No ano de mil e quinhentos cinquenta e três, a vinte e dois do mês de Maio, que foi a primeira octava do Pentecoste, indo o doctor Gaspar Gonçalves, morador na vila da Ribeira Grande, ver as Furnas, achou as veias da pedra humi e foi o primeiro que nesta ilha as descobriu desta maneira. Nas covas e buracos que estavam por entre as mesmas Furnas, achou a frol e escuma seca da dita pedra humi, que ali se ajunta da frol e grossos vapores que vêm de baixo, e cuidando ser salitre o fez experimentar em sua casa por um mestre Jaques, bombardeiro framengo, ou condestabre dos bombardeiros, que aquele ano atrás viera a esta ilha com o Capitão Manuel da Câmara. E, achando que não era salitre, o deu a um surrador, chamado Hector Fernandes Lixabá, que experimentasse a dita frol nas peles, porque tinha sabor da pedra humi. Experimentando-a o surrador, lhe fez boa obra; e dali por diante se aproveitou dela. Aquele ano, em Setembro, se foi o dito doctor para Salamanca e daí a mais de quatro anos tornou a esta ilha, onde achou um João de Torres, aragonês, que andava envolto com a marquesita , dizendo que era prata e tinha provisões de el-Rei para a obrar e tirar; mas, não se tirou prata alguma, fazendo experiência por três ou quatro vezes, em que o dito doctor deu o desengano que a não havia. E levou em sua companhia a João de Torres às Furnas, onde por indústria do mesmo doctor se tiraram as primeiras mostras e caixões de pedra humi, que o dito João de Torres levou a el-Rei, para requerer a dita obra para ambos. Mas requereu só para si.
Chegando ao Reino a sete de Julho do ano de sessenta e um, deu conta à Rainha como nesta ilha de S. Miguel e na Terceira, nas terras da Valadoa velha e de Gomes Pamplona, havia pedra humi, de que lhe deu as mostras que desta ilha levava. Pelo que, mandaram a um Vicente Queimado, que era feitor em Málaga, por um mestre de pedra humi, a Cartagena, o qual, como homem que pouco lhe dava, trouxe um Francisco Mendes, taverneiro de Cadiz, cidade do reino de Granada, o qual era tal que a nenhum conselho se subjectava e assim se tornou desta ilha, sem fazer nada mais que alguma pouca mostra que levou ao Reino.
Pela qual causa, determinou João de Torres fazer umas casas nas Caldeiras, perto da vila da Ribeira Grande, e nelas fez três ou quatro quintais de pedra humi, em caldeira de chumbo.
Com a qual mostra mandou um Gonçalo Canheto, castelhano, a Lisboa, para a ver Sua Alteza.
E, por esta mostra que viram, mandou a Rainha D. Catarina de Áustria um Filipe Silveira a Cartagena buscar mestre, o qual chegando aos Almacarrões, fábrica da pedra humi de el-Rei de Castela, pousou em casa de um viúvo, chamado Francisco de Caravaca, que servia de bagaceiro, que é deitar a terra que sai da balsa no rio. Este homem veio ao Reino, donde o mandou a Rainha a esta ilha ao tempo do segundo terramoto. E passou no mar, quando vinha, pelos bancos de pedra pomes e cinzeiro, aonde encalhavam; e acharam reses mortas. Trazia, por ser mestre de pedra humi, de ordenado em cada dia duzentos e sessenta réis. Fez experiência na pedra humi das Caldeiras, nas casas que tinha feitas João de Torres, dizendo-lhe que a fizesse ele da maneira que fazia. E, fazendo-a João de Torres, disse o mestre que não se fazia melhor em Cartagena; pelo que fizeram então uma boa cópia dela, que levaram a Lisboa no mês de Outubro do ano de sessenta e três, em que foi o segundo terramoto. Alvoroçado o Reino com a nova das novas minas de pedra humi, perguntaram ao mestre Francisco de Caravaca que gente e que cousas eram necessárias para fazer a fábrica, o qual, como tinha filhos, determinou mandar por eles. E deu por apontamentos que era necessário quatro paleiros e um terrador e escolhedor da pedra, e um homem que tivesse cargo de estender a pedra humi para se enxugar. Para isso mandaram o próprio Filipe Silveira, o qual trouxe os quatro paleiros e o terrador, que foram dois filhos de Caravaca e um Pero Garcia, Francisco de Aranda e Francisco Carreiro, castelhanos, dos Almacarrões. Vindos, casou Francisco de Caravaca com uma irmã do dito Filipe Silveira, e um filho com outra irmã, com que vieram a esta ilha, onde se começou a fazer a fábrica em fim de Setembro do ano de mil e quinhentos e sessenta e quatro, andando na obra dela setenta pessoas, entre oficiais, carreiros e trabalhadores, sendo feitor de el-Rei Francisco de Mares e, escrivão da dita fábrica, Pero de Paiva.
Nos ordenados se gastou, enquanto durou a obra da fábrica, que foi perto de um ano, seiscentos e noventa e oito mil réis. O feitio das caldeiras custou cento e sessenta mil réis, pela vinda dos oficiais que vieram do Reino a fazê-las, que foram um Martim Navarro, carpinteiro da Rainha, que veio para dar ordem aos dois pratos de metal para o fundo das caldeiras, em que se havia de cozer a pedra humi, e a outras cousas necessárias, e um Cosme Dias, fundidor de el-Rei que as fundiu, e levaram ambos oitenta e sete quintais de metal. A obra da casa, em si só, custou com madeira, telha e feitio três mil e duzentos e cinquenta e sete cruzados, contando as casas, eiras, fábrica, cal e gente de serviço e carreiros e cavouqueiros, que tiravam os tufos, ferramentas e descobrimento das pedreiras, de modo que se gastou, na obra da fábrica e ordenados, dois contos e duzentos e cinquenta mil e duzentos réis, com o descobrimento das pedreiras. No mesmo ano que se fez a fábrica, se fizeram cento e noventa fornos de pedra humi, que saía da pedreira das Caldeiras e de outro lugar que se chama as Pedras Brancas, em que se gastaram oitocentos e cinquenta e seis mil réis, porque o Caravaca obrava isto pela ordem de sua terra, ou de Cartagena, regando a pedra com a água, e com a regar lhe fazia perder a virtude e não dava nada. De modo que em toda a obra assim em ordenados como em o mais, eiras e pedra e experiências, se gastaram três contos e cinquenta e cinco mil réis, afora o ordenado do feitor Francisco de Mares e do escrivão Pero de Paiva.
Era esta fábrica uma grande casa de três naves de grande compridão e largura, que servia para cubaria, e levava dezasseis cubos por banda, cada um da altura de um homem, que podia levar seis pipas de água, com uma cale de pau que corria por cima de todos os cubos por um torno que da cale em cada cubo caía, que abriam quando o queriam encher; e a cale nascia de uns tanques em que se botavam as lexias, que eram cinco ou seis cozimentos de água cozida com a pedra dentro na caldeira, de que se fazia pedra humi, para com ele se encherem os cubos, onde se havia de coalhar a pedra humi. E para reformar os tanques, que nunca faltasse a lexia neles, se fez uma balsa, que era como um tanque junto da caldeira, no qual, com a água fria que vinha por um cano de fora, se lavava a pedra que ficava cozida na caldeira e, de dois em dois dias, a botavam nos tanques para os reformar com ela.
Além desta casa grande de três naves, havia outras duas da mesma compridão e de largura de doze côvados em vão; uma delas servia para duas caldeiras em que se havia de cozer a dita pedra, e para duas balsas ou tanques. E a outra para granel de enxugar a pedra humi depois de feita. E as lógeas dela para a recolherem.
Quando se fazia esta fábrica no ano de mil e quinhentos e sessenta e cinco, que mandou fazer Francisco de Mares, feitor que então era por mandado de el-Rei, por ordem do Caravaca, continuamente andavam nela vinte cavouqueiros a quebrar pedra e quinze pedreiros; e alguns dias andavam vinte, trinta carros; outros dias, cinquenta e sessenta, que serviam de acarretar pedra de alvenaria, madeira, barro, telha, pedra de cal e areia. Andavam mais cada dia nove e dez carpinteiros, que eram tão poucos por ser a mais da obra grossa e de machado. E andariam homens de serviço, cada dia, quinze e vinte. Assim que o dia que andava mais gente nesta obra chegariam a cento e vinte e cinco homens. Sendo assentada e acabada esta fábrica, para que nela se pudesse fazer pedra humi, se mandou quebrar muita pedra nas pedreiras da pedra humi, junto a umas furnas, que chamam caldeiras, perto da fábrica. E fizeram-se sete fornos como de cozer cal, para cozer a dita pedra, e duas casas muito grandes em que a guardavam da chuva. O dia que se fazia cozimento, andavam ordinariamente na dita fábrica sessenta homens entre os oficiais dela e outros servidores; e continuamente dez, doze carreiros, acarretando em seus carros pedra e lenha e outras cousas necessárias.
Tinha também esta fábrica um mestre, um escolhedor da pedra, quatro paleiros e um lançador da terra, quatro ou cinco maçadores que maçavam com maços de ferro a pedra já cozida, e depois a vieram a moer, como em engenho de pastel, em lugar dos maçadores, um bagaceiro, dois capaceiros que levavam a pedra humi em umas alcofinhas, um balseiro, um forneiro de caldeira com um homem que o ajudava, dois forneiros dos fornos em que se cozia a pedra, um armador, um escrivão, um apontador da gente que vigiava os que trabalhavam e apontava os que faltavam; e, sobre todos, o feitor Francisco de Mares como sobrerolda, que provia tudo, afora carreiros, cavouqueiros e outras pessoas de serviço.
Fizeram-se neste ano, depois de acabada a fábrica, sessenta quintais de pedra humi, que como os cento e noventa não aproveitaram, por o mestre querer fazer como em sua terra se fazia; e pela têmpera dela não aproveitou nada. E fez de custo, deitar a pedra fora da eira onde estava, por despejar o terreiro, vinte e dois mil e quatrocentos réis.
Com a perda da pedra, vieram a ter diferença o feitor Francisco de Mares e o mestre Francisco de Caravaca, e se foram para o Reino diferentes, ficando um sobrinho de Fernão Cabral, na obra, por feitor; o qual fez cento e dez quintais de pedra humi, afora setenta e oito que ficaram nos cubos. Dizem que em seu tempo se ganhou alguma cousa e não perdeu nada.
Mas esteve pouco tempo, porque Francisco de Mares e Caravaca partiram desta ilha no mês de Junho do ano de sessenta e seis, e tornaram a vinte e seis de Octubro do dito ano, vindo Francisco de Mares por provedor desta ilha, com o cargo da pedra humi, trazendo sua mulher e filhos, e João de Torres a sua. E, seguindo a obra de Miguel Cabral, no preço dos carretos e mais cousas que tinha abaixado por muito menos que dantes, deixou de fazer pedra humi seis meses, que foi causa de se danarem as lixias . Nestes seis meses se fizeram muitas eiras de pedra da pedreira das Pedras Brancas e Caldeiras. E, como o mestre Caravaca não queria sair da ordem de sua terra, tornou a regar a pedra e deitou a perder grande quantidade dela, pelo que o Provedor mandou que o mestre não fosse à fábrica. E por conselho de alguns se esfolaram as eiras, e tomando o âmago de dentro da pedra, que não prestava para nada, se fizeram seiscentos e oitenta quintais de pedra humi, que o provedor mandou ao Reino, escrevendo ao Cardeal o que se passava; com cuja informação, veio provisão de Sua Alteza para que João de Torres servisse de mestre com trezentos réis de ordenado cada dia, a qual chegou a esta ilha a catorze de Maio do ano de sessenta e nove.
