Nunca vem um mal só nesta vida, sem vir acompanhado de muitos, umas vezes juntos, como foi a subversão de Vila Franca e logo depois a peste; outras vezes, em vários tempos, para espertar Deus os pecadores que estão dormindo em suas culpas, como foi outro segundo terremoto que aconteceu nesta ilha na era de mil e quinhentos e sessenta e três anos, sendo sexto Capitão dela o muito ilustre Manuel da Câmara, único no nome, com o qual, ainda que não aconteceram mortes de pessoas, houve tão terribeis medos, que chegou a todos os moradores dela a par da morte. E ainda que as coisas fabulosas dos poetas sempre são menos do que eles dizem, estas deste segundo terremoto, por mais que delas se conte, muito mais e maiores foram do que, Senhora, delas vos contarei e contar posso. E, assim como de um arruído que se faz na praça, cada um que se achou nele conta várias coisas que viu e por diversos modos, falando todos verdade, assim deste segundo terremoto que foi um arruído antre os elementos, Terra, Água, Ar e Fogo, armado na praça de toda esta ilha, em que todos os moradores dela se acharam presentes, não é muito que cada um conte coisas diversas que particularmente viu e sentiu no lugar onde se achou, as quais, se houvesse de contar todas, faria um infinito processo, não contando a menor parte assim das que aconteceram, como das que se não viram, porque tão amedrontados andavam os homens que vendo não viam, e ouvindo não ouviam, e somente sabem dar fé de poucas coisas que antre muitas então aconteceram. Mas, por abreviar tantas, direi somente do acontecido em três vilas, Vila Franca do Campo, a vila do Nordeste e na da Ribeira Grande, em que o terremoto fez mais medos e danos, e na cidade da Ponta Delgada, onde fez menos, dizendo primeiro dos que causou na Vila Franca, mais propínqua ao monte principal, onde veio brotar o fogo do centro da terra.
Na era acima dita de mil e quinhentos e sessenta e três, a vinte e cinco dias de Junho, princípio do estio, quando quase já estavam chegadas à foice as searas doiradas, havendo nove dias que o sol havia entrado e tocado os limites do calidíssimo signo Cancro, tempo em que pela maior parte os delicados vapores e ares mui frios que no arripiado inverno, pelos poros e concavidades da terra, dentro dela naturalmente condensados, se encerraram e esconderam, aquecidos e feitos ralos e estendidos ou crescidos com a quentura ou reflexão dos raios do sol, que em tal tempo mais que nunca se esforça, como de natureza o ar quente seja mais ralo que o frio e de necessidade ocupe maior lugar, não cabendo portanto nos lugares e estreitos aposentos trabalham com grandíssima fúria proromper e sair pelas breves entradas e portas por onde entraram ou por outra qualquer parte, em que porta e saída podem achar ou violenta fazer, com o qual natural e forçadamente se causam grandes ímpetos e terremotos, impetuosos concursos, violentos abalos e tremores de terra. Pelo que no dia e era atrás ditos, sendo cinco dias de lua, em sexta-feira, uma hora depois de meia-noite, quando todos ou quase todos dormiam, começou em toda esta ilha a tremer subitamente a terra com horrendos e contínuos abalos, maiores do que nunca se viram, sentindo-se primeiro e mais o dito tremor de terra em Vila Franca do Campo, por ser terra alta e encumeada e mais chegada ao monte por onde depois arrebentou e respirou aquele furioso espírito e grande fogo, havendo-se dantes ouvido um estrondo pelo ar, como aves que vão voando e batendo as asas com o qual tremor, acordados alguns do sono e temerosos acordaram os outros com o repicar dos sinos, que cuidavam ser chegada uma armada do cossairo Pé de Pau, que dias havia temiam. Desperta toda a vila e parte de seus arrabaldes e sabida a causa de tão grande sobressalto, com muita mais razão temeram a forte mão de Deus e seu castigo, que os pecados de cada um merecia, pelo que qualquer, como interior juiz de sua consciência, concebia em si e tinha maior medo, não ousando olhar ao Senhor irado. Mas, contudo, não tendo para onde fugir fugiam de Deus irado para ele mesmo misericordioso, pedindo-lhe todos misericórdia com muitas lágrimas, gemidos e prantos presentes, cada um em especial e todos em geral, chorando suas culpas passadas. Junto o povo na igreja Matriz do Arcanjo S. Miguel com o vigairo e cleresia, e religiosos com seu guardião, o licenciado Frei Pedro Mestre, e o licenciado Simão Pimentel, pregador por el-Rei na dita vila, ordenaram e fizeram uma devota procissão à casa de Nossa Senhora do Rosairo, do mosteiro de São Francisco, e daí ao mosteiro de Santo André, das religiosas de Santa Clara, que já pela mesma causa tinham feito outra procissão por dentro de sua crasta. Daí tornando à igreja de São Miguel donde se saíram, sendo já manhã clara. No qual tempo, tremeu a terra mais de quarenta vezes, tremendo também o sábado, no qual sendo horas de Ave-Marias se eclipsou a lua com ser cheia, do qual eclipse nenhuma fé deram em algumas partes da ilha, e também alguns da mesma vila desatinados com o medo, pelo que à tarde fizeram outra procissão com muitos géneros de penitências, aos mesmos lugares de antes, com pregação do licenciado Simão Pimentel na igreja Matriz, que se acabou à meia-noite, da qual até pela manhã não se sentiu mais tremor. Vindo a manhã do domingo, muitos se confessaram e receberam o Santo Sacramento, cessando algum tanto o tremor até a tarde em que começou a tremer outra vez mui impetuosamente, pelo que se fez outra procissão aos sobreditos lugares, amostrando-se o Santíssimo Sacramento ao povo na igreja de Santo André, mosteiro das freiras, concluindo-se já de noite na igreja Matriz, onde o vigairo frei Belchior Homem esforçou o povo com santas palavras e católica doctrina; até o qual tempo havia a terra tremido muito e mui rijamente. Mas, daí até a segunda feira, horas de véspera, esteve quase sem tremer na dita vila. Da dita segunda-feira, que era véspera do apóstolo São Pedro e das ditas horas de véspera, começou a tremer a terra mais horrenda e espantosamente que até ali, dando a todos pouca esperança de vida. De São Pedro, onde estavam cantando as vésperas, fizeram outra procissão até o mosteiro das freiras, onde se mostrou outra vez o Santo Sacramento ao povo e pregou o licenciado frei Pedro Mestre, consolando e esforçando a todos, como em tal tempo convinha. Estando pregando, deu a terra maiores tremores que os passados e fugindo alguns para o ilhéu, ficando outros, se acabou a pregação e procissão até a igreja Matriz, onde foi mostrado o Santo Sacramento, sendo já horas de completa, em que começou outra vez a tremer a terramui a miude e rijamente, de tal sorte que cada vez tremia com maiores e mais impetuosos abalos, pelo que todos, tendo maior medo e menor confiança de suas vidas, faziam muitas e diversas penitências, fazendo-se amigos os inimigos, perdoando injúrias recebidas, chamando-se irmãos uns aos outros com entranhável caridade e profunda humildade, não curando as mulheres de pompas, fatos nem ricos vestidos, sem haver então diferença entre ricos e pobres, nem entre nobres e plebeus; todos a necessidade em que se viam, tinham tornado huns , maiormente porque quando os terremotos se sentiam, era a pressa tal que cada um, como quer que em sua casa ou em outra qualquer parte acertava de estar, assim se acolhia, sem mais atavio, nem aparato, nem companhia, as filhas sem mães, as mães sem elas, nem o marido à mulher, nem a mulher muitas vezes o marido acompanhava, cada um de si somente e ainda não bem se lembrava.
Estando na dita igreja e ao redor dela muito povo, cresceram tanto os terremotos que, com grande medo dela cair, fugiam a grande pressa os que dentro estavam para fora, havendo com isso grande ruído e desassossego e às vezes se pisavam e maltratavam muitas mulheres, velhos e mininos e outras pessoas fracas, com o qual era tanta a grita e tão grandes os brados, assim dos pisados e maltratados, como dos que pelo Senhor e sua misericórdia chamavam, que parecia romperem o céu e toda a Máquina parece que desencasada e destruída se vinha abaixo, o que dobrava desconsolação e diminuía a todos a esperança de vida; mas, consolouos o seu vigairo, dizendo antre outras coisas para que fugiam donde estava o Senhor por quem eles chamavam, com que se tornaram a recolher para dentro, fazendo muitos modos de penitência e orações. Sendo horas de Ave-Marias, com cruas penitências, ordenaram alguns fazer uma procissão a Nossa Senhora da Piedade, freguesia do lugar da Ponta da Garça, uma légua da vila, ficando nela o mais povo em tanta opressão que, temendo de se subverter a ilha, se embarcaram em barcos alguns e muitas pessoas se botavam a nado ao mar, não temendo esse perigo, por evitar o que na terra tinham, acolhendo-se aos barcos e navios ancorados e ao ilhéu onde já estava muita gente acolhida, e para a cidade. Alevantando-se os navios carregados de gente, andaram muitos dias com muito trabalho de tormenta e fome, até tornarem a tomar terra e deles com a tempestade foram ter à ilha da Madeira, indo em uns mulheres e filhos, em outros os maridos e pais, em outros os filhos sós, de modo que primeiro que se tornassem a juntar passaram muitos dias.
Os que na vila ficaram foram em procissão ao mosteiro de S. Francisco e ao das freiras, tornando à igreja Matriz com muitas luminárias acesas, levando o vigairo nas mãos o Santíssimo Sacramento, e o padre beneficiado Frutuoso Coelho um crucifixo e o licenciado Jorge Barbosa Ferraz a bandeira da Casa da Misericórdia. Estando no mosteiro de S.
Francisco, sendo passada mais de uma hora da noite, além de tremer a terra quase continuamente, deu então certos abalos e golpes tão grandes, que todos se tiveram por subvertidos, ouvindo uns estouros e estrondos tão horrendos e tão maiores que os da forte artilharia e dos furiosos raios, que não parecia senão que o céu se fendia, que duraram meia hora, em que toda a gente esteve com grandíssima inquietação, até que cessaram.
Mas, logo encontinente se armou e fez uma nuve , como de fumo, ao noroeste da vila, cada vez crescendo tão obscura e mal assombrada que, estando a noite algum tanto serena e clara, a tornou tão triste e desairosa que a todos dobrou a desconsolação e medo, dando de si tristes mostras e aparências mui espantosas, variando-se com sua feia obscuridão em diversas figuras e mui horrendas; tão alta que parecia estar eminente e pendurada sobre a dita vila, não parecendo nuve, mas coisa fabricada para destruição das gentes, e assim parecia, que para nenhuma outra parte se inclinava senão para contra a vila, ameaçando e prometendo, com sua horrível figura, espantoso e cruel castigo.
