As cousas da guerra, posto que dantes tenham mui ordenados preparatórios, erigidas companhias e ordenanças, muitos e rigorosos preceptos e gravíssimas penas, e com passos contados vão marchando os capitães, alferes, sargentos, cabos de esquadra, soldados velhos e bisonhos com armas diversas, postos e arrumados em diversos lugares determinados, os arcabuzeiros e mosqueteiros na dianteira e logo após eles os piqueiros, lanceiros, alabardeiros e seus esquadrões formados com sua vanguarda e rectaguarda, sua artilharia assestada, trincheiras feitas, repairos, sentinelas, espias, corredores de campo e muitos outros oficiais de milícia que nela têm diversos nomes e cargos, subalternados todos com infalível e inviolável obediência uns a outros, dos soldados aos cabos, dos cabos aos sargentos, dos sargentos aos alferes, dos alferes aos capitães, dos capitães a seu mestre de campo, do mestre de campo a seu general, sem discrepar da ordem determinada o menor ponto do mundo, e toda esta ordem se guarda sem quebra, antes de entrar na batalha; todavia, depois de entrar nela, toda a ordem se desordena e todo o conserto se desconserta, porque então não há aí senão dares e tomares, ferir, acometer, retirar, amparar, ofender e ser ofendido, tendo mais lugar a boa fortuna e ventura, que Deus dá, que o bom conselho que os homens tomam, que vem depois a ter má saída, onde às vezes o fraco vence o forte, o pusilânime é mais valente, o ignorante tem mais prudência, o temerário melhor juízo, o desacordado muito melhor acordo, e o covarde pior sucesso, pois indo fugindo o pesca ao longe o pelouro perdido, e o ousado mais triunfante coroa, pois, posto na boca da fronteira das bombardas assestadas contra si, escapa de tão evidente e presente perigo e alcança gloriosa vitória. Vimos alguns que nunca cingiram nem tiveram espada, nem aprenderam a jogar dela, saírem no tempo da briga melhores mestres de esgrima que os cursados nas armas, porque a cólera lhe fica por mestre para as manear mais ligeiras, e como a mesma cólera não espera nem guarda talho ou revés, desordena todas as ordens usadas e por usar, e a aprender e aprendidas. Na guerra, finalmente já travada, é a ocasião então ordem, e a ordem faz muitas vezes perder a boa ocasião da vitória. E ainda que pela mor parte os muitos façam perder a virtude aos poucos, muitas vezes os poucos vencem os muitos; como aconteceu na cruel batalha naval que houve entre as duas armadas de Hespanha e de França, defronte desta ilha de S. Miguel, cinco léguas ao mar da parte do sul, que agora contar quero, onde tão poucos hespanhóis venceram quase dobrado número de franceses. E pois que a batalha, depois de travada não tem ordem, posto que dantes a tenha, nem eu a posso guardar no contar dela. E, como a guerra às vezes parece que se acaba e então outra vez começa e se ateia, assim contando-a eu, seguindo seu baralhado estilo, a tornarei algumas vezes começar a contar de novo, quando parecer que estou já no cabo dela; pelo que perdoareis, Senhora, meus desconsertos, como cuido que tendes perdoado os das cousas atrás, que contadas tenho, e haveis de perdoar os que tiver nas cousas que mais adiante contar pretendo, pois as desordens não se podem bem contar com ordem.
