenais da Maia, Maia e Porto Formoso se fizeram muitas procissões e penitências, e na Maia andavam os meninos em procissão, todos nus, no tempo desta angústia, pedindo a Deus misericórdia.