Saindo a procissão do mosteiro de S. Francisco, vendo todos coisa tão feia que não parecia nuve natural, senão coisa viva que estava prometendo destruir e assolar a ilha em toda a qual se viu também, à tal hora, o horrendo monstro e todos cuidavam que sobre si a tinham, o mesmo cuidavam os que iam na procissão a Nossa Senhora da Piedade, do lugar da Ponta da Garça; porque esta segunda-feira, véspera de S. Pedro, duas horas da noite, chegando a procissão a uma cruz que estava no meio do caminho, meia légua da vila, entre as Amoreiras e a Ribeira das Taínhas, viram vir uma nuve desapegada que seria de trinta côvados de comprido e quinze de largo e trazia três pontas na dianteira, como mangas ou bocas de serpe; a qual nuve vinha da serra, da parte do norte, direita ao sul, e chegando em cima da mais gente, antes que chegasse, deitou pelas bocas muitas fusiladas de lume, sem trovoada, e se pôs em cima da gente com as bocas ao nascente. Vendo-a, todos se puseram de giolhos diante da cruz, pedindo misericórdia. Estariam assim tanto espaço quanto se poderiam dizer quatro credos devagar, e em todo este tempo a nuve não descansou de botar de si fusilada por todo o corpo dela, sem estrondo, que parecia que se abria o céu com fogo. Chegando com a ladainha a dizer — Santa Maria, ora pro nobis, se abalou a esta palavra a nuve de cima da gente e se tornou caminho do norte com as três bocas diante, porque deu uma volta sobre a gente, como um navio, e virou as bocas, como proa, caminho do norte; e, em saindo de cima do povo, botou sem trovoada três relâmpagos tão espantosos que muita gente caiu como cega em terra, e se tornou a nuve para a serra donde viera, parecendo isto coisa sobrenatural. Daí a dois tiros até três de arcabuz, indo com a procissão, viu o povo na serra um sopro grande, branco, sem trovoada, com a terra tremer muito, e logo naquele instante começou a chover cinza. Chegando à igreja da Ponta da Garça, se acharam todos cobertos dela, indo cada um como se achava, mal vestido e sem concerto, sem pundonor, nem fantesia , nem ter lembrança os pais dos filhos, nem os filhos dos pais, com o grande tremor que cada um tinha.
A gente que vinha da outra banda em procissão, vinham cobertos de terra, como mouros, de outra cor e desconhecidos, sem ninguém os conhecer, caindo pedras que não tinham conto, muitas tão grandes como quartos e pipas, jarras e bolas, e tão bastas como a chuva quando chove, e dando na gente não morreu pessoa alguma, somente se achavam algumas escaldadas, queimadas e escandalizadas daquela quentura, mas não foi coisa que lhe fosse necessário curar-se. Algum gado ficava escalavrado, mas nenhum morreu disso, senão depois, que morreu muito de escorregar pelo cinzeiro e as ribeiras os levarem com o ímpeto da terra que levavam solta, porque, por pouca água que chovesse, levava tanta terra consigo que fazia muito dano.
Tornando a procissão que do mosteiro de S. Francisco ia para a igreja Matriz, onde todos iam desmaiados com o que viam, e ninguém de si parte sabia, senão em seguir os estandartes das cruzes de Cristo, Redentor nosso, em que levavam postos os olhos, sem olhar para a nuve com medo, nem saber a causa dela, a qual era um ardentíssimo fogo que na serra da dita vila ardia, e aquela mesma noite, quando se ouviram os sobreditos estouros, havia arrebentado e feito grandíssimas bocas, por onde respirava e botava mui grandes fusiladas e pavorosos raios e ardentes línguas direitas ao céu, as quais iam a dar na nuve e toda por diversas partes a acendiam e mostrava grandes fusiladas e mais que nenhuns ardentes coriscos, nem rutilantes cometas. O qual fogo, quando assim da serra saía, pela grande cópia de negro fumo e obscuridão que sobre a superfície da serra andava, se não via senão quando depois na nuve dava e inflamada por todas as partes a fazia cintilar mui espantosamente, mostrando aqueles contínuos raios e ardentíssimos fusis, que muitas vezes contra natura do fogo tornavam a cair em terra, feitos línguas de fogo; pelo que ninguém julgava ser fogo natural e da terra, senão elemental e do céu, que Deus para castigar as culpas dos homens enviava, com que esperavam ser cedo cruamente abrasados e queimada toda a ilha, que não somente ela, mas também a de Santa Maria, sua vizinha, com o mesmo medo, cuidando seus moradores que somente sobre cada um vinha aquela nuve e castigo, faziam procissões para aplacar ao Senhor que viam tão irado.
Chegando a procissão do mosteiro de S. Francisco à igreja Matriz de S. Miguel, deu ao redor dela muitas voltas, sem cessar o ardente fogo de fazer seu ofício, antes cada vez mais mostrava sua fúria, pelo que entraram todos na igreja, determinando fenecer ali seus dias, tendo cada um por averiguado consigo ser aquele o fim. Tudo então eram gritos, desatinos e desacordos, pelo que o vigairo, tornando a tomar o Santo Sacramento nas mãos e os companheiros suas insígnias, saíram outra vez em procissão ao redor da igreja, sem deixar de tremer a terra, nem de cintilar o fogo. Sendo pouco mais de meia-noite, começou a chover uma mui alva e delgada cinza, assim como se a estivessem peneirando, por espaço de uma hora, tão quente que mal se podia sofrer, se no rosto ou mãos caía; e logo obscureceu mais a trabalhosa noite e ouvindo-se de quando em quando os estouros e urros sobreditos, começou com um áspero soído e grandíssima rugida a chover mui rijamente um basto e espesso polme da mesma cinza, tão teso que magoava muito onde dava e tão frio que fazia tremer a todos de enregelados, sem acertar o que diziam, e muitos com desacordo andavam emudecidos. Durou esta chuva de polme meia hora, que meio ano pareceu, a qual chuva acabada, ficaram todos cobertos e barrados, como que em caldeiras de cinza delida foram metidos, e tornou logo a chover como dantes a cinza miúda, seca e desfeita, como peneirada, sem o povo deixar de andar ao redor da igreja com sua procissão, até duas horas ante-amanhã, em que se recolheram todos à dita igreja, por mandado do vigairo, onde, depois de rezar matinas, disse missa do Apóstolo S. Pedro, sendo quase manhã.
Esta noite atribulada foi geral em toda a ilha, ainda que não choveu cinza igualmente em toda ela. E houve pessoas que afirmaram então ver muitos milagres. Uns diziam que viram a Virgem Nossa Senhora; outros o Corpo Santo, outros um altar com o Santíssimo Sacramento e outros outras coisas. Na dita Vila Franca, diziam alguns ver uma pomba branca, dizendo ser o Espírito Santo; outros afirmaram também tangerem-se os sinos por si. Amanhecendo o dia seguinte, que era festa do bem-aventurado S. Pedro, se acrescentou a desconsolação de todos, vendo-se melhor uns aos outros, cobertos de barro e polme daquela molesta cinza, que ainda em pó estava continuamente chovendo, sem cessarem os tremores de terra, mais acrescentados que dantes. E levando o Santo Sacramento fora, ao mosteiro de S. Francisco, estando lá, chegou a outra procissão que aquela noite fora a Nossa Senhora da Piedade, da Ponta da Garça, em que vinham todos descalços e cobertos também de polme e cinza.
Vendo-se uns a outros, deram inumeráveis gritos de ambas as partes, porque quase se não conheciam. E amostrado o Santo Sacramento pelo padre guardião, frei Pedro Mestre, se foram em procissão à casa do Apóstolo São Pedro, por ser seu dia, onde se solemnizou sua missa e comungaram muitos, sem deixar de tremer a terra e chover cinza. Indo dali em procissão pelas ermidas, se pôs uma obscura nuve em cima, no ar, que assombrou toda a vila, e começou, além da cinza e chuva, a chover outra terra negra, feita em grão, à maneira de pólvora grossa, em grande quantidade e mui tesa, por espaço de um quarto de hora, na dita vila, ainda que nas outras partes durou muito, fazendo tanto obscuro que parecia noite, pelo que se recolheram à igreja Matriz. E logo obscureceu e eclipsou o sol mais de meia hora, em que estiveram todos em trevas, tremendo a terra espantosamente, quase sem intervalo.
Tornando a sair em procissão, com o Santo Sacramento, ao redor da igreja tornou outra vez a chover terra negra em grãos, como pimenta, algum tanto mais grada que a primeira, por breve espaço, e sobre isso cinza em grãos maiores que chícharos e dela tão grada como avelãs, tão basta, impetuosa, quente e rija, dois terços de hora, que onde quer que dava magoava muito; o que vendo o povo, se ajuntou de giolhos em caracol ao redor do Santíssimo Sacramento, dando, envoltos em muitas lágrimas, grandes gritos e suspiros, tendo então a morte por muito mais certa, e todos desacoroçoaram, por mais que os esforçassem o seu vigairo e pregadores, Simão Pimentel e frei Pedro, dizendo que, posto que aquela agonia era tão forte, maior era a misericórdia do Senhor que a mandava.
Passou aquele triste ímpeto, com o qual todos cuidaram haver de ser subvertidos, e ficou como dantes, chovendo a cinza miúda e quente que soía. Alguns se recolheram à igreja, outros se acolheram fora da vila, onde passaram tanta e mais tribulação que os que ficaram.
Logo daí o padre frei Pedro Mestre, e outras pessoas se foram ao mosteiro das freiras, as quais com a dita tribulação se haviam já saído de seus aposentos e acolhido na sua igreja, donde foram em procissão a Nossa Senhora do Rosairo, passando pela igreja Matriz, onde estava todo o povo. E em continente veio outra mais obscura e negra sarração que as passadas, a qual outra vez obscureceu e cobriu totalmente o sol, ficando noite, sem se enxergar nas ruas coisa alguma, nem deixar de tremer a terra, ouvindo-se também, de quando em quando, aqueles aspérrimos estouros e pavorosos urros, com que já não havia quem coração nem sentido tivesse para novo medo receber, caindo muitas mulheres desmaiadas e amortecidas. Durou esta obscuridão e noite espaço de uma hora, que foi ao meio-dia, e geral em toda a ilha, tirando na cidade e daí para o ponente, onde não chegou; a qual acabada, tornaram as religiosas com algum povo a prosseguir sua procissão a Nossa Senhora do Rosairo, onde estiveram três horas sem tremer a terra, mas logo deu tão continos e repentinos abalos, que parecia toda a ilha se fundir, armando-se outra espantosa nuvem maior e mais obscura que nenhuma das passadas, que fez o sol e a claridade do dia noite obscura, sem se ver nem sentir mais que aqueles horrendos estouros e perigosos urros. Durou esta obscuridão, maior e mais horrenda, mais de uma hora e, em algumas partes da ilha, duas e três; após isso, espaço mais de duas horas, esteve tudo quase em paz, sem se sentir tremer a terra, nem coisa que medo causasse, somente a continuação da cinza que chovia; mas logo deu a terra dois ou três abalos mui violentos e juntamente certos estouros, como soíam, e veio outra obscuridade não menos temerosa e feia que as passadas, por espaço de meia hora, e esta foi a derradeira. Dali até noite esteve tudo em sossego. Já quase noite, se fez outra procissão, como soíam. E aquela noite seguinte, pela misericórdia de Deus, não tremeu a terra senão muito poucas vezes, em que as religiosas estiveram na capela da igreja, diante do Santíssimo Sacramento, orando por si e pelo povo todo. Sendo duas horas ante-amanhã, estancou e deixou de chover a cinza na dita vila, mas em outras partes da ilha durou mais.
Tanto que foi manhã, a quarta-feira seguinte, o vigairo que na igreja de S. Miguel com muito povo havia ficado, se foi com ele em procissão à dita casa de Nossa Senhora do Rosairo, onde disse uma missa cantada e recebeu muita gente o Santíssimo Sacramento. E apareceu ao noroeste a grandíssima e espantosa nuvem sem obscuridão, mas dando a todos terror e medo; a qual era de cinza que saía das ardentes aberturas e bocas de fogo, com cuja violência e furioso ímpeto, e com ligeiro vento, foi levada tão alta que, quando foi buscar seu natural assento, mui pouco dela, daquela vez, caiu na terra; mas foi cair mui longe, dentro no mar, onde nenhum dano fez.