Estando o grande Rei Filipe coroado no Reino de Portugal e de posse dele, como sucessor por morte de el-Rei D. Henrique, e a ilha Terceira rebelada com a voz de D. António, que tinha jurado por seu Rei, e esta ilha de S. Miguel de contrairo parecer, obedecendo ao dito Rei Filipe, mandou ele ordenar uma grossa armada em duas diversas partes, convém a saber, em Lisboa e Sevilha, para ambas se ajuntarem a um mesmo tempo no mar do ponente, em favor da dita ilha de S. Miguel, sobre que sabia por suas inteligências
que se ordenava outra armada em França, e para guardar as frotas das Índias oriental e ocidental, que esperava. E, tendo aviso que era já partida de França a dita armada francesa que D. António, filho do Infante D. Luís, lá fizera com favor e ajuda da Rainha mãe e Filipe Strosse, marichal de França e geral da dita armada, e de outros senhores de França e de alguns portugueses de seu bando, mandando o dito Rei Filipe recado à armada de Sevilha, que no rio surta estava, detida com a peste, para que logo partisse, fez partir a outra que estava em Lisboa, em que vinha por geral D. Álvaro de Bazam, marquês de Santa Cruz, senhor das vilas de Viso e Val de Penhas, comendador mor de Leão, do conselho de Sua Majestade, e seu capitão geral do mar Oceano e da gente de guerra do Reino de Portugal, e por mestre de campo geral D. Lopo de Figueiroa, vitorioso em Lepanto, Granada, Navarra, Tunis, Querquenez e Frandes, acompanhado com mil e trezentos soldados velhos, do forte terço da Liga, e de D. Pedro de Toledo, marquês de Vila Franca, de grande esforço e experiência na guerra, e D. Francisco de Bovadilha por mestre de campo da dita armada, com dois mil soldados manchegos e luzidos toledanos, e D. Cristóvão de Erasso, nomeado nas batalhas, com mil soldados, sinalado por geral da armada das Índias, e o esforçado marquês de Favara, e o valoroso D. Pedro de Tharsis, e outros muitos cavaleiros de memória. E com quinhentos tudescos, em três urcas framengas, se ajuntaram quatro mil e oitocentos infantes, afora os entretidos e aventureiros, fidalgos e cavaleiros de grande esforço, andaluzes, manchegos, castelhanos, galegos e portugueses.
Com toda esta gente, saiu o marquês de Santa Cruz do rio de Lisboa a dez de Julho de mil e quinhentos e oitenta e dois anos, com vinte e oito naus e com cinco patachos pequenos, por ter ordem de Sua Majestade de partir com esta armada sem esperar as dezanove naus, dois galeões, doze galés e dois patachos que estavam aparelhados em Andaluzia; e fazendo-se ao mar, navegou com ruim tempo três dias, de maneira que ao cabo deles se achou cinquenta e cinco léguas de Lisboa, na paragem do cabo de S. Vicente, cinquenta léguas dele, tendo-lhe feito o mau tempo descair tanto da altura e da rota que trazia. Daqui, uma nau aragonesa em que iam três companhias das velhas de Frandes, e as mezinhas e oficiais do hospital e médicos e sururgiões , se tornou sem ordem, dizendo que fazia água. E aos treze dias do dito mês foi Deus servido dar ao marquês tempo favorável, com o qual ao outro dia e noite cobrou a altura que havia perdido, e posto nela, continuando-lhe o bom tempo, seguiu sua viagem até aos vinte e um dias do dito mês de Julho, que houve vista desta ilha de S. Miguel. E o domingo, vinte e dois do dito, chegou sobre Vila Franca do Campo, tendo o dia de antes despachado dois patachos a cargo do capitão Aguirre, que vinha por cabo dos cinco, dando-lhe seis mosqueteiros em cada um, e advertindo-o fosse com resguardo e se topasse a armada inimiga não chegasse a bordo de nenhum navio, nem deixasse chegar nenhuma barca aos patachos; escrevendo com ele o dito marquês ao governador desta ilha Ambrósio de Aguiar como a parte da armada de Sua Majestade, com que vinha, se achava mui pujante com cinco mil e quinhentos soldados embarcados nela, incluso o terço de D. Lopo de Figueiroa com mil e oitocentos dos de Frandes, afora mais de duzentos fidalgos e pessoas particulares, entretidos e aventureiros, que vinham a servir a Sua Majestade; e que a armada que vinha de Cadiz era de outro tanto número e qualidade, com outros cinco mil infantes, inclusas cinco bandeiras do terço velho de Frandes; pedindo-lhe lhe mandasse as novas que tivesse da armada de França, se havia passado e com que naus, porque, com a armada com que se achava esperava ir combatê-la, e que dissesse a Pero Peixoto que se pusesse em ordem para o seguir com a armada de seu cargo.