Fizeram-se logo mil e seiscentos e três quintais de pedra humi em pouco tempo, depois de vir a provisão; parte da qual se vendeu a um Gaspar Gonçalves, mercador da cidade da Ponta Delgada, e a outros, ingreses. E o almoxarife da fábrica, Francisco de Andrade, levou ao Reino oitocentos e sessenta quintais da dita pedra humi. E, por suceder Diogo Lopes de Espinhosa na feitoria e não trazer ordem de pagamentos, e haver novas que era provido provedor, cessou aos vinte de Agosto do ano de setenta, pela qual causa fez o mestre João de Torres um requerimento ao provedor Francisco de Mares e ao feitor, o qual respondeu que não tinha comissão para fazer pedra humi, nem ordem para os pagamentos, mas que à sua custa faria o que pudesse, para o que deu ao mestre quatrocentos cruzados, dos quais lhe fez quinhentos e sessenta quintais, rendendo, muito, o que se fez com seu dinheiro.
Sabendo o almoxarife Francisco de Andrade lá no Reino como a pedra humi rendia bem, contratou Sua Alteza a dezasseis de Octubro do dito ano de mil e quinhentos e setenta. Sabido isto pelo provedor, cessou de fazer pedra humi, anojado pela haverem dado ao dito almoxarife; pela qual razão, determinou João de Torres de tomar cargo dela, por sustentar a fábrica, lexias e outras cousas, em que gastou cento e vinte mil réis, de que fez cento e noventa e cinco quintais de pedra humi, que o desembargador Fernão de Pina lhe fez pagar.
Chegou Francisco de Andrade a esta ilha o primeiro de Abril do ano de setenta e um. E o provedor Francisco de Mares se partiu com sua mulher e toda sua casa no mês de Março do dito ano, na qual viagem sucedeu o mais cruel desastre de quantos sucederam nesta travessa das ilhas para o Reino, porque os franceses piratas tomaram o navio, onde mataram a Francisco de Mares e muita gente a vista de terra. E a morte deste provedor Francisco de Mares foi grande parte da perda da pedra humi.
Teve Francisco de Andrade contrato um ano e três meses e sete dias, no fim do qual tempo o prenderam por não cumprir com a obrigação dele por trezentos e quarenta mil réis e pelos quintais que era obrigado a dar e não deu. Fez seiscentos e sessenta quintais de pedra humi e gastou neles um conto e cento e tantos mil réis. Vendeu-se em Lisboa a mil e quinhentos réis o quintal. Perder-se-iam alguns duzentos mil réis.
Neste meio tempo, foi João de Torres ao Reino e trouxe provisão que tomasse cargo dela o feitor Diogo Lopes de Espinhosa, que fez pedra humi perto de dois anos, em que faria mil e quinhentos quintais. Veio depois o feitor Jorge Dias e cessou a pedra humi. Esta é a causa por onde se perde, porque, como não é bem particular de algum, nenhum outro quere que se faça.
Fizeram-se nesta fábrica, depois que se começou a fazer pedra humi, até o primeiro de Julho do ano de setenta e quatro, em que acabou Diogo Lopes e entrou Jorge Dias na Feitoria de el-Rei, quatro mil e oitocentos e trinta e três quintais de pedra humi sabidos, em que não houve muita perda nem ganho. A perda é a causa de não se ir com o negócio avante, e a fábrica estar muito longe das pedreiras e fora de mão. E também por os feitores serem pouco curiosos de a fazer.
Pelo que, vendo João de Torres que esta obra se consumia, determinou fazer outra fábrica nas Furnas, na qual gastou setecentos mil réis em tudo quanto fez. E, quando a teve acabada, ficou com dívida de duzentos e trinta mil réis, em que devia vinte moios de trigo ao feitor Jorge Dias, e quarenta mil réis a Diogo Lopes de Espinhosa e a outras pessoas. Fez o primeiro peso de sessenta quintais de pedra, de que levou certidão ao feitor para lha pagar, mas pagou-se dos quarenta mil réis do feitor passado, e deu-lhe nove mil e setecentos réis, com que começou a fazer o outro peso, que fez de cinquenta quintais. E, como viu o feitor que ia pagando, por rogo lhe deu quinze mil réis, pagando-se da demasia, pelo que dali por diante fez João de Torres pedra a medo, por não ter dinheiro e a gente andar muito cara, de modo que foi necessário vender as peças de ouro e prata que tinha. Toda a pedra humi que fez seriam quinhentos e oitenta quintais. E não fez mais por não ter poder para isso.
Por uma provisão de el-Rei, que trouxe João de Torres, que lhe vendessem a fábrica de pedra humi que estava acima da vila da Ribeira Grande, por preços limitados e já taxados no Reino, sendo contador nesta ilha Francisco Mendes Pereira, e porque a casa custou muito a fazer e desfazendo-se quase nada valia, vendeu-se a dita fábrica toda da pedra humi , por avaliações, por cento e vinte e seis mil e quatrocentos e vinte e três réis, a vinte dias de Agosto de mil e quinhentos e setenta e oito anos. E custou a fazer perto de oito mil cruzados. A qual obra foi causa de seu remédio, porque, com trabalharem muitos nela, se remediaram, de modo que não deixaram a terra, como é certo que houveram de fugir dela, com dívidas e com pobreza, se isto não fora. Afirmase comummente que não deixara de haver pedra humi, ao menos que rendera os custos que fazia e mais alguma cousa, se a obra, cozimento e feito dela andara sem cessar em roda viva.
O que fora grandeza deste Reino haver nele mina dela, ainda que não fizera mais proveito que pagar os custos.
Depois do segundo terramoto que houve nesta ilha, se viu nela daí por diante uma praga que comummente se chama alforra nas searas e novidades do trigo e nas hortas, que tudo dana e deita a perder onde dá ou cai, da qual há muitas e diversas opiniões e pareceres acerca do que será, ou de que se gerará.
Uns dizem que é rocio do mar que com sua salsugem dana tudo, quanto alcança; outros dizem que vem da terra que ficou escaldada do fogo que se acendeu debaixo dela e a fez tremer e correr ribeiras dele por ela; outros dizem que vem do ar; e outros dizem outras cousas.
Mas, o que a mim me parece, não deve ser rocio do mar, porque também cai em terras e partes onde ele não chega; nem é da terra escaldada, porque em extremada terra, mimosa, rica e fértil, também chega; nem parece ser a causa o ar corrupto, porque os ares são mui delicados e sãos nesta ilha. Mas, cuido que é uma névoa que cai em cordas ou mangas, por algumas partes e não por outras, em um lugar, ora em outro, como vemos, em uma mesma terra dum mesmo sítio de igual qualidade e bondade, estar às vezes a seara ou horta em uma courela danada e perdida, e em outra que não a aparta senão uma extrema, sã e salva. E onde cai esta névoa sobre as folhas do trigo parece ferrugem, e nas das favas ou ervilhas, ou meloeiros, ou pepineiros, hortalice ou ervas, parece goteiras de cor ruiva como de mel e assim é doce como ele; donde alguns cuidaram que era o rocio de que as abelhas fazem o seu mel.
Mas, em pouco espaço se vão logo aparecendo umas malhas cinzentas onde aquelas gotas de rocio ou névoa caíram, e como peçonha que se bebe e fica o corpo ainda vivo, até que vai dar no coração e então acaba de matar; assim, caindo esta alforra nos meloeiros ou no trigo, principalmente nestas duas cousas , logo lhe acham a raiz podre e danada; e o trigo alforrado por ter a raiz como podre com aquela peçonha, assim o arrancam da terra como se fosse estopa e não estivesse apegado nela.
Esta alforra em cousas diversas faz várias cores: no trigo, cor de ferrugem; na hortalice, cor cinzenta; e nas favas, cor ruiva. Parece que, como camaleão, da diversidade das ervas em que cai, vem a variedade das cores que toma; e como o trigo é erva mais robusta e dura, toma nele cor de ferrugem, que é a mesma que traz quando cai, de cor de mel, quase ruiva e doce como mel; donde alguns dizem que delas fazem as abelhas o seu. E, porque a hortalice é mais branda, mimosa e húmida, amassando-se mais com a brandura e humidade, toma nela cor cinzenta, quase branca, e faz cheirar as hortas a maresia, depois que dá e cai nelas, tornando as verdes folhas brancas, com que parecem cobertas de polme e cinza.
Outros dizem que do muito atremoçar das terras nasceu a alforra, ainda que parece que também vem esta praga da fraqueza das mesmas terras, já muito cansadas, que não podem com tanto quanto os lavradores delas querem tirar, porque todos os anos continuamente as semeiam; e, se as deixassem descansar de uns para outros, ou, ao menos, de um para outro, como as terras de alqueive em Portugal e outras partes, dariam fruto; mas, apertam tanto com elas, que não só uma, mas duas e três novidades lhe querem fazer dar cada ano. E depois ficam para o outro que vem, cansadas e estériles, e de muito fracas sujeitas a bichos e alforra, que por esta causa mais penetra nelas, pelas achar matéria disposta e fraca, sem lhe poderem resistir e suster-se. Mas, se usaram nesta ilha de folhas, como em Alentejo, em que há terra de oito folhas, convém a saber, que não semeiam senão de oito em oito anos. E outra de duas folhas e de três, quatro, cinco, seis e sete, pode ser que não haveria nela alforra, nem outras muitas pragas que há. Mas, sobretudo digo que nenhum remédio humano basta para nos livrar das mãos de Deus, quando nos Ele quere castigar por nossos pecados, senão emendar as vidas e costumes, e chamar de coração por sua misericórdia e bondade. E pode ser que de os senhorios de fora da terra levarem o que ela não vale de renda, ou vem ela mesma a não dar nada, ou vem esta alforra e praga por castigo dos que mal se dizimam, defraudando o que devem ou dando a Deus o pior. Por isso, a um homem desta terra, indo a outra longe dela, lhe perguntou lá outro pela fertilidade desta ilha, e dizendo-lhe ele que tudo eram pragas e que já era estéril, respondeu o de fora: — nessa terra não pagam bem o dízimo, por isso é dessa maneira. Os senhorios que estão nela, pelo que vêem, fazem quitas aos pobres lavradores; mas os de fora não fazem senão mandar a seus feitores tirar pela carta, até trazerem alvarás que arrecadem suas rendas como fazenda de el-Rei, e mandar levar o que a terra não frutifica, nem dá, ficando os lavradores cativos com a carta, não de alforria, senão da alforra, em casa.
O que eu sinto desta alforra daquele tempo do segundo dilúvio para cá, parece que se mudaram os ares com o tempo, como muitas vezes em muitas partes acontece. E cai uma névoa no trigo que o faz como ferrugento, com que, a quem vai andar por entre ele, se enche o fato e calçado de ferrugem. E nas cousas verdes, como é hortalice, meloaes, pepineiros e aboboraes, caindo a mesma névoa, lhe faz nas folhas umas malhas brancas, como se caíram nelas goteiras de água branca de cal, e lhe faz dar um fedor ruim e importuno a quem anda nas hortas ou passa junto delas, danando-se os melões, pepinos e abóboras de tal maneira que não ficam para se poderem comer, de desgostosos, sem sabor. E o mesmo dano faz nas vinhas e em seu fruto.