Esta nuvem, quando logo saía da boca e aberturas da terra, ia-se enovelando direita acima, de cor negra, depois algum tanto mais acima mudava a cor, parecendo roxa e algumas vezes cintilava e mostrava raios de fogo, mas não muitos, e indo já mais alta não aparecia nela fogo e mostrava e fazia de si muitas e várias figuras, mas não medrosas: primeiro parecia ser um deleitoso bosque, cheio de muitas árvores e frutas, por toda a ordem prantadas; dali a pouco espaço, quando já era mais em cima, movida do vento e dando-lhe o sol, tornava-se mui alva, parecendo fina e cardada lã ou grandes arméos de algodão; depois parecia desfazer-se com o vento, mas quando por cima se desfazia, tanto por baixo ia crescendo outra vez, empinando-se de modo que nunca faltava, permanecendo sempre em uma grandura e altura todo o dia contínuo, e, aparecendo o sol claro, apareceu ela desta maneira. A qual todos os dias passados assim havia de ser, mas pela grande obscuridão se não via. Então se entendeu na dita vila a causa de sua aflição e tribulação ser fogo que na mesma terra ardia e não do céu como se cuidava e temia, não deixando alguns de cuidar que, posto que na terra ardia, do céu, por seus pecados, haveria descido e teria por outras partes toda a ilha abrasada.
Aquele dia todo se não sentiram tremores; pelo que as religiosas se recolheram a seu mosteiro. Mas, às quatro horas da tarde, querendo-se um homem passar por terra para a cidade e não podendo com a grande quentura do fogo que descendo da serra o abrasava, se tornou à vila com grande pressa e com gritos, afirmando, com o medo que trazia, que toda a ilha era abrasada e por todas as partes ardia e que pela parte do ponente vinha tão perto pela frol da terra, queimando tudo, que brevemente seria na vila, o que fez grande alvoroço no povo e acolheram-se muitos, uns para S. João, outros para Nossa Senhora da Piedade, para a qual parte não aparecia fogo, e os mais para o mar onde estavam já alguns barcos dos que levaram a gente para o ilhéu, fugindo uns com suas trouxinhas, outros sem nada, porque, como não tinham esperança de vida, menos conta faziam da fazenda. Não ficou pessoa que não fugisse, senão o vigairo, com o padre Frutuoso Coelho e Jorge Barbosa Ferraz, que sempre o acompanharam, e o padre guardião com alguns dos seus religiosos. Aquele foi o maior desassossego e desacoroçoamento e com mais desatino que todos os passados. O padre guardião fez tirar as freiras do mosteiro e levá-las em carros e cavalgaduras para a igreja de Nossa Senhora da Piedade, da Ponta da Garça, onde se recolheram. E já de noite, estando aí muito povo dos termos da vila, que com a tribulação se havia despovoado a horas de Ave-Marias, começou outra vez de tremer a terra mui rija e asperamente, ouvindo-se de quando em quando os acostumados urros e estouros, e a nuvem branca se fez negra, cintilando monstruosamente, parecendo que botava de si fortes fusis e raios maiores dos que até ali se tinham visto, ouvindo todos uns tristíssimos uivos e grandes aulidos, e aparecia um espantoso fogo na nuvem mui longe que, por ser tão alta, na ilha de Santa Maria aquela mesma noite padeceram grande tribulação com medo dela, parecendo a todos então mais ser fogo do Céu, que estava sobre eles.
O vigairo que ficou na vila com seus dois companheiros e alguma gente que não pôde fugir e se tornou do porto para a igreja, fizeram uma procissão em que levaram o Santíssimo Sacramento, visitando as igrejas costumadas em que andaram até depois da meia-noite. E, rezando-se as matinas, se cantou missa e receberam alguns o Santo Sacramento, até que amanheceu.
Foi esta noite mais estranha e em tudo monstruosa, que nenhuma das passadas, e a toda a ilha a mais geral de todas, cuidando todos que sem falta acabariam, ou subvertidos dos montes que correriam, ou queimados do fogo que então aparecia mais que nunca.
Na Ponta da Garça, onde as religiosas e os mais cuidaram ter repouso, houve mais agonia, porque aí e daí para o norte e levante tiveram maior tribulação, por ser o vento oeste e levar para as ditas partes todos os raios e fusiladas do ardente fogo que da parte do ponente lhe ficava, as quais com as fachas e línguas caíam em terra e houve disso pessoas com os rostos e mãos chamuscadas. O padre frei Pedro e o pregador Simão Pimentel e outros padres, consolando as religiosas, fizeram também aquela noite procissão ao redor da igreja, com muitos penitentes e penitências. Na vila do Nordeste e seu termo, choveu muita cinza e pedras de diversas maneiras e desceu do dito fogo um raio e língua mui grande, entrando assim solta em uma igreja onde estava muito povo, e visivelmente se tornou nos olhos de alguns em uma figura horrenda de um bravo leão de fogo, e a outros, outras diversas formas, que parecia queimar toda a igreja e quantos nela estavam, dando muitos brados e espantosos rugidos, e logo desapareceu com grande espírito. Na dita vila caíram a mesma noite muitas casas e algumas igrejas, e em outras partes da ilha, como tinha acontecido à véspera e dia de S. Pedro, principalmente na vila da Ribeira Grande, onde aquela noite começou a cair o mosteiro das freiras, e pela manhã acabou de cair quase todo, mas em Vila Franca, nem igreja nem casa caiu, nem pessoa pereceu.
A quinta-feira seguinte, se fez outra procissão pelas costumadas igrejas e os que estavam na freguesia de Nossa Senhora da Ponta da Garça se tornaram para a vila sem ordem e sem acordo, cada um como podia, filhos sem mães, mulheres sem os maridos e viúvas sem companhia, sem pompas nem arreios, sem presunção nem gravidade, cobertas de cinza e banhadas de lágrimas. Também as freiras se tornaram e recolheram em seu mosteiro, o qual achando perigoso e destroçado, temendo mais mal por vir, se tornaram a sair dele no mesmo dia e se recolheram em uma honesta casa na mesma vila, até que cessou aquela tormenta e mandou Deus tranquilidade; e então se recolheram a seu mosteiro. Aquele dia todo da quintafeira, não tremeu a terra senão a horas de terça, dando dois ou três grandíssimos abalos e juntamente alguns estouros dos costumados mui grandes, mas por ali cessou de tremer e estourar. Nem dali avante se sentiu mais tremor algum em nenhuma parte da ilha. Somente o domingo seguinte se sentiram dois tremores grandes, pelo que tomaram todos alento, sem cessarem de fazer procissões. À tarde do mesmo dia, se fez outra procissão pelas igrejas que soíam e acabando de noite ficou a gente dormindo na igreja Matriz, porque das casas se não confiavam.
Logo à sexta-feira, dia da Visitação, se fez procissão da igreja Matriz à Casa da Misericórdia da mesma vila, onde se cantou missa e pregou o licenciado Simão Pimentel, em que persuadiu a todos que dessem ao Senhor infinitas graças e contínuos louvores pela grande misericórdia que com eles havia usado. E estando ainda no púlpito chegou o cura de Nossa Senhora da Piedade em procissão com muito povo, seus fregueses e outra gente da vila, todos descalços, homens e mulheres, como sempre faziam enquanto durou a tribulação passada, com cuja vinda houve novas lágrimas, sem saber donde já podiam manar tantas, pois todo o tempo atrás eram seus olhos contínuas fontes delas. Depois fizeram a procissão da Visitação costumada, com ladainhas, sem os alegres cantares costumados em tal dia.
Ao sábado seguinte, pela manhã, se fez uma procissão pelas igrejas costumadas, com o colégio dos religiosos como sempre, e à tarde outra.
O domingo amanheceu sereno e claro, ainda que depois choveu, e muitos dias dali por diante fazia o mesmo, e se fez outra procissão sem se levar o Santo Sacramento nela, mas mostrando-o ao povo. Dita a missa, se recolheram a suas casas todos, como hóspedes de novo nelas, onde, ainda que muitas ficaram abertas, nada nelas menos achavam, sem com isso ninguém ter conta, nem lhe lembrava comer, mantendo-se em lágrimas de coração porque, assim como a grande alegria tolhe a vontade de comer, assim também a imoderada tristeza mata a fome e cada um destes efeitos passa por mantimento àqueles que de coração os tem. A outros mais fracos, ministrava Deus por onde andavam com que se sustentassem.
Estando descansados e descuidados, a horas de meio-dia, subitamente, com grande ímpeto, deu a terra dois grandes e violentos abalos, espaço de um quarto de hora entre um e outro, que nunca de tal sorte, nem tão espantosamente, havia tremido. E com os tais tremores, àquela hora, caíram muitas casas em muitas partes da ilha. Principalmente na vila da Ribeira Grande ficaram daquela vez muito poucas em pé e estas ainda todas arruinadas e abaladas.
Na cidade e daí para o ponente, nem então, nem nos dias atrás, caiu casa alguma. Em Vila Franca, se fez outra procissão mui devota, como as outras.
A segunda-feira, se fez outra procissão à casa do Apóstolo S. Pedro e daí à casa de Nossa Senhora do Rosairo e pelos mais costumados lugares. E, começando todo o povo a tomar algum refrigério do trabalho passado, veio outro de novo, não tendo trigo segado, nem o podendo segar, pelo tempo chuvoso que fazia, nem tendo moinhos para o moer, por a passada fortuna ter atupida a ribeira dos Moinhos e alguns quebrados, pelo que cuidou a gente morrer à fome. Foram moer algum pouco trigo que podiam haver à vila de Água de Pau e ao lugar do Faial. Muitos se substentavam com ervas e peixe e carne do gado que matavam, por não perecer à fome e sede, pois os pastos estavam cobertos de cinza e as ribeiras secas e atupidas.
À tarde do mesmo dia, se fez outra procissão. Indo nela já de noite, saiu a lua que aquele dia era cheia; depois de sair, foi logo vista eclipsada em parte, sendo a metade dela, para a banda do sul, mui negra, e a outra metade, da banda do norte, clara e perfeita; na parte clara, com uma cinta preta que a partia em duas, maior a debaixo que a outra, à maneira da figura seguinte: — A qual durou espaço de três horas ou mais, até ir já a lua alta, e então se desfez o dito eclipse e ficou clara, o que deu a todos muito terror e medo, julgando ser algum pronóstico de algum infortúnio e de todos perecerem. Da meia-noite por diante, choveu tanta água que parecia que todas as fontes do abismo se rompiam, tanto que saíram todas as ribeiras de seus cursos, e a ribeira que corre pelo meio da vila começou a trazer consigo grandíssimos e pesados penedos e muitos paus e grandes madeiros, trastornando por fora de sua concavidade e canal, trazendo também muita lama de cinza e pedra pomes miúda, feita polme, com grande fedor de enxofre. E da mesma maneira corriam, todas as mais, fazendo tão grande estrondo e ruído que fazia tremer toda a vila, pelo que toda aquela noite andaram em procissão pelas naves da igreja Matriz, que quase, com a muita água que chovia, estava alagada.