Ao tempo de querer surgir o marquês em Vila Franca, foi à nau capitaina uma caravela das três que ficaram em Lisboa, para trazer os cavalos, e deu aviso como o dia antes tinham chegado sobre a dita vila as três naus da armada, que ficaram em Lisboa e saíram o dia seguinte à partida do marquês, e as caravelas com elas; as quais três naus se foram na volta do mar, e as duas caravelas foram tomadas sobre a dita vila, uma com cavalos do mestre de campo geral e de outros, e que esta caravela que dava as novas, se saíra na volta do mar, fugindo duma nau que lhe dera caça. Sabendo isto o marquês, mandou logo algumas pessoas particulares a tomar língua nesta ilha, entre os quais foi um Fernão de Medinilha, valoroso soldado velho e exercitado em muitas notáveis batalhas. E, acometendo desembarcar junto da Ponta da Garça e perto da Ribeira das Tainhas, não os deixaram chegar a terra com arcabuzadas os que estavam pela costa dela, em suas estâncias; os quais perguntados por quem estava a terra e que naus eram aquelas que junto do porto de Vila Franca andavam, e que novas tinham da armada de França, responderam que estava esta ilha por el-Rei Filipe, e que aquelas naus deviam ser da frota das Índias, e que não sabiam parte da armada de França. Outros disseram que fosse à cidade, porque ali ninguém podia desembarcar. Fernão de Medinilha lhes disse que o deixassem sair em terra, pois estavam por Sua Majestade, para saber o que passava, ou que algum deles entrasse no seu barco e fosse com ele ao marquês, que lhe faria grandes mercês, dizendo-lhe a verdade. Ao que replicaram que fosse ao porto da vila, junto do baluarte e ali o deixariam sair, e dizendo isto lhe atiraram com alguns arcabuzes, pelo que Fernão de Medinilha e os outros entenderam estar a terra fora do serviço de el-Rei D. Filipe. E tornados à armada deram relação ao marquês do que passava.
Vendo isto o marquês e o aviso do patacho, como o capitão Aguirre ficava preso com outro patacho em poder de um navio francês e barcos que saíram de terra, entendeu que a ilha estava rebelada, pelo que mandou logo chamar a D. Lopo de Figueiroa, mestre de campo geral, para tratar de botar um golpe de gente em terra a tomar língua em Vila Franca e fazer aguada, mandando os capitães Miguel de Oquendo e Rodrigo de Vargas a reconhecer a parte onde se poderia surgir; no qual tempo os da gávea do galeão capitaina começaram a descobrir navios à parte da cidade da Ponta Delgada, onde está a fortaleza. E parecendo-lhe ao marquês que seria a armada inimiga, deixou o desígno , que levava e foi na volta da Ponta Delgada. E logo se descobriram mais navios e se entendeu ser a armada de D. António.