Esta névoa, nesta terra, comummente lhe chamam todos alforra, assim a que cai no trigo como nas hortas; mas em Portugal se chama ferrugem a que cai no trigo, de cor ferrugente e, ainda que é a mesma névoa, mas branca, a que cai nas hortas, ou também no trigo, lhe chamam mangra, e aqui alforra. A razão por que tenha este nome, não se sabe, senão que me parece ser posto como outros muitos nomes que se põem ad beneplacitum, porque assim o quiseram pôr sem nenhuma razão de etimologia, nem significação alguma. Mas, o nome de Portugal parece fundar-se com razão, porque mangra parece que se diz de manga, como ela cai em mangas de nevoeiros que tomam uma corda, parte ou listra de terra, e outra não. Ou também, porventura, se diz mangra de mancha, porque põe umas manchas e nódoas brancas e cinzentas nas folhas da hortalice e nas cousas sobreditas das hortas ou algumas vezes no trigo.
Antes deste terramoto segundo, não havia esta praga nesta ilha, e se alguma ferrugem se achava no trigo algum ano, quase se não enxergava, nem sentia. Parece que, assim como Deus quis espantar e ameaçar estes povos desta ilha com o espantoso tremor da terra e fogo que dela saiu, assim a quis também castigar com esta praga. E o que de uma escapou, comeu e gastou a outra que depois veio e ficou, que foi esta alforra. A qual parece que quere dizer al fora, que outra cousa era e fora no tempo passado, ou como se dissessem — já que se colheram alguns melões, pepinos e abóboras sãs, antes que ela caísse, e depois de cair tudo dana, todo o al que nas hortas fica fora com ele e deita-se a longe, pois nada vale, nem aproveita. Ou se chama alforra, porque forra os homens de trabalho porque, como ela cai, não procuram de trabalhar nem beneficiar mais as hortas, polas terem por perdidas. E porque todos os anos cai esta alforra, quase todos não querem já semear estas cousas, nem fazer hortas delas, principalmente da banda do norte. E assim esta alforra os forra do trabalho que nisso houveram de ter se a alforra não fora, que parece ser nome mourisco, o qual eu não entendo.
Se me perguntarem porque razão antes do terramoto, ainda que havia alforra, não se sentia dano dela, por ser pouco ou nenhum, e agora depois do segundo terramoto faz tanta perda nas novidades e hortas, responderei com alguns pressupostos que põe o doctíssimo mestre Aleixo Vanhegas, no capítulo vigésimo primo do seu Livro Natural, os quais entendidos, ficara melhor entendida esta questão e que cousa seja alforra.
O primeiro pressuposto que se há-de notar é que os filósofos dividiram o ar em três partes: a mais alta, por estar junto ao fogo, além de seu calor natural, está sempre quente; a mais baixa, que está ao redor da terra e da água, está quente pela reverberação dos raios do sol; a do meio, que nem participa do fogo de riba nem da reverberação de baixo, está fria, não por sua natureza, senão pola frialdade das frias exalações que vão fugindo do calor como de inimigo. Isto assim pressuposto, o fogo espalha, estende e alarga os humores dos corpos que toca, como o vemos no vapor que sobe da água que ferve e no fumo do pau que se queima; assim é certo que, tocando os raios do sol a água e as terras húmidas, as há-de fazer evaporar e fumegar. Parte destes vapores se fica na primeira parte do ar, e parte sobe à segunda; e alguns são tão sotis que penetram até a terceira, que é a suprema. Aos fumos que sobem à terceira parte, chama Aristóteles, no primeiro livro dos Metheuros , exalações; em linguagem, lhe chamamos fumos quentes e secos, a maneira do fumo que sai do tiro de pólvora, ainda que, quando estes fumos topam com nuvens grossas no caminho, não nas podem penetrar e por isso se ficam na meia região do ar.
De todas as impressões que se fazem no ar, a primeira é a névoa, porque é vapor que sobe menos que todos os outros; porque, assim como o sol o alevantou da terra ou da água, achou o ar circunstante frio, mediante o qual se começou a condensar e a encolher-se e a engrossarse e, pelo conseguinte, a fazer-se pesado, pelo qual lhe foi forçado a cair; e, porque este vapor se alevanta por virtude do sol, que excede ao frio, segue-se que nas partes mui frias onde se apouca a força do sol, não ousara alçar cabeça a névoa, porque o grande frio a faz estar queda, que se não bula. Daqui se pode convencer a opinião de João de Sacrobusto , no livro primeiro Da Esfera, que diz que debaixo dos nortes há ordinárias e contínuas névoas. A razão diz o contrário, porque é ali tanto o frio nos seis meses que tem de noite, que não deixará levantar a névoa, como vemos cá, que quando amanhecem os campos gelados não se alevanta névoa, porque a reprime o grande frio. Tampouco diremos que tem névoa de dia, porque como o sol ande seis meses arréo, sem se pôr sobre a terra, que corresponde aos nortes, já que baste ao princípio a levantar vapor da névoa, antes de cinquenta horas a faz subir a riba ou consume, porque, como anda o sol ao redor do horizonte, entra-lhe pelos lados e assim a disgrega , aparta e divide. Esta razão conforma com a que diz Plínio no segundo livro de sua Natural História, no capítulo sexagésimo, desta maneira: — Nebulas nec aestate nec maximo frigore existere — que as névoas não se levantam no estio nem no frio demasiado.
O segundo pressuposto é que o segundo vapor se chama rocio, o qual se alevanta do calor que imprimiu o sol na terra ou na água. Aqueles sutis vapores não puderam cair com a presença do sol, que os tinha na primeira região, em forma do bafo, e ainda passou sobre eles a meia noite até que refrescados com o frescor que começa de meia noite por diante, se congelaram em gotas e por pesados caíram e conservaram-se nas ervas e árvores. Este rocio, quando se condensa e espessa a maneira de neve feita pelourinhos, como confeitos pequenos, é o que se chama maná, que se congela especialmente nos salgueiros. E, se antes que com o vento sul se converta em água, este vapor se regela com o vento norte, se converte em pruína, que é a geada que amanhece nos telhados e campos. Deste rocio que cai no verão e no outono, chamado saliva cerata, fazem as abelhas o mel; e as brisnas que estão no meio da frol, fazem os vasos de cera no favo; de maneira que quando dizemos mel de alecrim ou de queiró, não havemos de entender que o mel se faça desta ou daquela frol, senão porque se envasa nesta ou naquela vasilha, que tal sabor toma qual é a vasilha em que se envasou. E, como no estio se consume o vapor sutil pola grande quentura, e no inverno sobem vapores grossos e descem em chuva, neve ou pedra, e por conseguinte nestes dois tempos, inverno e estio, não cai o rocio de que se possa fazer mel; por isso as abelhas com o instinto natural que tem, a maneira das formigas, a fazer provisão para o tempo da necessidade, fazem os vasos de cera para os encher daquele rocio que trazem em seus bicos, em os quais, sem o meter em seus corpozinhos, se lhes torna mel. E, se guardam aquele rocio nos vasos de cera, não o fazem de caridade para que as creste seu dono, mas fazem-no por seu proveito, para se bastecer daquele rocio no verão, para o estio, e no outono, para o inverno. Com este mesmo rocio se emprenham os peixes de concha, que cai sobre as águas e faz uma teagem branca, e dali a tomam, em alvoreando.
Afora outras impressões que no ar se fazem, como são frescor, nuve, neve, chuva e raio, que deixo de dizer porque não pertencem à alforra, vemos que algumas vezes chove terra, sangue, leite e azeite. E, acerca dos gentios, se tinha esta maneira de chuva por tão contra natura, que Júlio Obsequente, no livro de Prodígios, conta estas maneiras de chuva entre os prodígios e monstros da natureza; sendo na verdade uma cousa tão natural e tão conforme à razão como todas as outras impressões. Porque, assim como as águas das fontes tomam o sabor e cor das terras por onde passam, assim os vapores que sobem em alto tomam a cor das terras donde subiram. Há aí uma terra vermelha, como é a de almagra e de vermelhão; o vapor que desta terra subir, será de cor de sangue. Há aí outra mui branca, o vapor da qual imita ao leite. Há aí outra oleosa que tira à grossura do azeite o vapor da qual imita ao azeite.
Há aí outras exalações que são puramente terrestres, secas e frias, as quais subidas em alto, apertadas com ventos que correm contrários, cairão a maneira de terra. E assim não será contra razão natural chover terra. Também acontece que o ímpeto grande do vento levante cópia de pó em uma parte e levá-lo a outra, e cessando o vento, chovesse aquele pó, como choveu em Braga e em outras partes de Portugal a cinza que desta ilha se alevantou com o fogo. E dizem os que não vêem estas cousas que contra natura chove terra, o qual é tão natural como chover rãs e sapos, que se geram na meia região do ar, assim como de calor e fumo se soem gerar na terra.
Outro pressuposto, diz o mesmo mestre, que algumas vezes caem pedras quando caem os raios; mas estas pedras são mui distintas do raio, porque assim como na terra, pela conjunção do vapor húmido e frio com a exalação quente e seca, se geram pedras e minerais, assim acontece que entre os vapores e exalações suba pó, pela violência do vento, e se faça todo uma massa tão empedernida pola fortaleza do fogo que aquele pó se ajunte a uma parte e caia com o raio, feito uma pasta negra, tão dura como uma pedra. E se este pó é de natureza ferrugínea, cairá uma pasta de ferro, como foi uma de que faz menção Avicena.
Assim é de notar que só onde caiu o cinzeiro e pedra pomes, misturado com enxofre, salitre ou rosalgar ou outros materiais secos, nesta ilha, cai a alforra, ou nas partes propínquas, que é quase em toda a ilha, porque as exalações que o sol, com seu calor, alevanta das tais terras cobertas disto, são secas e quentes e de ruim e venenosa qualidade; e misturadas as tais exalações com o pó do cinzeiro, que o vento alevanta e leva ao ar, torna a cair, feito como rocio e mel viscoso e cinzento ou ferrugento, em algum nevoeiro, sobre as searas e hortas, empeçonhentando-as, com que lhe dana o fruto e rama, o que não faz, nem há tanta alforra, em outras partes desta ilha mais apartadas dos lugares onde caiu o dito cinzeiro e pedra pomes.