Saindo da igreja a terça-feira seguinte os que nela estavam, viram como a ribeira tinha feito muitas perdas e danos e alagados alguns pomares, hortas, canaviais e outras coisas que ao longo dela estavam, deixando tudo raso e acravado de grande multidão de cinza e pedra pomes, e semeado de grandíssimos penedos e de outros pequenos. Levou também as cimalhas e ameias da ponte e algumas casas de pastel, meles e alcaçarias, sem perigar pessoa alguma. Quebrou esta cheia a água de que a vila bebia, pelo que se deram todos por perdidos à fome e à sede, por não haver outra de que bebessem e todas as ribeiras correrem polme de cinza; mas, logo no dito dia, tornaram a trazer ao chafariz água clara. No mesmo dia pela manhã, se fez uma procissão pelas igrejas e ermidas costumadas. Ao dia seguinte, quarta-feira, se fez outra; à quinta-feira, o mesmo; à sexta-feira, outra à igreja de S. Lázaro, arrabalde da vila, espaço de um quarto de légua; ao sábado, outra a S. João Batista, e à tarde se fez outra, como dantes soíam.
Domingo seguinte, se fez outra semelhante e outra à tarde, em que o vigairo amoestou que dessem graças a Deus pelos livrar da morte que cada hora diante de si viam, e conservassem as novas amizades e reconciliações que, quando se viram na necessidade, fizeram, dizendo que dali em diante faria uma procissão cada domingo, já que até ali tinha feitas trinta e duas grandes, afora outras feitas ao redor da igreja, que por todas passavam de quarenta, para que nos dias de serviço pudessem recolher as novidades. E ordenou uma confraria de S. Pedro, em cujo dia todos haviam visto a morte presente, de que Nosso Senhor os livraria, na qual todos os sacerdotes entraram por confrades e outras pessoas devotas, para que, já que Deus por sua intercessão lhes deixara as vidas, lhes desse também graça para que as emendassem.

No tempo do ilustre Capitão Manual da Câmara, único do nome, veio ter a esta ilha de S.
Miguel D. Jorge Pereira, filho do conde da Feira, ainda moço, sem saber cujo filho era; cujo nascimento foi na cidade do Porto em uma rua que se chama a rua Chã; daí foi dado a criar a um ferreiro e a sua mulher, que moravam na rua dos Canos da dita cidade, o qual o criou com muito segredo, não sabendo quem fosse seu pai, senão que era filho de um senhor, por ser sua mãe dos principais da cidade do Porto e correr muito perigo, sabendo-se quem o parira. O ferreiro e sua mulher, depois de o criarem dois anos, se foram morar a Lisboa, onde o tiveram em seu poder até idade de onze anos, em que faleceu a mulher do ferreiro. Estando no artigo da morte, ouviu dizer D. Jorge, que então se chamava Jorge somente, a seu marido, chamando-o por seu nome: —encomendo-vos muito este menino, porque é filho de um senhor deste Reino e alguma hora quererá Deus que se descobrirá. O Jorge, quando isto ouviu, disse: — como não sou eu filho de vossa mercê?; e o ferreiro pelejou com ele, pelo que se calou, mas sempre trouxe aquilo no sentido. Daí a certo tempo, casou o ferreiro com outra mulher da sua terra, dez léguas acima do Porto, a qual Ihe ficou em nome de madrasta. Sucedendo-lhe um desastre ao ferreiro, se tornou com a segunda mulher para sua terra e indo pela estrada para o Porto, junto do castelo da Feira, recolhendo-se de muita água que chovia, ao redor de um penedo, ouviu dizer Jorge ao ferreiro: — este moço que aqui trago é filho de um senhor desta terra, segundo me quizeram dizer, mas não o sei em certo. Tomou o moço aquelas palavras no sentido, mais do que dantes tinha. E chegando à cidade do Porto, pousando o ferreiro em casa de um seu primo sarralheiro , Ihe perguntou o dito sarralheiro se era aquele o moço que dali levara: respondendo-lhe que sim, Ihe disse: — pois devieis-vos de dar a conhecer com seu pai e dar-lho. — Não ouso fazer isso. Depois apartaram-se e falaram ambos sós, sem Jorge os ouvir. Dali se foram caminho de Campelo, donde era natural o ferreiro. Lá esteve Jorge com ele, por espaço de dois anos e meio. Neste tempo, foi o ferreiro a Lisboa, deixando a Jorge em casa de dois irmãos, guardando-lhe ovelhas, cabras, vacas e porcos, por tempo de nove meses, no cabo dos quais chegou o ferreiro e o tornou a levar para sua casa, onde sua mulher o tratava mal de comida, pelo que o moço algumas vezes fazia por Ihe furtar coisas de comer.
E uma vez, estando-lhe tomando de uma arca umas poucas de castanhas, deu ela sobre ele, tomando-o no salto e Ihe deu muito açoite com um cordão. Acudindo uma mulher de um cuteleiro, sua vizinha, lhe disse: — porque dais assim em Jorge?, não é ele vosso filho, ou como? — Respondeu: — não, nem é filho de Nicolau Gonçalves. — Respondeu-lhe: — pois cujo filho é? — Disse ela: — diz que o criou em sua casa e que é filho de uma Fuã de Macedo, da rua Chã, e de um fidalgo, mas não sabe qual. A vizinha, quando isto ouviu, foi-se aonde estava Jorge chorando e levando-o nos braços se pôs a chorar com ele, dizendo-lhe: — filho, tu és filho das Macedas da cidade do Porto com que eu me criei, e filho de um grande senhor.
Então tomou o moço mais em sentido isto que dantes. E fugiu logo, indo-se à cidade do Porto, onde perguntou pelas Macedas da rua Chã, e dizendo-lhe onde moravam, foi lá. Querendo entrar pela porta e subir ao sobrado, não ousou, por não ter quem o ajudasse. Tornou a pôr-se em caminho para Lisboa, onde dantes se criara, e foi ter a casa de um relojoeiro aragoês , de Valença de Aragão, que ali o ajudara a criar, por ser vizinho conhecido do ferreiro que o criara, quando morava na dita cidade de Lisboa. Esteve ali o moço com o relojoeiro espaço de três meses, no fim dos quais tendo necessidade de um homem para o ajudar, foi ter com um ferreiro de Ponte de Lima que fora desta ilha, e levando-o para sua casa por obreiro; vindo acaso um dia, perguntando-lhe as coisas destas ilhas e pelas Furnas, Ihe disse que ele estivera nesta ilha de S. Miguel com um Jorge Gonçalves, ferreiro, morador na vila da Ponta Delgada, defronte da igreja de S. Sebastião, irmão de Nicolau Gonçalves, que o criara, os quais se carteavam, estando Nicolau Gonçalves em Lisboa pola qual notícia, Ihe perguntou o moço se conhecia a Jorge Gonçalves; dizendo-lhe que sim, porque era primo de sua mulher, naturais de Ponte de Lima, e que estava bem. Dizendo-lhe o moço que se queria ir para ele, porquanto era irmão do ferreiro Nicolau Gonçalves que o criara, e o tinha em nome de tio, respondeu que faria bem em ir ter com ele, porque Ihe faria muitos bens. Tirou-se então o moço de casa do relojoeiro e buscando passagem, se veio com um sapateiro chamado João Marques, e com Baltasar Lopes, homem baço, tosador, que o trouxeram a casa do dito Jorge Gonçalves, que o agasalhou muito bem nesta ilha como sobrinho, dizendo todavia a algumas pessoas que aquele moço não era filho de seu irmão, mas que folgava muito com ele e o tinha em conta de sobrinho. Estando nesta casa o moço, a cabo de seis meses, vendo tanta pobreza e que tinha tantos filhos, Ihe disse que o pusesse a aprender o ofício de ferreiro, e fosse com Francisco Pires Leal, por ser bom homem, e assim o fez; esteve com ele sete anos. E tendo acabado de aprender o ofício, querendo-se ir caminho do Reino para saber quem eram seu pai e mãe, se casou com uma filha de Gaspar Fernandes, mestre e senhorio de um navio, que agora se chama D. Guiomar, mulher de grande virtude. Sempre suspirando ele e dizendo antre si que havia de saber quem era. Vindo aqui o padre pregador Frei Manuel Marques, da ordem de S. Francisco, sabendo o dito D. Jorge que o padre era da cidade do Porto, se foi ter com ele e Ihe deu conta como nascera na rua Chã e era filho de uma das Macedas, perguntando-lhe se sabia porventura alguma coisa, e que era também filho de um senhor do Reino, segundo Ihe diziam pelas atoardas ditas atrás, contando-lhas todas assim como as ouvira. Ele chamou a Frei António, seu irmão, perguntando-lhe se alguma hora ouvira dizer a sua mãe, que era mulher muito velha, que as Macedas pariram de algum fidalgo; disse-lhe que nada ouvira.
Tomando-lhe ele afeição e amor, de muitas vezes que o ia visitar, veio a suceder caso por onde o irmão Frei António se foi para o Reino, por um desgosto que teve com o padre Frei António Alarcão, e prometeu-lhe que lá saberia parte de tudo, de sua mãe e de outras pessoas antigas, o que cumpriu assim, praticando-o na cidade do Porto com o padre pregador Frei Gaspar do Porto, e ambos pediram licença ao guardião para irem à cidade saber parte disto, por via de sua mãe e mais pessoas; onde foram ter à rua Chã, a casa de uma tia do dito D. Jorge, irmã de sua mãe, à qual perguntando, conforme à informação que Ihe davam, se pôs ela em negá-lo, todavia inquirindo o padre Frei Gaspar com mais instância, dizendo-lhe que o teria em muito segredo, pois era também parente, confessou ela ser verdade que uma sua irmã houvera um menino, chamado Jorge, da idade que eles diziam, do conde da Feira, D. Manuel Forjaz Pereira, e que folgava muito de ele ser vivo; o qual o conde, antes que falecesse, mandara buscar pela cidade do Porto e seu termo, e em Campelo, sem o poderem achar, porquanto neste tempo era fugido a esta ilha. E disse que por seu falecimento deixara o conde dito que se alguma hora achassem este menino e tivesse um sinal que ele punha a seus filhos que o recolhessem por seu filho. Vendo os padres isto, Ihe escreveram que se fosse ver com ela. E assim o fez o dito D. Jorge Pereira, e tirou um estromento em que provou ser filho do dito conde. Tornando a esta ilha e achando ao padre Frei Manuel Marques de caminho para o Reino, Ihe deu o estromento para o apresentar ao conde, seu irmão; o que o dito Frei Manuel fez com muito cuidado; praticando com o conde, mostrando-lhe juntamente o estromento, se pôs o conde em o negar, confessando todavia que o estromento estava bom e o nome e a idade assim era, mas que poderia ser morto e outrem tomar aquele nome. Replicando Frei Manuel que remédio se havia de ter, pois D. Jorge Pereira provava ser tal? Respondeu o conde: — padre, se ele não tiver um sinal que têm todos os filhos de meu pai, assim bastardos como legítimos, ele não é este. Perguntando-lhe Frei Manuel que sinal era, Iho disse o conde.