Indo-se chegando a nossa armada à inimiga e tendo-a já reconhecido, porque se saía ao mar, visto que eram mais de sessenta velas, entre grandes e pequenas, ajuntou o marquês de Santa Cruz a conselho os principais dela: D. Pedro de Toledo, D. Lopo de Figueiroa, mestre de campo geral, o marquês de Favara , D. Pedro de Tharsis, vedor geral, e o mestre de campo D. Francisco de Bovadilha, e outros fidalgos e capitães castelhanos e portugueses, que foram chamados, dizendo-lhes com risonho e alegre rosto: — bem vemos a inimiga armada com grã soma de velas, mais que a nossa, mas não tão boa e com tão honrada gente; eu, com a ajuda de Deus, se o vento me for favorável, lhe darei batalha, e se não, quando o seja ao inimigo, o aguardarei e pelejarei com ele até o desbaratar, se assim vos parece. E, todos muito contentes com a ousada determinação do marquês, concluiu que se representasse a batalha e fosse pelejar com a armada inimiga; a qual fez o mesmo, pondo-se em ordem e disparando uma peça de artilharia, por sinal de batalha. Logo o marquês mandou arvorar o estandarte de guerra e tirou uma peça, mandando aos capitães Marolim e Rodrigo de Vargas, para que discorressem por toda a armada com ordem de batalha, que foi uma fronteira das naus e galeões aos lados do galeão S. Martinho, que era capitaina, ao direito o galeão S. Mateus em que iam D. Lopo, mestre de campo geral, e o vedor geral, e ao esquerdo a nau em que ia o mestre de campo D. Francisco de Bovadilha, e quatro de socorro, repartidas as dez guipuscoanas com as outras naus, com os capitães Miguel de Oquendo e Vila Viçosa, sem que pudesse tomar seu lugar este dia na batalha D. Cristóvão de Erasso, por ter ficado sua nau muito atrás, por trazer sentido o calcês do masto maior, e assim não poder fazer força de vela na gávea, de que pesou muito ao marquês, por lhe faltar em tal ocasião a pessoa de D. Cristóvão. E, todos alegres e esforçados com o esforço e grande ânimo do marquês, com suas armas nas mãos, estiveram aguardando a hora da honrada batalha, com a ordem seguinte.
No galeão S. Martinho, que ia por capitaina da armada, deu o marquês para a batalha esta ordem: que na alcáçova alta de popa estivessem vinte fidalgos e arcabuzeiros e vinte mosqueteiros; e na alcáçova mais baixa os fidalgos portugueses, afora D. Diogo de Castro, que esteve na alta, e vinte arcabuzeiros e seis mosqueteiros; e debaixo da alcáçova alta estivessem de socorro D. António Pessoa, D. Luís Osório, D. Gonçalo Ronquilho e o coronel Mendinara, o capitão Quesada e outros quatro arcabuzeiros; e, na praça do galeão, quarenta arcabuzeiros por banda, a cargo do capitão Gamboa; junto à câmara de popa, estivessem em corpo de guarda quarenta soldados, os mais homens particulares e que haviam sido oficiais, a cargo do capitão Agostinho de Ferreira, para acudir às partes onde houvesse mais necessidade; no castelo de proa, João Baptista Sanzoni, fidalgo milanês, com os sargentos dos capitães Agostinho de Ferreira e Gamboa, com quinze arcabuzeiros e dez mosqueteiros; na gávea maior, o alferes D. Francisco Galo com oito mosqueteiros, e na do traquete, seis, afora os gajeiros; na coberta baixa, onde está a artilharia grossa, os capitães D. Cristóvão da Cunha Escobedo e João de Alier, e os alferes Fauste e Esquivel; e com cada peça um bombardeiro e seis ajudantes, cada um com seu espeque; com a artilharia da coberta alta, Marcelo Caraciolo, e o serviço como na de baixo; e, à guarda da pólvora, o capitão Grimaldo com quatro marinheiros. Além disso, mandou estar por popa do galeão uma falua e quatro patachos, para levar recados e ordens, e encher de água o esquife que ia dentro e pôr tinas de água e pipas por diversas partes do galeão, repartir em seus postos todos os lanceiros, piqueiros e alabardeiros, e estar os marinheiros sobre os aparelhos; e que os capitães Marolim e Rodrigo de Vargas, como homens de mar e muita experiência, acudissem à artilharia e ao mais que cumprisse. Todo o qual se pôs em execução com grande pressa e vontade, por estar prevenido dantes que chegasse a reconhecer esta ilha. Feito isto, como se ordenou, com muito estrondo de pífaros e tambores e bandeiras estendidas, amarelas, azuis e brancas, foi a nossa armada investir a inimiga, a qual ia a fazer o mesmo em boa ordem, com bandeiras amarelas, laranjadas e negras; e