Destes pressupostos sobreditos, em que se declara que cousa é névoa e rocio e exalações secas e quentes, se pode coligir o entendimento desta dúvida acima proposta. Verdade é que, dantes do segundo terramoto, havia esta alforra e ferrugem no trigo somente, sem fazer algum dano mais que pegar-se no fato ou calçado de quem andava por entre ele, tornando-o de cor de ferrugem, que eram relíquias fracas dos terramotos antigos que aqui houve. Mas, a que agora cai, em alguma névoa, faz grande dano nas searas e as deita a perder, porque com o segundo terramoto tão fresco se cobriram grande parte das terras desta ilha de cinza e pedra pomes, com algum enxofre, salitre, pedra hume e peçonha ou rosalgar. E, também parece com o tremor ficar toda a ilha abalada com algumas comissuras abertas, pelo que sobem as exalações e fumos da terra ao ar, com algum enxofre e materiais destes peçonhentos, mais secos e prejudiciais e de má qualidade, com algum pó da cinza, que se alevanta com o vento ao mesmo ar, e assim misturados com as névoas que também se alevantaram das exalações corruptas, tornam a cair e, com sua ruim qualidade, fazem dano e empeçonhentam as cousas mais delicadas e mimosas que tocam, como são o trigo e sua folha ou espiga, que está mais verde e mimosa, e as hortas dos melões, pepinos e abóboras e cousas semelhantes, que logo pecam, definham e murcham, e cheirando as hortas mal, como maresia ou peçonha, se perdem. Finalmente, tudo o em que cai a dita alforra ou névoa alforrada o faz estéril e corrompe. Esta é a razão que alcanço saber, porque, depois de cobertas algumas terras com a praga já dita de cinzeiro, pedra pomes e peçonha, com o segundo terramoto cai a alforra, e faz tão grande dano, o que dantes não fazia por a terra não ter sobre si coberta tão fresca e prejudicial, de que saem exalações de tão má qualidade que criam a alforra que deita a perder tudo; e a névoa enxofrada, caindo nas searas ou hortas, aquentando-se com os raios do sol, as assa e cose de tal maneira que se perdem muitas delas, e isto chamam alguns alforra ou causa dela. Tudo pode ser. Mas, concluindo, digo que do sobredito se colige que a principal razão e causa é que o céu, quero dizer, o ar, dá à terra o que dela recebe, porque das exalações que dela a ele se alevantam, conforme a qualidade delas, assim gera e dá o ar ou cometas, ou relâmpagos e trovoadas, ou frescos e saudosos orvalhos, ou névoas misturadas com as exalações corruptas, de má qualidade, que chamam alforra, que faz tanto dano e perda na terra, donde se alevantaram. E, se esta só razão e causa, e cada uma das atrás ditas, por si não abasta para gerar a alforra, algumas delas ou todas juntas, ajudando umas às outras, poderão ser a causa dela. Algumas vezes o suão, como são os nordestes e levantes, ensoam e danam as searas e frutos, não somente nesta ilha, mas também em outras muitas terras. E a cada um destes danos comummente chama o povo alforra.
Cessando algum tanto sua fúria aquele monstruoso incêndio deu lugar a ser visto onde então claramente se viu o que acima tenho dito, convém a saber, o sítio, a serra, o lugar e causa donde tanta tribulação havia manado. Ali logo se achou menos o sobredito pico que naquele bosque era maior e mais fresco, e como nele e dentro dele ardera fogo, e daí tinha saído, deixando-o consumido, virado e tornado em outra tão baixa e profunda concavidade, quando alta era sua altura, à qual algumas pessoas desceram por mais de perto verem aquele prodígio.
Viram-se na dita concavidade muitas e diversas bocas, ainda que muitas mais se tinham já atupido, pelas quais o fogo ainda estava respirando e evaporando, mas não tão furiosamente. Por uma delas deitava somente fogo e ar calidíssimo, por outras alguma cinza, mas pouca, a qual também caía perto e ao redor delas, por não ir alta. Uma das ditas aperturas havia mui grande e espantosa, pela qual estava continuamente botando para o ar muita soma de uma terra muito negra e feita em grão, que subia mui alta e direita, fazendo com o delicado vento mil figuras e várias aparências. Ora parecia um verde acipreste , ora uma comprida faia com todos seus ramos. E outras vezes um alto castelo com todas suas torres; e, quando descia, tornava a cair dentro da mesma cova e boca, por ser mui larga e a dita terra ser pesada, feita em grão e não em pó; e por dentro da dita concavidade não entrar tanto vento que a espalhasse, pelo que tornava a cair direita, e assim estava indo e vindo continuamente. Mas, já nela, nem em nenhuma das sobreditas bocas, aparecia fogo, saindo somente delas grandíssima quentura. Daqui não há dúvida senão que saía aquela triste e negra terra que caiu sobre todos o dia de S. Pedro.
No meio da dita concavidade, estava um grandíssimo moledo de mais de quinhentos pés em redondo, e de altura mais de cinquenta palmos; o qual era de pedras, delas mui grandes, todas daquelas molares que o fogo criam , todo abrasado a maneira de um fogareiro mui aceso, ou a semelhança de um ardente forno de cal, quando tem suas pedras vermelhas e incendiadas. Esta era relíquia do pico gastado e consumido e o tal moledo era o âmago e ossos dele, que de tal maneira se lhe foi gastando e consumindo a terra e todo o mais, até que ficou nas pedras vivas que dentro tinha, e ainda essas o bravo fogo estava gastando e semeando. Este moledo tinha em meio uma grandíssima e ardentíssima boca, que era e foi a principal de todas, por onde a mais tribulação saía e a primeira que arrebentou na sumidade e coroa do dito pico; o que bem mostrava, por deitar ainda grandes e ardentes fachas línguas de fogo com grande fúria, e, de quando em quando, com mui grandes estouros, muitas pedras de diversas feições, muito altas; e depois, faltando-lhe a força com que, contra sua natureza, as faziam subir para cima, começavam a cair com grande fúria, algumas como pipas, quartos e grandes caixas, outras como grandíssimas balas de fardos de roupa, e outras muitas, pequenas; e, segundo eram grandes ou pequenas, assim iam para cima muito ou pouco, e descendo para baixo caíam também longe ou perto, mas todas já a este tempo das encumeadas da concavidade para dentro. Assim que claramente se viu e entendeu desta haverem saído todas quantas pedras tenho dito, e assim das outras, a cinza e a terra negra, que cada cousa saiu por sua apertura e boca diferente, até tanto que desfizeram, gastaram e consumiram o dito pico e o tornaram tal qual então se via.
Ainda que este pico era tão grande mui maior ficou a concavidade e caldeira onde estava, e tudo na dita cinza e pedra foi desfeito. Contudo, em nenhuma maneira, isso bastara a subverter e cobrir a décima parte do que cobriu, senão que dentro do centro e âmago da ilha saiu pelas ditas aperturas quantidade de dez tamanhos e maiores picos.
Também na mesma concavidade, da banda de leste, de uma altura e quebrada, nascia e manava uma ribeira de uma água mui fria e duma cor branca como soro de leite, que à vista parecia peçonhenta e corria em polme de enxofre e rosalgar e doutros semelhantes materiais, dos quais, a lugares, a dita concavidade estava tão semeada, que de bem longe parecia cor amarela. Esta água peçonhenta, correndo da dita ladeira para o baixo e meio da caldeira, vinha topar e dar no dito moledo encendido, em cujo fogo fazia grande guerra e ali se consumia.
Cada vez mais ia o dito fogo aplacando e mitigando sua ira, e portanto muitas pessoas o iam ver e cada vez lhe achavam mudanças e diferenças, principalmente nas ditas bocas, as quais achavam ora muitas atupidas, ora outras mais de novo abertas, ora sem bafejar e ora com muita fúria.
Como a gente teve lugar de ver a cousa mais de perto e ousaram descer abaixo, acharam que na sobredita água e em todo o baixo e caldeira havia tão grande fedor de enxofre e rosalgar, que enjoava e desatinava as pessoas. E aconteceu irem ali ter alguns cães, em companhia da gente, e estando breve espaço morriam.
Entre os que foram ver o dito fogo que arrebentou, a vinte dias depois de arrebentado, pouco mais ou menos, foram Jorge Tavares, Rui Tavares e Afonso de Goes, mestre que agora é da capela, na cidade da Ponta Delgada, e chegando ao dito mato, que dantes soía ser de mui espesso e alto arvoredo, de maneira que se não podia caminhar por ele, não viram árvore alguma, porque lhe ficavam debaixo dos pés em grande altura, por a cinza e terra, que do lugar do fogo haviam saído, fazerem caminho por cima dele. Chegando à altura de um monte, viram aquela concavidade que ao parecer teria em roda uma légua e meia, e, da boca ao fundo dela, um tiro de espingarda, que dantes era no mesmo lugar um pico mui alto e em cima dele uma grande alagoa. E para descerem abaixo, por não verem caminho, foram escorregando pela cinza e terra, que era fácil. E no meio da caldeira viram congelado um biscouto que ocupava pouca terra, e as pedras dele todas cobertas de enxofre, ao longo do qual, para uma ilharga, estava um poço tão profundo que parecia chegar ao centro da terra e teria de boca cinquenta passos, trazendo dentro de si grandíssima fúria de fogo, pelejando com a água, pedras, terra e polme grosso, com a qual, por espaço de um credo, lançava fora, a modo de bombarda, muito daquele polme misturado com pedras, as quais fazia ir conquistar a região do ar mui alto e, quando o polme e pedras tornavam a cair, vinham enxutas, como se foram stipticadas com a força de todo verão, a qual operação parecia causar a grandíssima altura que se julgava haver da boca aonde o fogo com a água faziam seu assento. Tinha esta caldeira o chão debaixo, de grande quantidade e redondo; da banda do norte se mostrava uma rocha viva, mui alta, da qual saía uma grande ribeira com tanto ímpeto e rumor, que atroava todo o lugar e parecia que alguma fúria assoprava, porque mais tinha tom de vento que rugido de água; o que era bastante a pôr grande medo a todos os que não tivessem ouvido os terramotos passados.
Outros muitos foram ver este lugar de cima da encumeada, mas não chegaram abaixo daquela covoada, toda à roda talhada de rocha, a notar tanto as particularidades dela.
Foram também ver o dito lugar, de Vila Franca, o vigairo da dita vila Belchior Homem e o licenciado Simão Pimentel, pregador, e Francisco Pacheco, Jordão Jácome Raposo, o padre beneficiado Frutuoso Coelho, Jorge Barbosa Ferraz, João Nunes, vigairo que foi na ilha de Santa Maria, e Bartolomeu Pires, homem que conhecia bem aquela terra, Afonso de Lima, tesoureiro em Vila Franca, e outras muitas pessoas. E, chegando ao lugar onde arrebentou o fogo, de muito longe, sobre a rocha, disse o dito Bartolomeu Pires que aquele alto onde estavam era dantes a faldra de um pico que tinha uma alagoa pequena, que se chamava o pico da Lagoinha de Vulcão, e que aquela concavidade que viam era uma alagoa que estava detrás do dito pico, de maneira que o pico e a alagoa era tudo uma concavidade mui alta de doze ou treze alqueires de terra e no meio como uma grande eira. Descendo abaixo o padre Frutuoso Coelho, com sobrepeliz, estola, cruz e água benta que levava, cuidando ser necessário por suspeitar que andavam ali demónios, e Jorge Barbosa, Afonso de Lima, tesoureiro, e outro, chegando ao lugar aonde arrebentou o fogo, estava aquela boca ardendo como um forno de cal, e derredor dela, obra de dois alqueires de terra cobertos de pedras que saíam daquela boca, ardendo tanto que com a quentura não podiam chegar a elas; e, estando todos em baixo, começaram ouvir um grande estrondo a maneira de trovão, e saíram pela boca, que deitou fora mui alto pelo ar, mais de quatrocentas mil pedras, que pareciam grandes bandos de estorninhos. Depois se abriu mais a dita boca, como que se apartava a terra uma da outra, e deitando de si uma pedra tão grande como uma pipa, tornava a cair para dentro na mesma boca algumas vezes, até que de uma a deitou fora e caiu logo ali junto da boca para uma ilharga dela; e este foi o derradeiro terramoto e estrondo que fez e a derradeira cousa que deitou fora, com medo do qual estrondo se foram os que ficaram em cima da encumeada; e os outros que desceram à caldeira lhe pesou bem acharem-se em baixo. Mas, o padre Frutuoso Coelho não fazia senão deitar água benta ao ar contra as pedras que caíam ao redor da boca e dentro nela. Além da qual boca, viram outras duas furnas, uma de polme que se movia a maneira de uma roda, e outra que deitava para o ar ferrugem por duas bocas, quando uma ia para cima, abaixava outra. Estava ao sul uma rocha pequena que merejava água, onde depois morreu um homem, passando ao longo dela, como logo direi. E estes se recolheram com assás medo, por estar a terra tão movida, que temiam grandemente de ali os subverter.