Então escreveu tudo o que passara com ele e respondeu D. Jorge Pereira a Frei Manuel que tinha o dito sinal. Sendo as cartas no Reino, neste meio tempo veio ter a esta ilha o licenciado Gaspar Leitão por juiz de fora da cidade da Ponta Delgada, e trouxe recado do conde que soubesse de D. Jorge se tinha o sinal e se era bom homem, que manhas tinha, se era casado e com quem, porque se era homem de pouca conta o não aceitaria por irmão, mas se tivesse boas partes e o sinal, que o faria, e que assim Iho escrevesse. Sabendo D. Jorge que Gaspar Leitão perguntava por ele, por parte do conde, e que era de sua casa, se foi ver com ele uma noite. Perguntando-lhe que buscava, Ihe respondeu: — eu sou Jorge Gonçalves Pereira. Ele não aguardou mais, senão deu muito depressa à cadeira e o levou nos braços, dizendo-lhe: — senhor, vós sois irmão do senhor conde da Feira, porque vos pareceis com ele, e haveis de ter um sinal. Respondeu D. Jorge: — sim, tenho; de que ele folgou muito. E Ihe disse que fosse logo ter com o senhor conde D. Diogo Forjaz Pereira e levasse cartas suas. Assim se embarcou no primeiro navio e foi ter com o padre Frei Manuel Marques à cidade do Porto, que já tinha falado com sua tia, que Ihe escrevera uma carta se fosse ver com ele e com o conde; a qual tia, com muito contentamento, mandou dizer logo a sua mãe, que estava em Braga, que seu filho, que ela parira, era achado e que cada dia estava esperando por ele, o qual fora descoberto por uns padres de S. Francisco. Neste tempo, chegou D. Jorge Pereira ao Porto, donde foi caminho de Braga ver sua mãe por conselho de sua tia, dizendo-lhe que dissesse que era filho de outra sua tia, já falecida; e assim entrou por sobrinho, por amor de seu marido com quem estava casada.
Vendo-se com sua mãe, Ihe disse ela a maneira de seu nascimento, e como o houvera do dito conde de idade de dezasseis anos, e andando prenhe fizera alguns remédios para mover dele, para não ser sentida, por amor de sua mãe e parentes, e fora parir a casa de um seu tio de que mais se confiou; o qual, depois dela parir, a casou em nome de viúva; dizendo-lhe mais que o não vira senão à hora que o pariu; e que tivera o conde tal diligência, que mandara saber àquele tempo do parto por três criados seus, armados, e tanto que ela parira o tomaram e levaram aquela noite a casa de uma mulher que morava à porta de cima de Vila, da cidade do Porto, onde Ihe deu de mamar aquela noite e um dia; e dali ouvira dizer que o deram a um ferreiro, e que nunca mais souberam novas dele. Despediu-se de sua mãe, foi ter à cidade do Porto com o padre Frei Manuel Marques; e por saberem que o conde não estava na terra da Feira, se foram ambos caminho de Lisboa, onde o acharam. E o dito padre o apresentou ao conde, dizendo-lhe: — senhor, este é vosso irmão. O conde folgou muito com o ver e indo D. Jorge para Ihe beijar a mão, ele Ihe disse: — não, que sois muito meu irmão, porque vos pareceis muito com meu pai. E o levantou e tomou pela mão e assentou em uma cadeira a par de si, perguntando-Ihe de sua vida que tal fora, dando muitos agradecimentos ao padre Manuel Marques por ser tanto seu amigo e chegá-lo a tal descobrimento. Tornando-lhe a perguntar de sua vida, respondeu: — senhor, não venho enganar a vossa senhoria, faça-me mercê, queira ver o sinal que me mandou dizer que eu havia de ter, e saberá por ele se sou seu irmão. E vendo-o, folgou muito, e o recolheu e acceptou por irmão. Tornando ao outro dia, tornando-Ihe a perguntar o conde por sua vida, Ihe respondeu D. Jorge que levara muitos trabalhos e que o ferreiro que o criara de oito anos o começara a fazer malhar pregos em cima de uma gamela, por ser pequeno, e dali Ihe ficara o ofício de ferreiro, o qual sempre usara até aquele tempo presente, em que estava diante de sua senhoria. O qual Ihe passou logo por sua letra uma certidão de quem era, assinada por ele, em que dizia ser verdade que, estando na cidade do Porto o conde seu pai, D. Manuel Pereira, já defunto, houvera de Florença de Macedo, filha de um cidadão da dita cidade, ao dito Jorge Gonçalves Pereira, que ora era morador na cidade da Ponta Delgada, da ilha de S. Miguel; e por Ihe constar assim, por estromentos e certidões disso, como também por um sinal que somente os filhos de seu pai todos tinham, o qual o dito Jorge Gonçalves Pereira tinha, pelo qual Ihe pertencia chamar-se dali em diante D. Jorge Pereira, como se chamavam os outros filhos bastardos do conde, seu pai, que Deus tem, e se ora chamam; portanto, ele e sua mulher, filhos e filhas tinham o dom, e se poderia chamar daí por diante assim, por Ihe pertencer direitamente por seu sangue, e filho de seu pai, e irmão seu, o que certificava tudo ser assim, e pedia a todos os corregedores, juízes e justiças que Ihe guardassem todas as preeminências, honras e liberdades que ele dito D. Jorge Pereira tinha e Ihe pertenciam. E para sua guarda, por verdade, fizera a dita certidão de sua letra e sinal, na cidade de Lisboa, a vinte e quatro dias de Novembro de mil e quinhentos e setenta e três anos.
Chegando o dito D. Jorge Pereira a esta ilha, já conhecido por quem era, o juiz de fora, o licenciado Gaspar Leitão, e os vreadores e muitos homens nobres e quase todo o povo o foram receber quando desembarcou no cais da cidade da Ponta Delgada, acompanhando-o para a igreja e daí até sua casa, e Ihe fizeram a honra que ele merecia daí por diante; o que sabendo o conde, escreveu uma carta de agradecimentos aos oficiais da Câmara da cidade, em que dizia que em muita obrigação o puseram com o honrado gasalhado e recebimento que a seu irmão D. Jorge fizeram; que a honra não a dava senão quem a tinha, e por isso o que de sua casa e pessoa cumprisse à Câmara e em particular a cada um dela, faria ele com muito gosto; isso tivessem por muito certo todos, a quem pedia que o mesmo fizessem a seu irmão, porque à sua conta o tomava e a ele o faziam. Mandando el-Rei chamar a D. Leoniz, irmão do dito D. Jorge Pereira, que esteve na Índia por capitão de Malaca para o mandar por capitão e governador de Cepta , onde estava o marquês de Vila Real, que el-Rei mandou vir, escreveu o dito D. Leoniz a D. Jorge Pereira que logo fosse ter a Cepta com ele, onde o esperava, e levasse um seu filho consigo, para estar ali com ele ganhando uma comenda. O que querendo fazer o dito D. Jorge, soube como lá era falecido seu irmão. Tem D. Jorge Pereira quatro filhos e uma filha; o primeiro, chamado D. Pedro Pereira, foi com seu pai para o Reino na era de mil e quinhentos e setenta e nove.
Dizem que el-Rei o filhou no foro de seu avô, o conde da Feira D. Manuel Forjaz, com quarenta e sete mil réis de moradia.

Não querendo D. lnês, mulher do Capitão João Roiz da Câmara, que outros chamam João Gonçalves, vir sem uma Caterina de Moura, sua ama, para esta ilha, veio com ela a dita Caterina de Moura por mandado de el- Rei, com uma sua filha, chamada Inês Moura, colaça da dita D. lnês, a qual casou o dito Capitão João Roiz com Pedralvres, e dele houve a Guiomar Alvres, que casou com Pero Vaz Feio, o Mestre, filho de João Vaz das Virtudes; o qual Pero Vaz houve dela dois filhos e duas filhas. O primeiro filho se chamou João Roiz Panelas de Pólvora, homem de muito nome na Índia, onde morreu e ganhou muita honra, fazendo muitos serviços a el-Rei, como logo direi. Outro se chamou Gaspar Roiz, que faleceu indo para a Índia. Das filhas, uma se chamou Simoa Vaz, que casou com Gaspar Pires Columbreiro. A outra, chamada Francisca Feia, casou com António de Braga, cidadão da cidade do Porto e faleceu na Índia em serviço de el-Rei, no reino de Bengala, do qual teve dois filhos: o primeiro, João Ferreira de Braga, que casou com Breatiz Mendes Raposa, irmã da mulher de João Roiz Panelas de Pólvora, e tem quarenta mil cruzados de seu; o segundo, Pero de Braga, que casou tão rico como seu irmão com uma neta de Micia Cansada. E ambos moram na cidade de Chaúl.
João Roiz Panelas de Pólvora teve um filho e duas filhas. O filho, chamado Martim Roiz, mora em Goa, onde é escrivão do resto dos contos, com mil cruzados de renda cada ano. A primeira filha, chamada Teodósia Raposa, casou com Francisco Peçanha, fidalgo, natural de Tavira, do Algarve. A segunda, Catarina de Figueiredo, casou com D. Leonardo de Noronha, neto do conde de Mira.
Estando João Roiz Panelas de Pólvora nesta ilha de S. Miguel, o chamaram um dia dois mancebos, filhos de Luiz Vas de Lordelo, de alcunha o Potaz, para ir com eles a uma coisa que muito Ihe importava, e o levaram a uma serra, arriba da vila de Água do Pau, onde esperaram grande espaço, até que chegou a eles um homem honrado desta terra, chamado Belchior Manuel, ao qual arremeteram os dois irmãos e andaram muito tempo a braços, por ser ele muito forçoso e valente. Estando João Roiz Panelas de Pólvora apartado um pouco deles e demudado com uma gualteira de rebuço, chamaram por ele, e, chegando a eles, Ihe disse que, se soubera o para que o chamaram, não fora em sua companhia; mas, contudo, que ele o amarraria, para que o injuriassem e não matassem. Assim o amarrou só, e depois de bem atado Ihe quiseram cortar as partes pudendas; ele os tolheu que tal não fizessem, que morreria disso, mas que o injuriassem, pois diziam que tanto os injuriara, contanto que ele não perigasse; então Ihe cortaram as orelhas e, deixando-o amarrado, fugiram. Belchior Manuel, como era forçoso, desamarrando-se, foi chamando aque d’el-Rei a grandes brados, até a cidade da Ponta Delgada, donde foi o corregedor Francisco Toscano logo aquele dia à vila da Ribeira Grande para os prender. João Roiz, determinando de se ir para as partes de além, se embarcou um dia de Corpo de Deus na dita cidade, em trajos de marinheiro, e foi ter à cidade de Safim, onde fez tais coisas que Afonso Raposo, um dos principais cavaleiros que havia na dita cidade de Safim, onde tinha de el-Rei uma porta da cidade, que se chama a Medina, e a terça de todas as coisas que por ela entravam, o casou com sua filha. Dali se foi a Lisboa e alcançou de el-Rei um alvará de liberdade por seis meses, que nenhuma justiça entendesse com ele; com o qual veio a esta ilha e achando seu pai Pero Vaz falecido na vila da Ribeira Grande, onde morava, se tornou logo a embarcar para Lisboa, e daí para a Índia, onde fez grandes coisas de muito esforço e valentia em muitas partes. E no primeiro cerco de Diu fez o que agora direi.
Segundo se conta, no ano de mil e quinhentos e trinta e sete, tendo já o governo desta ilha o ilustre Capitão Manuel da Câmara, foi el-Rei D. João, terceiro do nome, avisado de uma armada que aparelhava o Grão-Turco para mandar sobre a Índia, a instância da mãe do sultão Badur, rei de Cambaia, que os portugueses mataram em Diu por treição que Ihes queria fazer, tendo-se carteado com todos os reis da Índia, que cada um se alevantasse e matasse todos os cristãos que houvesse em seus reinos; e dizem que, ao tempo que esta treição se ordenava, tinha já mandado chamar ao governador Nuno da Cunha, determinando de o colher em uma horta sua, com todos os lascarins, onde estando muito confiados e descuidados os mataria com vinte e cinco mil lascarins que tinha escondidos na cidade, antre a nossa fortaleza e a horta, onde havia de ser o jantar e convite, porque daquela maneira não podia escapar homem vivo. Descoberta esta treição, o tomaram os nossos na barra de Diu, vindo ele a visitar o governador, para mais dissimulação, ao galeão onde o governador se fingiu doente, e ali Ihe mostrou a carta. E, querendo ele fugir em um bargantim foi morto pelos portugueses; dos quais naquela envolta morreram catorze homens dos principais que havia na Índia.