os navios pequenos em sua rectaguarda. Mas, por acalmar o vento, não puderam combater este dia, e saíram na volta do mar, sem haver tomado o marquês língua do que na ilha havia. Depois, às quatro horas da noite, chegou ao galeão capitaina Domingos de Aduriaga, mestre da nau Catarina, em uma pinaça, com outros cinco marinheiros biscainhos, e levou um bilhete de D. João de Castilho que estava na fortaleza, que dizia: — Essa armada de D. António que aí vai tem cinquenta e oito velas, as vinte e oito grossas e as outras pequenas; tem seis mil franceses; se a nossa não é poderosa para pelejar com ela, se poderá arrimar a esta fortaleza, por estar por el-Rei Nosso Senhor e veja Vossa Senhoria que se aventura muito, se se perde. Deste mestre e seus companheiros, soube o marquês de Santa Cruz como D. António chegara com sua armada a esta ilha de S. Miguel a quinze de Julho, e que aos dezasseis deitara em terra até três mil homens, a que saíra D. Lourenço com alguma gente, e o estado em que estava a ilha, e o que nela até então passara, como tendo contado, e como, com a nova da chegada da armada de Hespanha, se embarcaram os inimigos a grande pressa. Depois de informado o marquês de tudo, escreveu com os mesmos ao capitão e governador e os mais da fortaleza, animando-os e fazendo-lhes saber como a armada de Sua Majestade, com que vinha, se achava mui poderosa, com muita e mui boa gente embarcada nela, que esperava em Deus que o dia seguinte havia de dar batalha e ter vitória, e que assim estivessem contentes, como ele o estava, do serviço que tinha feito a Sua Majestade que ele lhe representaria para que lho gratificasse. E com isto tornou despachada a pinaça à ilha.
O dia seguinte, que foi segunda-feira, vinte e três de Julho, se tornaram representar a batalha as duas armadas, tendo a francesa o vento e o sol em seu favor, e foi a investir a hespanhola, repartida em três esquadrões, o qual acometimento fizeram três vezes aquele dia, sem o executar; e, à tarde, indo a armada de Hespanha na volta do mar, a francesa deitou dez naus ao longo da terra da ilha para tomar aquela noite as costas, mas, por acalmar o vento, não puderam ir por diante.
Terça-feira, vinte e quatro do dito mês, se tornaram a juntar e, tendo a armada inimiga o vento em seu favor, acometeu a investir a nossa outras duas vezes, indo na volta da terra da ilha, sem o pôr em execução. E, parecendo-lhe ao marquês que não lhe convinha ir mais naquela volta de terra, mandou marear as velas e sair ao mar, ainda que sempre entendeu que então o havia de investir a armada inimiga, enquanto a nossa se punha à vela e virava, por terem eles o vento em seu favor. E foi assim porque aquela noite d’antes entraram em conselho D. António, Filipe Strosse, o conde de Brissac e o conde de Vimioso, na capitaina de França, e depois de tratar da escaramuça e que naus haviam saído a ela, acharam que, se rompiam seis naus da Hespanha, que tinham atirado, facilmente as demais seriam suas, para o que acordaram que ao outro dia dessem a batalha, antes que viesse a armada de Andaluzia, e, rota esta, seria possível ser também vencida a outra. E para o outro dia ordenaram que a capitaina de França, em que vinha Filipe Strosse, e um galeão novo, em que estava seu sobrinho, abalroassem a nossa capitaina e em seu socorro fossem duas urcas, em que vinham muitos soldados velhos de Piamonte; e a almiranta de França, em que vinha o conde Brissac, e outro galeão francês, em que vinha o coronel dos franceses, abalroassem o galeão S. Mateus, e em sua ajuda uma urca, sendo necessário; e outras duas urcas, mui bem armadas, abalroassem a nau do mestre de campo D. Francisco Bovadilha; e a capitaina de Biscaia, abalroassem outro galeão e duas urcas de muitos particulares, soldados velhos de monsior Charles; e a nau de D. Cristóvão de Erasso, abalroassem duas naus biscainhas que haviam tomado vazias da armada de Pero Peixoto, e já tinham mui bem artilhadas; e que as demais aferrassem uma com outra, pois assás eram superiores em navios, e a que não achasse onde aferrar socorresse a parte onde necessário fosse. Concluindo neste conselho, D. António, que vinha na nau real, se foi para uma fragata em que trazia o estandarte real por popa, e não lhe parecendo a todos que se devia achar na batalha, se foi aquela noite para a Terceira.