Também foram depois ver o dito lugar António de Crasto, Miguel Lopes de Almeida, Manuel Fernandes, que depois foi estribuidor em Vila Franca, e um valente homem, mancebo solteiro, chamado Afonso Pires, natural da ilha da Madeira, que lá morreu aquele dia, e o padre Pero Mendes, beneficiado na igreja de S. Sebastião, que então acertou de estar em Vila Franca, afora outros que foram em outra companhia, depois deles. Chegados ao lugar que dantes havia sido alagoa, que todo o ano tinha água, entraram dentro naquela concavidade algumas destas pessoas, ficando algumas vendo aquela concavidade e andando-a à roda por cima da rocha; outras desceram abaixo dentro nela, em um espaço grande, muito chão, coberto de pedra pomes, junto nuns altos e baixos que atravessavam a ribeira que corria de nordeste para o sudoeste, e ia ter a uma furna onde se recolheram as águas da alagoa, que ainda então estava tão furiosa dando de quando em quando alguns espantosos urros, como os que dava de contino naqueles dias atrás, que a todos pareciam os derradeiros da vida e do mundo. A qual furna não podiam ver senão de longe. E estes roncos que dava eram causados da pedraria que dentro da furna com água fervia; e aos que entraram e desceram assim então, abaixo desta concavidade, aconteceu o seguinte: António de Crasto e Miguel Lopes de Almeida, que sempre andavam juntos vendo o que dentro havia, ao passar da ribeira acima dita, os atordoou tanto o bafo daquela água, que, indo para diante pouco espaço, caíram como bêbedos; e dali embarbascados se apartaram, fugindo daquele perigo e tomaram cada um seu caminho, quase não sabendo o que faziam. Miguel Lopes, pelo caminho que seguiu, foi dar em um barranco de altura mais de um homem, e porque estava tudo coberto de pedra pomes, cuidou que era como todo o mais caminho por onde haviam vindo, e saltando do barranco em baixo em um rechão, por não rodear a ir buscar o caminho, achou-se em um pego de água mergulhado, e, atónito do engano que lhe havia feito a pedra pomes, todavia se tirou do atoleiro sem perigo e se foi onde estava a demais companhia. Logo chegou António de Crasto tão afrontado como ele, saindo ambos daquela ribeira tão inflamados e ardidos, como puderam sair duma fogueira de fogo.
Aos outros que também abaixo desceram, aconteceu isto. O mancebo Afonso Pires que ia diante, em passando a dita ribeira, por mais que foi avisado e requerido dos companheiros que não fosse por diante, não querendo senão ir, seguindo-o Manuel Fernandes, estribuidor, dando o bafo daquela ribeira a Afonso Pires, foi por diante embarbascado já do fedor dela. Manuel Fernandes cuidando que ia bem, o foi seguindo; mas não muito adiante caiu Afonso Pires para um cabo e Manuel Fernandes para o outro, onde o desatino de cada um e sua desaventura os levou, bem apartados um do outro. A gente, que de riba estava no cume, não fazia senão gritar aos outros de baixo, que já se vinham para a vila, dizendo: — acudi, acudi, a homens mortos.
Aos quais brados, se ajuntaram muitos dos que lá tinham ido aquele dia, e não sabendo que fizessem, porque ainda viam bulir Manuel Fernandes e não havia quem ousasse acudir-lhe, pelo perigo que nisso se oferecia, se ofereceu Bento de Noia, mulato, escravo de Simão da Mota, para os ir socorrer; e, tomando a metade de um pão ensopado em vinho e pondo-o nos narizes e boca, atado com um pano, de maneira que não pudesse recolher nenhum bafo, foi acudir a Manuel Fernandes que estava mais perto, ainda vivo, de bruços, gemendo com a boca no chão, da qual tinha deitado muita escuma; e, tomando-o por um braço, o levou arrastando, até o tirar e pôr em lugar seguro, donde o levaram para a vila como morto, e esteve muito mal alguns dias em cama, primeiro que convalescesse. E, querendo acudir a Afonso Pires que estava morto de boca arriba, com uma adaga, que levava na cinta, desembainhada e posta em cima da barriga, pelo perigo do lugar não compadecer nenhuma demora e ele ir abafado e sem fôlego, o deixou com muita mágoa sua e de toda a mais companhia.
Chegada a nova a Vila Franca de como ficava aquele morto, se ajuntou alguma gente para irem por ele; entre os quais foi um Manuel Nunes, mulato, natural da ilha da Madeira, que servia de prenseiro nos engenhos de açúcar, e por ser valente homem se atreveu i-lo tirar do lugar perigoso em que estava. Levando umas cordas e abafando e cobrindo a boca e narizes com uma toalha, se foi onde estava o defunto e atando-o com a corda pelos pés, com a mais pressa e ligeireza que pôde, ele com outra gente que estava fora do perigo, o arrastaram e o levaram à vila, onde o mesmo dia lhe deram sepultura.
Daí a poucos dias, foram ver o mesmo lugar o padre Frutuoso Coelho, Afonso de Goes e outros, e acharam o caminho bem ao contrário do que dantes estava, porque eram tantas as grotas, que a água da chuva tinha feito na cinza e terra, que por cima do mato primeiro acharam, que não tinham conto, indo cada uma delas buscar o solo da terra. Chegados ao lugar do fogo ou caldeira, não desceram abaixo pela verem toda cheia de água e pedra pomes por cima dela.
A dois de Setembro do dito ano de mil e quinhentos e sessenta e três foram Luís Botelho, cirurgião, e João de Escarsela, da vila da Ribeira Grande, ver o dito lugar onde arrebentara o fogo, partindo direitos da dita vila ao alto da serra, sem fazer rodeio por ser tudo atupido de cinza e pedra pomes que caíra, tornando rasos os altos e baixos; ainda que em algumas partes iam de gatinhas, por ser a serra muito a pique. E, tanto que foram em cima, se acharam sobre uma rocha muito alta, cortada direita, em redondo, cercando um baixo cavo, no qual viram algumas cousas confusas que desejaram ver de perto; pelo que desceram abaixo por uma parte baixa que da banda do sul estava, onde acharam tudo atupido de cinza, a modo de praia calcada, e viram nela da parte do norte cair quatro ribeiras nascidas no meio da rocha, três turvas e uma clara, e ali onde caíam faziam cada uma seu poço pequeno e redondo e nos mesmos poços se sumiam sem ver mais que caminho levavam. Não havia em toda aquela concavidade era, nem árvore; tinha no meio, algum tanto mais para o sul, um outeiro pequeno que estava fumegando. Indo para ver João de Escarsela, diante, meteu os pés em um atoleiro até as coxas, do qual, tomando-o Luís Botelho pelas mãos, o ajudou a tirar; e dizia que debaixo achara com os pés a água solta. Tinha esta praia pelo meio um sinal que apartava uma dura de outra mole. Buscando outro caminho para chegar ao outeiro pequeno, viram nele muitas gretas fumegar e de quando em quando veremelhejar como fogo, e ao longo dele algumas aves mortas, que eles julgaram morrerem de fedor que também ali lhes dava. Ao pé deste outeiro, para a banda do sudoeste, estava um grande buraco no chão, como furna pela qual saía muito fumo, e na boca dele andava ao redor, como em fervura de panela, um calhau tão grande como de quarenta palmos em roda nadando, o qual outras pessoas depois disseram que andara ali pouco tempo sobre a água e fizera assento. Era esta praia da concavidade maior que quarenta alqueires de terra, mais comprida que larga, tendo a compridão de leste a oeste. A rocha para a banda do sul era mais baixa , por onde desceram por um boqueirão escalvado e lavado, como que trasbordara por ele alguma grande cópia de água; da banda de fora tinha uma grota a modo de ribeira, e nela nascia alguma água, pouca, onde é o nascimento da ribeira que se chama da Praia, que vai ter ao mar da parte do sul desta ilha; ali desceram estes dois homens e fizeram com as mãos uma poça pequena para beber, mas a água lhes sabia e cheirava a enxofre.
No derradeiro domingo do Carnal , que foi no mês de Fevereiro, da era de mil e quinhentos e sessenta e quatro, duas horas da noite, depois do sol posto, se ouviu em toda esta ilha um terrível estouro, com que furiosamente tremeu toda, fazendo grande espanto e medo à gente, cuidando todos que tornava acontecer outra nova desaventura, pior que a passada. Em Vila Franca, e em Água do Pau, querendo-se começar a despejar as vilas, mandaram primeiro alguns homens por toda a ilha saber que cousa aquela seria. E acharam que junto donde arrebentou o primeiro fogo, no pico das Berlengas, arrebentara outro, abrindo outro algar muito grande, que deitava de si espessíssimo fumo, e ia correndo por baixo da serra algum licor para contra o lugar da Povoação Velha, com que tomaram algum alento e ficaram consolados por não correr contra as vilas, principalmente por não ter feito, nem fazer depois algum dano; porque, segundo foi o estouro grandíssimo e espantoso, ameaçava grande desolação e subversão de povoados e gente, que por sua misericórdia Nosso Senhor, como bom Pai, impediu que não acontecesse, nem viesse sobre os seus, ainda que maus filhos.
Fez depois este lugar, por diversos tempos, muitas e diferentes mudanças. Agora dizem que, assim como dantes era uma grande alagoa, já está também tornado alagoa muito maior, porque terá duas léguas de comprido e quase um quarto de légua de largo. E cada vez vai mais crescendo.
Com o terramoto segundo e fogo que arrebentou da alagoa que estava na cova do pico das Berlengas, entre a vila da Ribeira Grande e Vila Franca do Campo, no meio da serra se alevantou tanto cinzeiro e pedra pomes que obscureceu o ar todo por espaço de três dias pelos Fenais, Achadas, Maia, até junto de Porto Formoso, que não se viam os homens uns aos outros no meio dia, nem iam buscar água para beberem, senão com círios e candeias acesas; nos quais dias caiu tanto cinzeiro e pedra pomes no mato, que toda aquela parte dele, do Porto Formoso até o Nordeste, ficou coberta e acravada, altura de oito, dez palmos, sem ficar pasto algum, com que o gado se mantivesse. E, em algumas partes, em que ficaram algumas árvores, o vieram manter com alguma rama que delas lhe cortavam, por não terem outra comedia. E tão costumados estavam já a este pasto da rama cortada que, indo algumas pessoas buscar o seu gado pelos matos e não achando onde o descobrir, usavam de manha para o poder tomar, subindo-se um homem em uma árvore ou pau alto do mato, onde estava dando pancadas com outro, como que fendia e cortava rama; e ouvindo o gado, onde quer que estava tresmontado, aquelas pancadas, cuidando que lhe cortavam rama naquela parte onde as ouviam, para ele comer como costumava, acudia logo ali uma rez de uma parte, outra da outra, e assim se ajuntavam naquele lugar onde cada um dos pastores tomava o seu.
Não somente caiu cinzeiro e pedra pomes nos matos, onde destruíu muitos pastos, madeira e lenha, mas também nas terras de pão três palmos e dois e meio o menos de altura, e daí para riba até cinco e seis, como no mato e serra, quatro, cinco, seis palmos, e em outras partes mais e menos, misturada a pedra pomes, cinza e lama, de modo que fazia um bitume mui duro e tão forte que, dando três e quatro vezes com a enxada nele, não o podiam entrar, nem descobrir o solo da terra boa. E ficaram grotas e caminhos atupidos, tudo raso, e perdidas as terras todas e mato, por aquela parte, ficando as árvores, umas quebradas, outras secas com a quentura do fogo, outras torcidas e outras acravadas.