Este sultão Badur tinha grande tesouro, o qual mandou a mãe todo ao Grão-Turco, que a quisesse vingar da morte de seu filho, o que ele pôs por obra com a mais presteza que pôde. E mandou um eunuco, chamado Soleimão Bassá, com setenta galés e quatro naus grossas, com muita artilharia de bronze, e doze mil turcos, afora vinte e seis mil soldados, que estavam em Cambaia para os ajudar. Tudo isto foi à Índia. Da qual preparação, sendo el-Rei de Portugal avisado, mandou aquele ano catorze naus, três de aviso e onze, que partiram em Março, e chegaram todos a um tempo, pouco mais ou menos, a Goa, a quatro de Setembro de mil e quinhentos e trinta e oito, e esse mesmo dia começaram a dar bataria à nossa fortaleza em Diu.
Nas três naus de aviso foram muitos homens destas ilhas dos Açores. Desta de S.Miguel, foi João Roiz, que depois se chamou Panelas de Pólvora, Sebastião Carneiro, Gaspar Roiz de Sousa, Belchior Mendes Potaz, um filho de Hierónimo Gonçalves, de Vila Franca, e outros a que não soube o nome. Da ilha Terceira, foram Gil Correia e Bartolomeu Correia, irmãos de frei Filipe que foi vigairo na vila da Praia, João Machado. Todos estes se acharam no primeiro cerco de Diu, sendo governador da Índia Nuno da Cunha e capitão da fortaleza de Diu, António da Silveira de Meneses, como tenho dito. E, indo a armada do Turco para tomar a Índia a instância de Coje Çofar, geral dos mouros, a fez surgir aí, dizendo a Soleimão Bassá, capitão do Turco, que tomasse aquela fortaleza primeiro, porque todo o mais da Índia era mui fácil de render. E ainda que de todos estes insulanos se fala hoje em dia na Índia quão cavaleiros foram, porque não pude saber as coisas que fizeram, direi o que fez João Roiz, que chamam Panelas de Pólvora, e um Manuel Roiz, seu tio, os quais mandou então o capitão António da Silveira à banda de Gogolá em uma almadia a ver se podiam tomar algum mouro, para saberem os nossos onde estavam as galés que não fizeram mais que dar uma surriada à nossa fortaleza; e passaram para ilha dos Mortos, doze léguas de Diu, sem saber mais delas.
Passados João Roiz e Manuel Roiz, seu tio, da banda de Gogolá, embrenharam-se e estando escondidos, esperando algum mouro ou pessoa que pudessem levar ao capitão, não vinha ninguém; mas, sendo muita parte da noite passada, acertou de vir um capitão com doze lascarins pelo passo onde estavam esperando o tio e o sobrinho, os quais, saindo da brenha, deram Santiago neles, de maneira que feriram e mataram muitos dos turcos, ficando somente quatro com eles, já cansados; arremetendo então João Roiz, tomou um turco debaixo do braço, recolhendo-se com ele e o tio. Levando o turco, que foi metido a tormento, diante da Capitão António da Silveira de Meneses, o qual, depois de informado do que passava, mandou meter o turco em uma bombarda e atirar com ele para a cidade onde estavam os mouros que tinham cercada a nossa fortaleza.
Neste primeiro cerco de Diu, em um tratado pequeno que dele fez Lopo de Sousa, fidalgo, que se achou presente na dita fortaleza, sendo ele capitão de um estância dela, conta que, continuando-se o cerco havia muitos dias, sendo morta muita gente e as munições e forças dos nossos quase gastadas, tendo os imigos um baluarte foi um João Roiz das ilhas Terceiras a sua casa, e trouxe uma jarra de pólvora que, segundo a necessidade que tinham dela, a devia ter bem guardada. Subindo ao baluarte, disse: — dai-me lugar, senhores, que aqui trago o ataúde para mim e para nossos inimigos; e a arremessou com tanta força e fez tão bom emprego, queimando tantos dos mouros, que os fez largar tudo o que tinham tomado.
Fez este João Roiz, neste primeiro cerco de Diu , coisas de muito grande esforço e valentia, tanto que o governador trazia depois sempre os olhos nele; e ele e os capitães das fortalezas o estimavam muito. Estando Diu no dito cerco em grande perigo, puseram João Roiz em uma estância muito fraca, onde fez tais coisas com um montante, que dava muito esforço aos cristãos e temor aos mouros quase um dia todo, e sendo já tarde Ihe trouxeram muitas panelas de pólvora e ele as botava com muita desenvoltura e força sobre os imigos, por ser mui braceiro; o que vendo o capitão, mandava aos soldados com muita pressa que Ihas dessem. dizendo: — ali, ali a João Roiz, panelas de pólvora; donde Ihe ficou o apelido que alcançou com muito grande perigo e honra, e el-Rei Iho confirmou e Ihas deu por armas.
Depois fez o mesmo João Roiz, na Índia, coisas mui grandes; em tanto que no segundo cerco de Diu, sendo capitão D. João Mascarenhas, que foi na era de mil e quinhentos e quarenta e seis, todos Ihe obedeciam, como ao mesmo capitão, por o capitão assim o mandar.
E não somente João Roiz, mas os naturais destas ilhas, lá por essas partes, são havidos por muito homens para a guerra e louvados de todos.
O sogro de João Roiz Panelas de Pólvora, cavaleiro dos principais de África veio de Safim a Lisboa requerer seus serviços, por el-Rei largar a dita cidade aos mouros; trouxe sua mulher, e filhos e filhas, e entre elas a mulher do dito João Roiz. El-Rei Ihe deu um ofício de muita honra e proveito no Algarve, e estando para o ir servir, faleceu na Corte; pelo que sua mulher pediu a el-Rei que Ihe mandasse vir seu genro, que havia anos que andava na Índia, e houve um alvará para que o viso-Rei o mandasse vir, o qual escreveu a Sua Alteza que João Roiz era muito necessário na Índia para o servir, por ser muito para isso, e que Sua Alteza Ihe mandasse sua mulher com muita honra, como ele a merecia. Vendo el-Rei o que Ihe escrevia o viso- Rei ou governador, Ihe mandou à sua custa sua mulher e irmãs, que eram seis, e dois irmãos e sua sogra, dez pessoas por todos, chegando à Índia no tempo que João Roiz estava em Goa muito ferido e desbaratado do cerco de Diu. O governador e muitos senhores e fidalgos da Índia e muitos capitães de fortalezas Ihe mandaram muitos pardaos e socorreram muito bem, como ele por seu esforço merecia. E, pelos muitos serviços que na Índia fez a el-Rei, Ihe fez Sua Alteza muitas mercês, entre as quais foi fazê-lo veador da fazenda na cidade de Diu, donde uma vez, partindo para Goa, gastou na viagem com sua família e soldados duzentos mil réis, tão bem se tratava e estimava. E muito mais o estimavam todos. Faleceu na cidade de Goa de sua enfermídade e tinha o ofício de recebedor dos restos, com mil cruzados de renda cada ano.

Os vassalos de muitos serviços têm tantos merecimentos diante de seu Rei, como os virtuosos e santos diante de Deus. E nisto somente têm diferença às vezes: que a paga de Deus verdadeiro é certa e infalível, e o mundo enganoso a muitos falta com o prémio devido, pagando a uns com menos do que merecem, e a alguns com vãs e compridas esperanças, e a outros, que mais se desentranham e desvelam pelo servir, vem galardoar com a reposta do cruel e injusto provérbio, dizendo que quem melhor o serve peor galardão há-de haver. Não sei de que vem isto, ou os Reis da terra não vêem ou não crêem a fama certa dos famosos, ou os seus leais vassalos e bons servidores não têm homem que os leve à piscina, como o pobre e desamparado paralítico, ao qual se Deus, sem rogos, sem merecimentos nem aderência, curou e fez mercês, tendo-o ofendido, quanto melhor as fará a quem Ihe fizer leais serviços? Pelo que, se a mínima parte do que fazemos ao mundo, fizéssemos a Deus, clara consequência é que seríamos santos e muito privados d’Ele, que sempre dá mais do que esperamos, nem desejamos. Digo isto pelo pouco galardão que teve dos Reis um Henrique Barbosa da Silva, natural desta ilha de S. Miguel, filho de Hector Barbosa da Silva, irmão de Nuno Barbosa e de Pero Barbosa da Silva, nobres fidalgos que nela vivem; o qual, no tempo do Capitão Manuel da Câmara, indo-se desta ilha, de idade de vinte anos, para a Índia de Portugal, nunca lá esteve ocioso no serviço de el-Rei, fazendo sempre nele heróicos feitos a todos notórios, imitando a seus avós Barbosas e Silvas, donde descende. Estando na Índia quando D. Antão de Noronha, viso-Rei que foi dela, tomou posse daquele Estado, serviu a el-Rei em todo o seu tempo, prestes a tudo o que sucedesse e o achou dando mesa seis meses a sessenta soldados na fortaleza de Honor, que estava de guerra, onde fez muitas entradas por mar e por terra no reino da rainha de Jarcopá, em que Ihe cativou e matou muita gente, e queimou povoações com todos os mantimentos, em que recebeu muito dano. E, vindo-se para Goa, o mandou o dito viso-Rei à costa do Malabar, com D. Diogo de Meneses, por capitão de uma fusta, onde andou todo o verão, achando-se em todos os sucessos que se nele acometeram; e tornou a invernar a Goa e ali o acompanhou até Agosto de setenta e três, que o mandou à costa do norte por capitão de uma galeota, em companhia de Jorge de Moura, esperar as naus de Meca, que tinham por novas que haviam de entrar em Dabul, até se fazer o viso-Rei prestes para ir a Damão; na qual ida o acompanhou sempre, e no trabalho da fortificação das tranqueiras o achou mui aparelhado com os seus soldados em tudo aquilo que era serviço de Sua Alteza. E, querendo-se recolher para Goa, o deixou na cidade de Damão, dando mesa a cem soldados, com uma bandeira, onde fez muito serviço a el-Rei, indo ao campo muitas vezes pelejar com o rei de Sarzeta e com os Mogores, imigos nossos. Correndo assim na paz e na guerra com mesa dos soldados mui diferente dos outros capitães. E por faltar o dinheiro na terra, que tinha necessidade de soldados, alevantando-se as mesas, ele correu com a sua mui largarmente, até o provedor da fazenda Ihe pedir que a alevantasse, por muitas razões que para isso Ihe deu. E, alevantando-a, se recolheu com muitos soldados em sua casa, a que dava de comer à sua custa, e assim esteve até a entrada do verão, que o viso-Rei mandou Fernão Teles ao norte, e, por ver estar a terra segura, se veio para Goa com muito gasto e despesa. Indo o dito viso-Rei para Mangalor, se embarcou com ele e achando-se na tomada da cidade de Olalá, em todas as brigas e guerras que houve, enquanto se fez a fortaleza São Sebastião, onde o feriram de uma frechada que Ihe atravessou uma perna, pelo que o dito viso-Rei afirmou ser Henrique Barbosa da Silva um dos homens que bem serviu a Sua Alteza e a quem devia fazer mercês pela levidão, gosto e gasto com que o servia.