Estando assim perdidas as terras, sem esperança de remédios por se verem perdidos os homens, tendo assim suas terras cobertas desta praga e bitume, sem ter que dar de comer ao gado e bestas, a necessidade, que é boa mestra, os ensinou a buscar um remédio para alimparem algumas terras, principalmente as íngremes e dependuradas, com águas e levadas de ribeiras. O qual remédio custou muito dinheiro e trabalho a muitos; e na dita obra morreram alguns homens e outros ficavam tolheitos de frialdade, andando dentro na água muitos dias, por serem as águas frigidíssimas, saídas de perto debaixo da terra fria; o qual trabalho não tiveram os da parte do Nordeste tão grande, porque, ainda que ficou coberta de pedra pomes, era solta a que por lá caiu, sem mistura de cinza, terra e areia, como a outra; e por isso se puderam limpar as terras dela com mais facilidade e menos trabalho e custo.
Dizem que o primeiro homem que principiou a limpar as terras com água foi um, chamado João de Santilhana, que começou a limpar um cerrado com uma pá, e vendo ser cousa tão trabalhosa que lhe pareceu impossível, tirou então a levada que ia para o moinho do Cachaço, que atravessava ali todas as terras. E alimpando algumas suas com ela, todavia pelo trabalho incomportável que tinha, desconfiado de as poder limpar, as vendeu por pouco preço, sendo elas antes de muito, e se foi para o Brasil, e no caminho morreu. E sua mulher e um genro que tinha e três filhas de bom parecer, uma das quais dizem que era a mais formosa mulher que então havia nesta ilha, dando a nau em que ia na costa do Brasil, ou em outra de cafres, onde, os que escaparam com vida na importuna viagem, iam tão desbaratados e fracos, que não havendo neles resistência nem defensão, foram cativos daquela gente bárbara. O rei e rainha da terra, vendo aquela mulher tão formosa, a levaram com os mais, fazendo-lhe por amor dela bom gasalhado, dos quais não se sabem mais novas, em que pararam; por fugirem de suas terras, que viram perdidas com o cinzeiro e pedra pomes, com saudades delas, foram ter a outras maiores saudades em terra alheia.
A pedra pomes que caiu no Nordeste, como era solta, sem bitume, foi fácil de alimpar, porque até o vento a levava de uma parte para outra; e às vezes tornava a cobrir o que já tinha descoberto e limpo. Se ventava vento rijo danava-lhe e escozia-lhe as searas que tinham semeadas. Até as pessoas então se escondiam nas casas, fugindo da pedra que os açoutava e escozia e às vezes os escalavrava.
Vendo que não tinham remédio tantas terras e tão boas, tão perdidas, um homem nobre e principal que naquelas partes morava, nos Fenais da Maia, chamado Manuel Vieira, cidadão dos da governança de Vila Franca do Campo, buscou arte para remediar tanto dano. Este Manuel Vieira é filho de Fernão Vieira e neto de Pero Vieira e de Álvaro Lopes de Vulcão, o qual Pero Vieira era irmão de D. Violante, mulher de Pedreanes do Canto e mãe de João da Silva, único seu filho, porque só este teve Pedreanes do Canto dela, que era sua segunda mulher, além dos outros filhos que teve da primeira. Veio o dito Pero Vieira a esta ilha, de Lisboa, de casa de seu pai Duarte Galvão, que aí morava, por se casar contra sua vontade; e trouxe sua mulher, a qual deixando nesta ilha, se tornou a Lisboa em tempo de el-Rei D. Afonso, quinto do nome, quando havia guerras entre Portugal e Castela. A este mesmo Pero Vieira mandou o dito Rei D. Afonso naquele tempo por embaixador a Castela, e depois de tornado lhe deu o hábito de Cristo, com que veio a esta ilha buscar sua mulher, que levou para o Reino, onde viveu e acabou entre seus parentes, os Galvões, cujas armas ele tinha, deixando nesta ilha filhos e filhas, um dos quais foi Fernão Vieira que viveu na vila da Alagoa, homem principal e abastado; o qual, entre outros filhos que houve de sua mulher Eva Lopes, filha de Álvaro Lopes de Vulcão e de sua mulher Mécia Afonso, da geração dos Machados, da ilha Terceira, que também são fidalgos, houve um que se chama Manuel Vieira, que acima disse, cidadão de Vila Franca e da governança dela, rico e abastado, casado primeiro com Mor da Ponte, filha de Sebastião Afonso, homem nobre, morador no lugar do Faial, e de Constança Rafael, fidalga do tronco dos Colombreiros, e agora casado com Petronilha de Braga, filha de António de Braga e de Francisca Feia, da Vila da Ribeira Grande. O qual Manuel Vieira, por ser homem poderoso e bem entendido, vendo aquelas terras perdidas com o cinzeiro e pedra pomes, quis experimentar todos os remédios possíveis que pôde inventar para as restaurar com grande custo de sua fazenda.
Primeiramente, o dito Manuel Vieira, o primeiro ano seguinte de mil e quinhentos e sessenta e quatro, depois do terramoto, semeou todas as cousas que pôde, trigo, cevada, centeio, linho, abóboras, junça, chícharos, lentilhas e todos os mais ligumes sobre o cinzeiro e pedra pomes, e tudo nasceu bem; mas, vindo o tempo quente, se tornou amarelo e secou, por ser a pedra pomes seca e não ter virtude para poder criar, por lhe faltar humor. O que vendo ele, determinou de lavrar a terra, onde havia mais pouca altura de pedra pomes e cinzeiro, e rompê-la bem alta, calabreando-a com arado grande e três juntas de bois, para que chegasse à terra boa, por ver se envolta com a cinza e pedra pomes podia frutificar. A qual experiência, que fez o terceiro ano seguinte, de sessenta e cinco, lhe aproveitou, porque onde chegava o arado à terra boa deu muito pão, onde viu que a raiz do trigo ia abaixo, pela pedra pomes demovida com o arado, três palmos e meio buscar a terra boa e por isso frutificava. E houve bom pão naquele ano.
O que vendo o dito Manuel Vieira, logo o outro ano seguinte lavrou as terras pela mesma maneira, que lhe deram também fruto e respondeu bem a novidade, por chegar a raiz do trigo abaixo à terra boa, de que gozava. Mas, considerando que esta pedra pomes e cinzeiro era tanto que envolvendo-se com a terra boa a danaria e comeria, por onde viesse a não aproveitar, fazendo-se estéril, imaginou um remédio maravilhoso, que, ainda que no princípio pareceu dificultoso e sem proveito ao Capitão Manuel da Câmara e a outras pessoas, todavia foi muito proveitoso. E com ele foi causa o dito Manuel Vieira de se restituírem as terras ao estado antigo da fertilidade que dantes tinham, desta maneira.
Vendo Manuel Vieira serem muitas daquelas terras de dependuradas e outras chãs, e haver por ali muitas ribeiras de águas que se podiam tirar, com lhe fazerem levadas, imaginando que com elas se podiam alimpar as terras de pedra pomes e cinzeiro, e ficarem no solo, como dantes, o foi praticar com o Capitão Manuel da Câmara muitas vezes, por ser seu amigo e lhe ter cargo de muita fazenda sua, dizendo-lhe que com levadas das ribeiras de água, lançadas pela terra, e homens com enxadas a cavar na pedra pomes e cinzeiro e deitar nas levadas que iam ter ao mar, seriam restauradas suas terras, o que o Capitão teve por cousa impossível. E porfiando ambos muito neste negócio, entreveio nisso Francisco de Arruda da Costa, homem de grandes espíritos e bom entendimento, parecendo-lhe bem as razões de Manuel Vieira, com que persuadiu ao Capitão que mandasse tirar as águas e fazer as levadas, para se alimparem as terras, como dizia o dito Manuel Vieira. Com a qual persuasão, lhe deu o Capitão licença que fizesse o que dizia, como melhor lhe parecesse, o que Manuel Vieira, logo no ano seguinte e pelos anos em diante, foi ordenando e fazendo de tal maneira que assim ele nas terras do Capitão, e nas suas, que por aquela parte tinha acravadas com pedra pomes e cinzeiro, e outros com seu exemplo, imitando-o, alimparam todas aquelas terras tão bem que dão agora novidade como dantes. O que tudo se deve ao dito Manuel Vieira, primeiro inventor e executor deste bem e proveito, porque se lhe ele não dera este remédio que Deus lhe ensinou, não sei qual houvera de ter toda a gente desta ilha, da banda do norte, senão despovoar-se esta parte toda de terras, onde caiu a pedra pomes e cinzeiro, e irem todos viver da banda do sul, ou desterrar-se a outras terras.
Algumas pessoas na Achada Grande e Pequena e no Nordeste viraram a terra boa com pás e enxadas sobre a pedra pomes e cinzeiro, ao que Manuel Vieira foi ao encontro, dizendo que viria o vento e chuva e levaria a terra boa, e ficaria somente a ruim, com o qual conselho se emendaram e alimparam as terras com água, levando a boa que já tinha em cima solta, e a má que deixaram debaixo, até outra vez tornarem chegar à terra natural e solo que dantes havia, com o qual ainda ficou envolto algum cinzeiro, que lhe serve de esterco que, quanto mais vai apodrecendo pelo tempo adiante, tanto mais abundante novidade dá e melhor que dantes do terramoto dava.
Ao nor-noroeste de Vila Franca do Campo, eminente sobre ela, está uma grande e alta serra, não sem mistério chamada Vulcão, que quer dizer fogo, ou deus do fogo, na qual está um mui alto pico sobre a vila de Água do Pau que por ser em cima da terra chã se chamou o pico das Mesas, onde estava uma alagoa de Gonçalo Pires em um pico chamado das Berlengas, por ser tão longe dos povoados, que os que lá iam se podiam perder e perdiam, como os navios nas Berlengas. E tudo ali junto arrebentou no tempo do segundo terramoto, que pôs tanto medo a todos os moradores desta ilha que cuidaram ter a morte e o dia do Juízo presente. Arrebentou também terra na dita serra em uns espigões que estavam sobre a ribeira do Limo que corre para a banda do norte e, correndo pela mesma grota e ribeira, levou muito gado e um moinho que nela estava, de maneira que não podiam passar senão por junto do mar, onde as suas ondas lavavam as pedras por onde passavam de pedra em pedra, até que aquele lodo se endureceu e cessou, porque dantes qualquer alimária, que se metia na terra que correu, atolava tanto, que não se podia tirar senão com muito trabalho, e a muitas cortavam as pernas para lhe aproveitarem os corpos. E atupidas e quebradas as águas das ribeiras, os bois quebravam as cordas donde estavam presos e os soltos buscando onde beber, caíam pelas rochas abaixo e grotas de água e polme que os levava ao mar e lá se afogavam nele e andavam mortos sobre suas ondas. Neste segundo terramoto, nenhuma terra correu que tolhesse serventia, senão esta sobre a dita ribeira do Limo, e não havia depois erva para os gados comerem, nem águas para beberem, pelo que houve muita destruição de muito gado.
Nas cavernas da terra, debaixo deste pico das Berlengas e alagoa de Gonçalo Pires e espigões sobre a ribeira do Limo, tudo povoado de grande arvoredo, havia abundância de muitos materiais, enxofre, salitre, caparosa e rosalgar, comum em todas estas ilhas, e outros.
Os quais materiais, tremendo a terra a sobredita sexta feira, sábado e domingo, com alguns espíritos e vento que tinha dentro de suas concavidades, que pelejavam por buscar lugar por onde sair, com tantos e tão grandes abalos ganhou vento e ar frio em suas cavernas, mais principalmente na dita serra, e acendeu e atiçou os ditos minerais de fogo, que, estando quieto antes do dito terramoto, tinha menos vapor e por isso ocupava menor lugar onde dantes estava. Buscou respiráculo e saída por onde resfolegasse e saísse, de modo que, lidando e trabalhando com isso, foi tão brava a guerra dentro do dito pico e tão impetuosos abalos, que de uma parte para a outra dava dentro o dito fogo, instigado e assoprado do sobredito ar, que isso era o que causava e causou aqueles maiores e mais violentos terramotos atrás ditos, e fez violentamente porta e saída; pelo que, quando veio a segunda-feira, véspera do Apóstolo S.
Pedro, logo em anoitecendo, arrebentou o dito pico e fez grandíssimas aperturas e espantosas bocas, por onde evaporou e respirou tão áspera e furiosamente que a não abrasar e fundir toda a ilha, em um instante, mercê grande foi que Deus quis fazer e misericórdia imensa que com os moradores dela usou.
Estas bocas e monstruosas aperturas se abriram no mesmo pico Grande, a maior delas na própria sumidade e coroa dele, que era o pico das Berlengas, onde estava a alagoa; e por esse mesmo lugar arrebentou, dando espantosíssimos estouros. E depois disso, como quando um grande ferro abrasado e acendido, metendo-o em água, naturalmente faz grandes rugidos, pelejando as qualidades contrárias, assim topando o dito fogo em arrebentando com a água da dita alagoa não se pode contar a pavorosa guerra que então se ordenou, e uns e outros eram aqueles horrendos estouros e espantosos urros que ao tal dia e hora se ouviram ao redor e pelas faldras do mesmo pico, e por todo o sobredito sítio se abriram outras muitas bocas, também mui grandes, botando diante grande soma de fumo mui espesso e negro, que se foi com o ímpeto junto direito a cima e fez no alto a espantosa nuvem que disse aparecer na tal hora, no dito dia em que causou tanta aflição a quem a via.
Esta nuvem saiu tão alta que, segundo o que parecia e distava donde foi vista, não se julgava estar senão na suprema região do ar, junto à Esfera do fogo elemental. E o fogo que naqueles materiais ardia nas cavernas da terra com o ar e vento inchado, deitou pelos ares quanto naquele sítio achou sobre a superfície da terra, muito mato de grossíssimas e várias árvores, pedras, paus, água e terra, e na imensa altura; e também a mesma côdea e face dela por espaço de mais de dois terços de légua em redondo, sem ficar cousa das que ali havia em que pôr olhos, ficando tudo escalvado, sem erva nem muito gado que ali dantes pascia. Porque, contra sua natureza, altíssima e furiosamente foi voando sem asas e caindo depois espalhado e semeado em diversas partes e lugares do mar e da terra.
Muita parte do qual, convém a saber, bois, vacas, e outro gado miúdo, muitos paus e muitas árvores grandíssimas, com suas folhas, ramos e raízes inteiras e outras meias queimadas, chamuscadas, e outras muitas cousas, caíram mui longe e muitas léguas pelo mar, onde depois se acharam. E o que por fim e com menos fúria e violência foi botado por espaço de quatro horas, pouco mais ou menos, até à meia noite, e que se ouvia ferir, e estrogir o ar caiu na mesma terra.
É de notar que nas cavernas da terra desta ilha há material quebradiço e estaladiço, que se pode quebrar com a mão, mui espesso e preto como azeviche, de que fazem imagens que trazem os romeiros nos sombreiros; alguns dizem que se chama atabona, como uma pedra preta que há nas Canárias, mas não é semelhante, pois esta matéria estala e quebra muito, e a atabona é tão forte pedra que dela fazem navalhas e lancetas. Este material preto que, Senhora, digo, de que há grande cópia nas cavernas e centro desta ilha , experiência dele) pondo-o no fogo, de preto se torna branco, e fervia tanto como fazendo-se todo em escuma que de pequena quantidade se tornava grande e de pouco muito, e resfriado ficava pedra pomes, como a que saiu pelas bocas que o fogo fez na serra.
Pelo que claramente se vê e entende que, aquentando o fogo, que se acendeu debaixo da terra, este material que achou nela, de pouca e pequena quantidade fazendo muita e grande, por isso não podendo caber no estreito lugar onde dantes estava, buscou boca por onde sair ao espaçoso do ar, expelido com a força do mesmo fogo, causando os furiosos terramotos que disse, alevantando-se no ar, como pedra leve que é, juntamente com a cinza e terra, arvoredo e mato alevantado. Mas, caindo depois sobre a terra com outras pedras e cinzeiro da mesma frágua, do que dentro do pico e serra tinha queimado; e feita cinza misturada com enxofre e outros materiais peçonhentos arrasaram e acravaram as terras.
E todas as pedras que saíam daquelas bocas vinham abrasadas em fogo, em diversas aparências e cores de várias feições e figuras, umas alvas, outras negras, outras roxas e algumas mui grandes, outras mais pequenas e infinidade delas mui miúdas; umas quadradas, outras compridas e outras redondas; e todas eram pedras moles e algumas das grandes eram pomes, e quase todas, umas e outras, eram leves, entre as quais todavia se achavam outras pesadas; algumas das quais, que subiram mais altas, quando desciam, caíam no mar e outras na terra, apartadas grande espaço daquela frágua, e outras maiores. E no lugar de Porto Formoso se achou uma de trinta palmos de comprido e grossura de uma pipa, de forma mais quadrada que roliça, a qual hoje em dia se vê no caminho do concelho onde caiu, trazida pelo ar, sem mãos humanas que, da boca do fogo donde saiu, está mais de duas léguas ao nordeste.
Foi tanta a multidão das ditas pedras e cinza, que levaram todo o pico consigo ao ar e fez um algar mais profundo do que dantes tinha de altura. E esta é a cinza que, ajuntando-se com a água da alagoa que este pico tinha, se tornou em polme e choveu a véspera de S. Pedro de noite e causava os acidentais eclipses do sol e as negras obscuridades, quando do dia se fazia noite.
Deste lugar do incêndio que está ao noroeste de Vila Franca, cortando a ilha direito abaixo ao mar do sul, mais de uma légua, a dita cinza e pedra pomes acravou e fez rasas as grotas e concavidades que por ali havia. E cortando para o norte até o lugar do Porto Formoso, termo da dita vila, daquela banda do norte, do dito lugar do Porto Formoso até à vila do Nordeste da banda do oriente, arrasou tudo, tornando e fazendo iguais os altos outeiros e fundas grotas. E tão subvertido, acravado, coberto e arrasado ficou tudo, que sem nenhum trabalho nem perigo se andava e podia andar por cima das pontas e ramos das mui altas árvores que soíam ser pousos dos ligeiros passarinhos, por tudo estar tão chão como um igual prado ou um raso areal feito da dita cinza; a qual, ao tempo que se isto experimentou, tinha criado uma côdea e dureza com a água que chovia, de maneira que consentia andar-se de tal modo assim por cima sem perigo, dado que por baixo estava falta e solta, e a lugares contudo apareciam algumas pequenas pontas das árvores, e nos montes e encumeadas mais altas se viam os paus e árvores até o meio, tudo tão esfolado, escalvado, chamuscado e seco, como de muito tempo cortadas, havendo tão pouco que estavam floridas e verdes. As ribeiras também daquela montanha nasciam, como é a do Limo e a da Praia e outras, que todas tinham grandes grotas e espaçosas concavidades por onde corriam, indo pelo meio a água mui funda, ficando-lhes de uma parte e de outra mui altas e íngremes rochas, de diversas árvores naturalmente prantadas. Tudo totalmente atupiu e acravou a dita cinza e algumas das ditas ribeiras secou; e na da Praia, da banda do sul, correu por ela tanta cinza, terra e pedra pomes que, tomando posse do mar além da rocha grande espaço, fez um grande areal e campo por onde agora vai o caminho comum, de maneira que por onde dantes podiam andar navios e as rochas onde dificultosamente andavam cabras pascendo e os cães caçando, podiam andar e correr depois a pé, e a cavalo e em carros se podia caminhar, porque a lugares, nas ditas grotas e concavidades, havia altura de mais de duzentos palmos, com a qual estavam atupidas até o meio e mais, tão iguais e direitas que pareciam umas ruas muito chãs. E as terras lavradias que, cheias de searas chegadas à foice, dentro no dito espaço acertaram ficar, também da mesma maneira foram acravadas e alagadas de cinza e pedra pomes, de altura, nas ladeiras e dependuradas, de três, quatro, cinco e de mais palmos, e, nas mais chãs delas, de altura de uma lança, e nos vales sem medida.
Cortando também a dita frágua em esquadria ao sudoeste da ilha até dar ao mar, em toda aquela parte dali para o oriente até o cabo dela, caiu tanta cinza misturada com pedra pomes, que sendo as mais profundas grotas e ribeiras e íngremes rochas e as maiores asperezas de toda a ilha, tudo na mesma altura atrás dita acravou e subverteu, arrasou e deixou muito chão, sem aparecer em partes paus nem árvores, e em partes muito pouca parte delas.
Acravaram-se também muitos povoados, como foram o lugar de Porto Formoso que mais perto daquele incêndio estava para o nordeste dele, onde com o terramoto caíram algumas casas e, com o peso da cinza e pedra pomes muitas, ficando cobertas e acravadas. No lugar da Maia, com o tremor, caíram muitas casas e com o peso da cinza e pedra pomes quase todas as que ficaram e algumas igrejas, em tanto que parecia que nunca ali estivera povoado, no qual caíram e se alagaram mais casas que em outro algum.
Em todas as outras povoações e aldeias, Fenais da Maia, as duas Achadas, grande e pequena, e S. Pedro, pelo mesmo modo poucas casas ficaram em pé, caindo algumas igrejas.
E, na Achada Grande, estando o povo na igreja com as portas fechadas, quando de noite chovia pedra pomes, dava rijo nelas cuidando todos serem demónios que queriam entrar com eles os esconjurava o vigairo de dentro.
No cabo e topo da ilha, na vila do Nordeste e ao redor dela, caiu mais terra, cinza e pedra pomes, que nas outras partes, pelo que receberam mais dano, e caíram muitas casas. E mais caíram, se não andaram continuamente sobre elas e em cima das igrejas a botá-la fora com pás e enxadas, ficando depois as ruas cheias e atupidas de pedra pomes e cinza, em partes, iguais com os telhados, e para entrarem nas casas e acharem as portas faziam cavas e minas.
E, se não fizeram a dita diligência, todas as casas caíram com o peso e toda a vila assolara.