Não somente o viso-Rei D. Antão de Noronha afirmava isto dele, mas também António Moniz Barreto, governador que foi da Índia, o qual, tomando posse do dito governo, achou nele servindo a el-Rei Henrique Barbosa da Silva, vindo então de Damão, onde fora invernar e acabar de dar uma mesa a soldados. E em todo o tempo de sua governança esteve prestes para o que cumprisse. Mandou-o com D. Filipe de Crasto, capitão de Damão, a dar lá uma mesa, oferecendo-se ao governador para ir de socorro a Malaca e acompanhá-lo com uma galeota, quando fosse fora. Pelo que o tinham em tão boa conta que assim o viso-Rei, como os governadores, o encarregavam de muitas coisas honrosas, escrevendo-lhe cartas de muita cortesia, amor e honra.

No ano de mil e quinhentos e sessenta e seis, indo D. Jorge de Meneses Baroche por mandado do viso-Rei D. Antão de Noronha ao Estreito, por capitão-mor de uma armada, e que daí fosse invernar a Muscate, sendo-lhe necessário ir a Ormuz buscar provimento, foi na armada de remo e chegando lá teve por novas serem saídas galés de turcos, pelo que mandou logo trazer a armada para Ormuz; e, fazendo-se prestes para os ir buscar, por ter pouca armada, armou três galeotas que tomou aos chatins, e nove fustas, e deu uma a Henrique Barbosa da Silva, que consigo levava por mandado do viso-Rei, o qual se negociou como cumpria a serviço de el-Rei. Sabendo das espias como as galés não saíram, passando o inverno se recolheu a Goa e, indo doze léguas de Diu, Ihe deu uma tormenta que durou vinte e quatro horas, em que Ihe quebraram os mastos e perderam fustas de sua companhia; na qual tormenta, com sua diligência e bom esforço, foi grande parte para se o galeão não perder.
Estando Jorge de Moura por capitão da fortaleza de Santa Catarina de Honor, pelo viso-Rei D. Luis de Tayde , além de dar nela o segundo ano mesa por seu mandado, o dito Henrique Barbosa da Silva, a uma companhia de sessenta soldados, tempo de dez meses por estar de guerra e cerco com o poder da rainha de Jarcopá e gente de Reis seus vizinhos, e estrangeiros que para bem da guerra mandou vir, cercando a fortaleza pela banda da terra com tranqueiras, bastiões e valos, donde fazia a guerra e pelejava, e cometendo uma ante-manhã, arvorando algumas escadas, essas e outras que para isso vinham Ihe fez largar, pelejando com eles a mor parte do dia, estando na dianteira Henrique Barbosa da Silva. No qual combate, e outras saídas e guerras que pelo rio fez, Ihe mataram mais de quatrocentas almas, afora muitas cativas, e recolheram à fortaleza noventa e tantos escudos e muitos feridos. E, indo pelo rio acima duas vezes pelejar, matou e feriu muitos negros, queimando muitos mantimentos, pagodes e mesquitas, e fazendo outros muitos danos.
Em outra saída que se fez, o mandou o capitão recolher a gente por os imigos serem muitos e andarem muito trabalhados, o que fez bem e com muita presteza, donde saiu ferido duma frechada que Ihe passou uma mão. Quando deu o capitão nos inimigos e Ihe fez alevantar o arraial, foi Henrique Barbosa o primeiro homem que os seguiu, pondo sua bandeira mais ao longe, levando os imigos, pela parte e terço que Ihe coube, mui apressados até largarem bem do campo. Nestas e outras saídas, rondas e vigias, cumpriu com sua obrigação, como devia.
Mandando João de Sousa, capitão da cidade de Damão e suas terras, requerer a Ramadarava, rei de Sarzeta, que quisesse cumprir o contrato das pazes que tinha feito, e não querendo ele, entrou por suas terras com mão armada e Ihe mandou queimar as principais aldeias que tinha, em que recebeu muito dano de mantimento e gado, matando-lhe e cativando-lhe muita gente. E entrou pelas serras até à ribeira que está defronte da sua cidade nove léguas de Damão, no qual caminho foi recebido com muitas bombardas, espingardas e frechas, nos passos que lhe tinham tomados, em que Ihe matou muita gente, até se pôr a vista da cidade chamada Nage, com tenção de passar a ela e a queimar e abrazar; e o deixou de fazer, por saber que era despejada da gente e parte dela queimada e descoberta da ola e palha com que Ihe puseram fogo, e o Rei, com todo o povo, fugido e posto nos matos.
Recolhendo-se então, com parecer dos capitães e fidalgos, achou no caminho o poder do dito rei com socorro que Ihe era chegado de muita gente do Bregi e do rei dos Celes, repartida por todas as partes dos matos, que fizeram arremetida pela dianteira e lados, tirando muitas frechadas e espingardadas e bombas de fogo, e com muitos cavalos encobertados, onde Ihe matou o dito capitão João de Sousa muita gente e outros se recolheram e fugiram pelos matos.
E, oferecendo-lhes em alguns escampados batalha, nunca quiseram chegar a ela, andando ele no campo quarenta e quatro dias com muitos trabalhos, em os quais o acompanhou Henrique Barbosa, fazendo de sua pessoa, como dele se esperava, ajudando-o sempre valorosamente com suas armas.

No ano de sessenta e nove, foi em companhia de Francisco Botelho, capitão da fortaleza de Santa Luzia de Bracalor, que ia por capitão de uma bandeira, acompanhando o viso-Rei D. Luís de Taíde, quando foi à costa de Canará, e se achou com ele no cerco e tomada da fortaleza de Honor sempre na sua estância, onde se deu bataria à dita fortaleza três dias e três noites, ajudando-os em todos os trabalhos necessários à dita bataria, assim na artilharia como nas vigias e no mais que naquele tempo sucedeu. Achando-se também com ele no cometimento e tomada do forte de Bracalor, pondo a proa com a sua embarcação defronte das barreiras, onde a força dos imigos estava, saltando ao mar com a água pelos peitos, saindo em terra, onde, pelejando muito esforçadamente, foi ferido.
Sendo Jorge de Moura capitão de Santa Catarina de Honor o primeiro ano de sua edificação, esteve nela Henrique Barbosa da Silva assistindo em todo o trabalho e serviço que na dita obra se fez, acarretando pedra e terra para os baluartes que nela se edificavam de novo e para danificar os aguieiros danificados vigiando todas as noites em um baluarte e lanço do muro com alguns soldados de que tinha carrego, por chuvas e tempestades pelejando e nas saídas que fazia contra os contrairos em que sempre Ihe matava gente e feria.
Quando era João de Sousa capitão da cidade de Damão e suas terras, foi ter à fortaleza o dito Henrique Barbosa da Silva aos vinte e cinco de março de mil e quinhentos e sessenta e seis; e invernou nela, estando prestes para tudo o que sucedesse e cumprisse ao serviço de el-Rei.
Indo D. Filipe de Meneses, o ano de setenta e um, à costa do Malabar, por mandado do viso- Rei D. Antão de Noronha, a socorrer a fortaleza de Chale, foi o dito Henrique Barbosa da Silva por capitão de uma fusta, achando-se em todas as ocasiões daquela jornada com sua pessoa e soldados que a seu cargo levava, na tomada de alguns paraos, e da fortaleza de Sam Guiser, que então se tomou e escalou.
Entrando D. Filipe de Castro Guerra, aos vinte e tantos de maio da era de mil e quinhentos e setenta e cinco, por capitão na fortaleza de Damão, foi com ele, por mandado do governador António Moniz Barreto, o dito Henrique Barbosa da Silva, para o inverno dar mesa aos soldados, e fazendo o dito capitão armada de sete ou oito galeotas para a enviar à enseada de Cambaia, de que fez capitão Henrique Barbosa e estando prestes, por certos respeitos que depois disto se moveram, e não se achar ser serviço de el-Rei, não houve efeito a ida da dita armada. E na entrada do verão indo-se todos os soldados que ali foram invernar, mandando as espias de Cambaia dizer que os Mogores se faziam prestes para ir correr as nossas terras, rogou o dito capitão a Henrique Barbosa que deixasse a ida de Goa, para onde estava de caminho, por cumprir assim ao serviço de el-Rei e ter assentado consigo apresentar batalha aos ditos Mogores, e Ihe pediu para este efeito quisesse ir com a gente de pé e ele capitão com a de cavalo; o que Henrique Barbosa fez de boa vontade, oferecido para tudo o mais que cumprisse a serviço de seu Rei; do que tudo tem certidões autênticas dos ditos visos-Reis, governadores e capitães, justificadas pelo licenciado Henrique da Silva, do desembargo de el-Rei, e ouvidor geral com alçada nas partes da Índia.
Além destes serviços que a el-Rei fez, em que se vê o muito valor e esforço de sua pessoa, muito melhor o mostrou nisto que agora direi: porque, sabendo que o conde D. Luís de Taíde era chegado segunda vez ao Estado da Índia por viso-Rei dela, se fez prestes de Baçaím, donde estava, para o ir visitar e oferecer-se ao serviço de el-Rei; e logo se embarcou em um galeão pequeno, rasteiro, de D. Manuel de Almada, capitão do dito Baçaím, que dali partiu para Goa. E sendo tanto avante como defronte de Dabul, terras do Dialxa, dez léguas ao mar, Ihe saíram dezoito embarcações e paraos de remo, entre galeotas e fustas e catures, em que pelo galeão ser muito pequeno se vieram chegando a ele, dizendo alguns passageiros a Henrique Barbosa que seria bom pôr a gente em ordem, e as outras coisas do navio. Respondeu ele que aí ia o capitão, ao que Ihe replicaram que o capitão vinha para arrecadar os fretes, mas onde ele vinha e outros fidalgos com ele, naquele tempo, não havia outro capitão. Nisto o capitão do galeão o entregou ao dito Henrique Barbosa, que logo se armou e começou a dar aviamento às coisas do navio e pôr a gente em ordem. Vindo-se os imigos chegando ao galeão, tomando algumas embarcações mansas que vinham ao redor dele, depois de as tomarem, se puseram à bataria com o galeão, havendo vento calma , pelejando sempre, da uma hora depois do meio-dia até noite; no qual tempo o abalroaram três vezes, com combates muito rijos por todas as partes, pondo muita concruzam nisso, tomando o galeão fogo por duas vezes, onde houve mortos e queimados de parte a parte. E Henrique Barbosa mandava muito bem o que se havia de fazer, donde estava armado no lugar mais perigoso do perpau, com muita prudência e acordo, acudindo dali às partes mais fracas; ora pelejava na tolda, onde era a mor briga, com grande esforço, sendo a principal parte de os não entrarem. E, por não haver quem quisesse ir marear uma vela da gávea, deu cinco pardaos a um pangeli que lá foi, mandando também, como experto nas coisas do mar, marear o galeão, a quem João Dias, piloto dele, em tudo obedecia, como todos os mais faziam, pelejando sempre até que a noite os apartou. E, além de todos afirmarem não serem tomados e escaparem pelo seu bom esforço, com que o defendeu dia de S. Francisco, viram que em oito dias que depois andaram no mar, com muita diligência e caridade fez curar os feridos e Ihes dava de comer as galinhas que comprava no galeão à sua custa. Achando-se no dito galeão com oito soldados mortos, matando-lhe, segundo a informação que disso teve o conde viso-Rei, passante de trezentos mouros brancos, e muitos mais feridos; em que perdeu o dito Henrique Barbosa mais de quatro mil cruzados em três embarcações suas que os mouros Ihe levaram, carregadas de mantimento, sem ser galardoado até hoje de el-Rei conforme a seu muito merecimento, tão notório na Índia que, estando na era de mil e quinhentos e setenta e cinco para se vir ao Reino requerer seus serviços, se casou com uma filha de um homem nobre muito rico, chamado António Vaz, que tinha o contrato da fortaleza e alfândegas, em que fazia muito serviço a el-Rei, o qual Ihe deu em dote vinte mil cruzados e uma aldeia de nomeação, que valerá três mil, e o gasto de sua pessoa e dos seus, seis anos; dando-lhe homem sem Reino o galardão de seus serviços, que dos Reis tarde ou mal, ou pouco e poucas vezes, e às vezes nunca, se alcança. Pelo que eu digo, Senhora, que o que os Reis não satisfazem aos bons vassalos que contra infiéis por seu Deus e por seu Rei pelejam, galardoa-o mesmo Deus com grande e gloriosa fama, como vós sois na terra antre os homens, e com eterno prémio de glória na corte do Céu, antre os Anjos, onde se crê que ele, depois de falecido, está.