Fazendo volta para o ocidente, ao longo do mar do sul, o lugar do Faial e o antigo da Povoação, que do fogo ficava ao sueste receberam menos dano; onde choveu pouca cinza e pedra e somente com os tremores caíram algumas casas de pouca substância. Daí direito ao fogo até à Vila Franca, e nela mesma, e até chegarem além dela ao sobredito passo, que disse primeiro ser alagado, caiu tão pouca cinza que em comparação dos outros lugares se pode ter por nada, porque a maior altura que aí sobre a terra fez, ainda não foi de um palmo. E de pedras caíram mui poucas e, a lugares, nenhumas. O que mais se deve notar para louvar a Deus é que em todos os lugares e povoados sobreditos, nem entre gente não caiu pedra alguma grande que pudesse matar ou ferir. Toda a perda e dano que fez este cinzeiro e pedra pomes, nestas partes, foi nas searas que estavam para se recolher e colmeias que estavam para se crestar; nas terras lavradias e de criações e pastos, nos pomares de diversas frutas, porque tudo cobriu e acravou, sem se aproveitar cousa alguma.
Subverteu e matou também o dito cinzeiro e pedra pomes muitos cavalos e éguas, e outras bestas de serviço, e gado de toda a sorte, bois, vacas, carneiros, ovelhas, cabras e porcos, até os passarinhos, de tal modo que nenhum aparecia, ficando todas aquelas partes desamparadas de seus moradores, que para outras fugiram, e tão sós que era medo e horror andar por elas, onde não se via senão uma soidade estranha, e a saudade de uma grande riqueza que fora e já não era; até ficaram as casas acravadas com quanto dentro tinham, que depois mal acertavam e podiam tirar, atinando os cães com as ovelhas que desacravavam debaixo do cinzeiro, como se viam depois muitas covas nele, no campo onde se chama a Creação, entre os Fenais da Maia e a mesma Maia. Todos finalmente em geral e cada um em particular receberam muita perda, não somente em seus móveis, mas na raiz e propriedades, até ficarem sem vestido e sem remédio, com a cinza mui espessa de quatro, cinco palmos de altura sobre as terras lavradias, misturada com pedra pomes mui miúda e, em algumas partes, pedra, ou sem cinza ou muito pouca, sem alguma esperança de jamais frutificarem, vendo-se muitos feitos pobríssimos, como o pobre Job, se Deus lhe dera e souberam ter também a paciência deste Santo. Bem dizer: um dia teu, outro do teu vizinho. Desta maneira foram os destas partes castigados. Mas os de Vila Franca, como já o haviam sido na sua subversão passada, na era de 22, estando na de 63 mais perto do fogo, tiveram menos dano, porque somente chegou o dano da cinza pela banda de oeste até Água de Alto, sendo arrabalde, menos distância de um quarto de légua, onde subverteu algumas searas, canas, pomares, gado, casas e outras cousas, e essa foi a maior perda que recebeu. Daí por diante não chegou, chegando da banda do norte até a serra mais propínqua, sua vizinha, que está mui perto, sem passar daí para baixo. Da banda de leste, chegou à Povoação Velha, que tenho dito, onde ainda fez pouco dano. E daí avante não passou.
Caiu tanto cinzeiro da parte do norte, nos montes da vila da Ribeira Grande, donde nasceu aquele fogo do incêndio, por onde correu aquela ribeira, que, altos e baixos, todos ficaram rasos. Convém a saber, grotas e o vão da Ribeira Grande e doutros regatos que a ela vão ter, em tanta maneira que a dita ribeira deixou de correr algum mês, ou mês e meio, em o qual tempo faltaram as águas e não havia água que beber, nem os moinhos dela moíam. No cabo deste tempo, que era no verão, no mês de Junho, depois que entrou o Inverno, que choveram algumas águas, com a água que corria, a ribeira , com esta água de represa e com a outra que chovia, se viu por diversos dias sete ou oito vezes correr a água, cinzeiro e pedra pomes, tudo junto a maneira de uma grande onda até chegar ao mar; e então ficava a ribeira como seca, sem correr, e daí por espaço de dez, doze credos, tornava a vir outra onda de água, terra e pedra pomes, tudo misturado, tornando a correr pela mesma maneira, e dava consigo no mar, o que causava encher-se o vão da ribeira, com cada onda de polme que vinha, como com uma capa de círio, que se faz com uma camada de cera sobre outra, de tal modo que se acabou de encher e atupir toda a concavidade da ribeira, o que foi causa que veio a espraiar a água tanto pela vila, que, arruinando alguns alicerces de casas, as derribava, e outras, com a sua fúria e corrente, levava diante de si ao mar. Assim destruiu quase meia vila e levou mais de duzentas casas, as mais delas sobradadas e das melhores que havia, por estarem ao longo da ribeira, onde os mais dos homens folgavam de edificar e morar.
Também aconteceu algumas vezes vir tanta pedra pomes pela dita ribeira, que nalguns lugares estreitos dela ficava por cima de água tão basta e em tanta quantidade que algumas pessoas que queriam, passavam por ali, de uma parte a outra, a pé enxuto, como por cima de uma ponte, ou duro caramelo, sem se afundarem nem molharem. E tanta cinza, terra e pedra pomes correu pela dita ribeira Grande que corta a vila pelo meio, que tomando posse do mar, compridão de mais de dois tiros de besta, fez uma grande praia do dito polme, de maior quantidade que doze moios de terra. E trazendo depois a mesma ribeira com suas enchentes muita lenha, da que com as chuvas se ia desacravando do cinzeiro, que caído estava sobre os matos, se apanhava na vila e na nova praia, onde espraiava, com ganchos, por muitos dias, em um só dos quais se tiraram mais de mil carradas de lenha dela, que servia para madeira de casas e arcas, e outra mais torta para o fogo, afora muita que foi ter ao mar, levando também com ela algumas pessoas com sua fúria, das quais algumas se tiraram e escaparam, e outras morreram, sem nunca mais se saber delas. Com a mesma fúria, levou duas pontes grandes, lavradas de pedra de cantaria, que eram serventia da vila, deixando-a destruída, e seus arrabaldes e Lomba assolados e postos por terra, sem ficar casa em pé que não caísse com o tremor, ou em parte, ou em todo. Pelo que este segundo terramoto pôs a dita vila no estado em que agora está com suas ruínas, parecendo pobre aldeia, que dantes era a mais povoada, rica e lustrosa vila deste Bispado. Não lhe fez também o dito terramoto pouca perda na lenha que lhe arrancou dos matos, dela deitada no mar, e outra acravada neles, pois agora lhe custa mui caro i-la buscar mui longe.
Tanta foi a quantidade e multidão de cinza e pedra pomes que da dita ardente frágua saiu, e tão alto botada que, quando desceu e caiu, não somente alagou e subverteu o que da ilha dito tenho, mas ainda caiu muitas léguas pelo mar, para a banda de leste muito mais, que parecia terra imóvel; porque sobre as suas águas se fez e pôs em bardos e bancos tão grandes e altos que nos espaços e intervalos de mar, que entre uns e outros ficavam, estavam os navegantes abrigados, porque alguns eram de largura mais de légua e outros menos, e de comprido tão grandes que com a vista alcançar se não podiam. O que foi visto e contado por pessoas dignas de crédito e mareantes que em aqueles dias, vindos do Regno, aportaram a esta ilha, afirmando que quando os ditos bardos viam a primeira face de longe, lhes pareciam terra, pela grande altura que assim, sem se moverem sobre o mar, traziam. E quando mais perto chegaram, vendo que eram cardumes e multidão de pedra pomes e terra tinham para si que era a ilha subvertida, pela altura em que estavam e rota e rumo em que vinham, trinta, quarenta, cinquenta léguas dela. Vindo assim por o não poderem escusar, nem lhes parecer que era cousa de tal sorte, envasaram em uma ponta dos ditos bancos, mui pequeno em comparação dos que apareciam, e raso, sem ter altura sobre a água. E vindo o navio com vento fresco e próspero, correndo com grande ligeireza, com todas suas velas estendidas, encalhou de tal maneira que parecia dar totalmente em seco e ficou quase imóvel. E metendo um marinheiro de proa um remo no dito cardume e bardo, sem embargo de ser raso e não ter para cima de água alguma altura, para baixo a tinha tanta, que afirmou meter o remo mais de dez palmos pela cinza abaixo sem chegar a água; o que lhes pôs grande espanto e medo e então tiveram por certeza que não podia ser outra cousa senão a ilha queimada, subvertida e alagada. E, não podendo assim andar nem romper por diante, viraram as velas e por outra parte, com assaz trabalho, fizeram seu caminho, guardando-se sempre dos mais semelhantes perigos e novos baixios, deles tão altos sobre a água que pareciam ilhéus, de altura de doze, quinze palmos, a lugares, de sua compridão e largura.
Um Vicente Anes Bicudo, homem nobre, honrado e discreto, dos principais da vila da Ribeira Grande, contou que vindo então do Reino, cinquenta léguas desta ilha, com tormenta fora dar o navio em um grande bardo de pedra pomes, onde viram um tabuleiro e algumas árvores, por onde julgaram ser a ilha subvertida. E dentro no bardo ficaram em bonança, mas pelo perigo se saíram fora, onde com a tormenta desejavam tornar à bonança do bardo da pedra pomes.
Outras pessoas de crédito, em outro navio que também vinha do Reino, afirmaram que em meia travessa, mais de cento e cinquenta léguas desta ilha, acharam grande cópia da dita cinza e pedras em cardumes, mas não tão bastas nem tão grandes; pelo que não se pode ninguém tanto espantar, pois mais longe da dita ilha, a quarta-feira logo depois do dia de S.
Pedro, vindo outro navio, lhe choveu muita cinza e pedra miúda, e lhe fez muito medo. E a mesma quarta-feira foi a dita cinza tão alta em aquelas monstruosas nuvens que contei, que quando desceu foi muita dela cair em partes de Portugal, na cidade de Coimbra e seus termos e arrabaldes, e muito mais além, na cidade de Braga.
Acharam estes mareantes, uns e outros, no mar muitos bois e outro gado de toda a sorte, muitos mortos, e muitos e grandíssimos paus e árvores inteiras com seus ramos, folhas e raízes, e outras chamuscadas e muitas meias queimadas e torcidas, trinta, quarenta léguas da ilha, pelo que mais afirmaram e tiveram para si ser a ilha perdida; e vinham com grande receio e temor de em algumas relíquias dela se perderem.
Indo desta ilha um mareante para Lisboa, o Bretão, de alcunha, se achou com sua caravela em meia travessa o dito dia de S. Pedro, onde caiu também a dita cinza e choveu sobre eles de tal sorte que lhe deu grande trabalho. E depois os alcançaram as obscuridades que aconteceram no mesmo dia, em que foram em trevas como em obscura noite; e por muitos lós e bordos que faziam nunca se puderam livrar delas até outro dia, que viram a lux ; e até chegarem a Lisboa lhe choveu a dita cinza tanto, que lhe foi necessário às pás deitá-la fora, o que lhe deu grande tribulação e medo, sem poderem determinar a causa. E assim chegaram, levando ainda muita dela, que muitos de terra vinham ver e perguntar, desejando saber cousa tão monstruosa, porque já tinham visto a que lá nos outros lugares havia caído, mas os do navio nenhuma razão lhe souberam dar disso.
Permitiu Deus, por sua grande misericórdia, que todos aqueles atribulados dias ventassem ventos da banda de ponente; pelo que se subverteu e acravou a parte da ilha que disse, porque se ventaram ventos de outra qualquer parte do levante, além de para a outra parte na mesma ilha se fazer outra tanta ou maior destruição, não há dúvida senão que as outras ilhas dos Açores para oeste desta, sem falta houveram de ser alagadas com aquela multidão de pedra e cinza que, para o leste, no mar caiu. Finalmente, alguns julgaram que faria este terramoto, de perda em toda a ilha, mais de duzentos mil cruzados. E outros afirmaram que a trezentos mil cruzados chegaria.
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