Depois da morte do Capitão Manuel da Câmara e de D. Joana de Mendonça, sua mulher, Ihe não ficou filha solteira por dar estado de vida, senão D. Hierónyma de Mendonça, que era a segunda filha que tiveram, porque a primeira foi D. Filipa de Mendonça, que foi mulher de D. Fernando de Castro, capitão e alcaide-mor de Évora e conde que ora é de Basto; e logo atrás de D. Hierónyma de Mendonça, que foi a segunda filha, nasceu D. Rui Gonçalves da Câmara, morgado desta ilha, a quem el-Rei D. Filipe, nosso Senhor, fez conde de Vila Franca, o qual casou com a senhora D. Joana de Gusmão, filha do conde do Redondo, de que se atrás faz menção; depois do qual nasceu D. Margarida, que depois foi freira da Madre de Deus; e logo nasceu D. Joana de Mendonça, que foi a quinta filha, que depois foi freira no mosteiro de Santa Clara, de Coimbra; depois da qual nasceu D. Isabel, que foi a quinta filha, que depois foi freira no mosteiro de Jesus de Setúvel, a quem por outro nome chamaram soror Isabel do Espírito Santo; de cuja vida e costumes fica já dito atrás, de todas as religiosas.
Somente fica por dizer de D. Hierónyma de Mendonça, ou, por melhor dizer, das Chagas, que assim se mandava assentar pelos livros das confrarias de que era confrade ou irmã, fazendo que a escrevessem por Hierónyma das Chagas.
Esta senhora, sendo a segunda filha, ficou por cabeça de casal no falecimento de Manuel da Câmara, seu pai, por estar presente a seu falecimento, em absência do Conde, seu irmão, que ao tal tempo residia nesta sua Capitania, em lugar do dito seu pai, por mandado de el-Rei D. Sebastião que está em glória. A qual senhora, vendo primeiro a morte de sua mãe, viu daí a pouco mais de dois anos a de seu pai, e ela solteira, que não devia ser pequena dor; mas, como era em extremo religiosa e o fora sempre na vida e costumes, não aceitou casá-la seu pai e mãe, em sua vida, deles, por entender ser já um pouco fora de tempo de que seu pai ficou muito desgostoso , quando ela se desenganou, havendo muitos senhores, assim de título, como morgados, que desejavam casar com ela. Entre muitas razões mui urgentes que, para desenganar ao Capitão Manuel da Câmara, seu pai, houve a que Ihe não falasse em casar, foi dizer-lhe que já que suas irmãs eram todas freiras pobres, que queria ser freira rica para Ihe acudir a suas necessidades. E na verdade tinha muita razão, porque quanto ao ser freira não há dúvida que em nenhuma coisa Ihe podiam fazer diferença as religiosas professas, senão em não trazer véu preto, porque em todo o mais, jejuns, abstinências, disciplina, cilício, oração, confissões, comunhões, caridade e trajo, sempre mostrou perfeitamente cumprir com a obrigação de religiosa, rezando todos os dias o ofício divino; e todo o tempo que viveu depois da morte de sua mãe, como de seu pai, teve sempre muito particular cuidado de todas suas irmãs freiras, provendo-as do necessário.
Falecendo seu pai , ficou esta senhora em cabeça de casal até a chegada do Conde seu irmão, ao Reino, porque estava nesta ilha ao tempo que seu pai faleceu. Feitas as partilhas, ficou a dita senhora com quarenta mil cruzados de legítima, entrando outras coisas que ajudaram a fazer esta cópia, porque de tantos testou, como se poderá ver de seu testamento; e, estando de posse de sua legítima, viveu três anos e meio, pouco mais ou menos, depois da morte de seu pai, sendo nosso Senhor servido de a levar para si, como ela fosse muito enferma do fígado, que Ihe causava muitas quenturas, por cujo respeito era costumada a ser sangrada muitas vezes. Estando uma vez muito doente, fez testamento com um frade de Nossa Senhora do Monte do Carmo, e demais de ser devota desta ordem, porque assim o era de todas as ordens. Foi este frade causa para naquele testamento deixar tudo o que tinha ao convento da dita ordem, com condição de a enterrarem na capela-mor do dito mosteiro, com uma obrigação pequena, sem se lembrar das obrigações que tinha particulares a criadas suas e de seu pai e mãe. Mas, como Nosso Senhor seja verdadeiro juiz, lembrado de sua muita virtude, Ihe deu saúde daquela doença e viveu depois disso pouco mais de um ano, no fim do qual tornou a adoecer e sendo necessário tomar uma sangria, foram chamar o barbeiro que havia em costume sangrá-la; mas, como os segredos de Deus sejam incógnitos aos homens, não bastou a este oficial ser único em seu ofício, e assim se deve entender que havia de ser, porque qualquer pessoa, de bem e honrada trabalha, quando tem necessidade para bem de sua saúde buscar o melhor médico, e daí para baixo todos os melhores mestres que para remédio de suas necessidades há. Pois, se isto é assim, claro fica qual este barbeiro podia ser e mais sendo o que sempre a costumava sangrar.
Finalmente que este próprio, no pique que Ihe deu, Ihe cortou a artéria e de improviso Ihe inchou o braço em demasia, sem Ihe poder tomar o sangue, fazendo-lhe muitos remédios, sendo para isso juntos todos os médicos da cidade de Lisboa. Vendo quão pouco Ihe aproveitavam os remédios humanos e desenganada deles, como pessoa prudente e amiga de seu Deus, acudiu ao mais necessário, que era a sua alma, como jóia mais principal, mandando logo chamar um frade de S. Francisco para a confessar. Sendo dado o recado, veio um teólogo, por nome frei Anjo, certo que tanto caso se pode fazer da vinda deste frade como do seu nome, porque na real verdade se pode afirmar por muito maior mercê de Deus a vinda deste, ornado de um tão formoso nome, em tal tempo, que não de Nosso Senhor livrar esta senhora de outro repique da morte, de que esteve tão abarbada dantes, como atrás fiz menção; porque sem nenhuma falta, se naquele tempo falecera, morria como mulher da sua qualidade, vida e costumes, por deixar o seu a carrega sarrada , com um fumo de vaidade, ao mosteiro do Carmo de Lisboa, porque a enterrassem na capela-mor, coisa que não podia ser, por ser a dita capela do grande D. Nunalvres Pereira, deixando a capela de seu pai e mãe e sua sepultura, que está em a Igreja de S. Francisco em Lisboa, onde já estavam enterrados, sendo a capela de tanta estima e valor que do seu tamanho é uma das notáveis coisas de Portugal e Castela; demais, de se não lembrar em seu testamento das muitas obrigações de criados e criadas que serviram a ela e a seu pai e mãe; afora ter sobrinhos e sobrinhas, que como nem todos podem ser morgados, segundo quem são, por muito que tenham, não pode ser tanto que se possam sustentar conforme a qualidade de suas pessoas, por onde se podem ter por pobres. Demais, de haver outras muitas coisas desta sorte que afeiavam o outro primeiro testamento, não se esperando dela isso por sua muita virtude.
Mas, como Nosso Senhor se lembra dos seus servos, movido de sua divina misericórdia, guardou esta senhora para esta hora, donde guiada por este Frei Anjo, da ordem do Seráfico Padre São Francisco, de quem ela sempre fora muito devota, foi confessada e Ihe fez outro novo testamento, em que houve por quebrado o outro. E, fora ela de todo o primeiro proposto, ordenou que seu corpo fosse enterrado na capela de seu pai que estava no mosteiro de S.
Francisco, de Lisboa, junta à capela-mor, à parte direita, e onde já seu pai e mãe estavam, e ela no hábito da dita ordem, como se costuma enterrar os religiosos dela. E que na dita capela de seu pai se dissessem cinco missas cada dia, enquanto o mundo durasse. E mandou que haveria cinco merceeiras que logo nomeou criadas suas, mulheres muito honradas, entre as quais meteu uma mulher fidalga, pobre, sua amiga, que fossem estar presentes às cinco missas que naquela capela se haviam de dizer cada dia e da mesma maneira iriam outra vez às horas de véspera e rezar pelas almas de seu pai e mãe e sua, de maneira que haviam de ir duas vezes cada dia, para o qual Ihe deixava de ordenado a cada uma vinte e cinco mil réis, além de pagar a cada uma destas seus serviços, conforme a seus merecimentos, sem antrevir avareza nem o descuido que dantes tivera. O mesmo cuidado teve dos homens e moços que a serviram e a cada um mandou pagar seus serviços, com coisa logo limitada, conformando-se com o tempo e o merecimento das pessoas. Deixou a uma criada sua, donzela, filha de sua colaça, mil cruzados em dinheiro para seu casamento, além de muitas coisas do móvel de sua casa que valeriam duzentos cruzados, repartindo o mais como Ihe pareceu por suas criadas. E para cumprimento destas coisas e das esmolas que assinalou para o convento de São Francisco pelos cinco anais que se Ihe haviam de dizer, com os mais encarregos de seu testamento, instituiu por seu testamenteiro a casa da Santa Misericórdia de Lisboa, para a qual aplicou todo o remanescente de sua fazenda cumprindo primeiro os legados, o que ficasse para a dita Casa e que os provedores mandassem cumprir seus legados, e morrendo algumas das merceeiras, eles provessem as pessoas que Ihe bem parecessem, com tal que fossem honradas e virtuosas, e que seus ordenados se Ihe pagassem bem pagos, aos quartéis do ano. Feito isto, com outras contas mais particulares que em seu testamento se contêm, houve Nosso Senhor por seu serviço levá-la desta vida, conforme com a vontade de Deus; que certo foi a morte desta senhora um vivo retrato e espelho para os que cá ficamos, pois tendo ao Conde, seu irmão, e tios, irmãos de sua mãe, e a seu cunhado, o conde de Basto, D. Fernando de Castro, que era muito seu amigo, pessoas cada uma delas para se poderem confiar deles todas as coisas desta qualidade, ela, sabendo bem esta verdade de todos estes senhores, não foi isso parte para deixar o certo pelo duvidoso, tomando a seu Deus por testamenteiro de sua alma, como esposo seu que era, e se não fôra assim não tivéramos que louvar a este Frei Anjo, autor de seu testamento, que bem fez nesta parte o ofício de Anjo, que é a coisa de que se deve fazer mais caso que de todo o mais, por ser obra para isso.