Amanhecendo, pois, véspera de Santiago, que era a mesma terça-feira dita, vinte e quatro de Julho, a capitaina francesa com sete galeões foi investir o galeão S. Martinho, capitaina da armada de Hespanha, e o galeão S. Mateus; mas, chegando mui perto, não o fizeram, disparando somente muita artilharia à nossa capitaina e a S. Mateus, e outra de seus navios aos nossos, de quem foram recebidos com semelhante rociada de artilharia da capitaina de Hespanha, de quatro peças, e outras muitas do galeão S. Mateus e também da nau de D. Cristóvão de Erasso, que já se tinha ajuntado com a armada; e da de D. Francisco de Bovadilha e Miguel de Oquendo e outras, que foi uma gentil vista. As peças que se atiraram deram quatro na nossa capitaina, uma na vela do traquete, outra na enxárcia, outra em uma âncora, e a quarta no costado, sem que nenhum pelouro fizesse mal; em S. Mateus, acertaram três, também sem fazerem dano, e também o não fizeram algumas peças que acertaram a outras naus de Hespanha. Nos galeões inimigos, se viram dar alguns pelouros, especialmente quatro do galeão S. Martinho, e pela retirada que fizeram se entendeu que recebiam dano.
Vinham na armada francesa duas capitainas e duas almirantas, e até quarenta navios grandes e entre eles alguns galeões, mui gentis navios; os outros eram pequenos, mas a propósito para armada por sua ligeireza, e trazia outros muitos patachos menores ao redor da armada, a duas e três léguas dela, a tomar língua e descobrir, afora duas setias das marselhesas, mui bons navios de vela, e muitas chalupetas de remos, com que rebocavam a armada e a punham em batalha, quando fazia bonança. Este dia, à tarde, se apartaram as armadas, e o marquês ordenou à sua que ao pôr da lua virassem outra volta, para procurar de ganhar o vento à inimiga, virando pela manhã sobre ela. E assim se fez, achando-se o marquês, dia de Santiago, vinte e cinco dias de Julho, a balravento do inimigo, foi em seu seguimento para investir e por serem os navios que levava pesados da vela, não puderam fazer efeito, antes D. Cristóvão de Erasso, seguindo os inimigos e rendendo-lhe o mastro maior, tirou um tiro, pelo que foi forçado ao marquês tornar a socorrê-lo e dar-lhe cabo com sua capitaina. Viu-se este dia um navio grosso dos imigos que lhe faltava o traquete, e duas naus que o ajudavam, e, não o podendo socorrer, se foi ao fundo. Dizem ser uma nau, chamada a Rosa da Rochela, entendendo-se que seria arrombada de algum tiro do dia passado.
Amanhecendo esta dia de Santiago, quando a armada do imigo, desejosa de efectuar seu conselho, apareceu perto dos hespanhóis, era o vento tão escasso e tão pouco, que se não pôde pôr nenhuma das armadas em ordem de guerra, e, se houvera galés, este dia se ganhara a mor parte da armada francesa; assim passou todo o dia sem tirar tiro. E os da nossa armada se forneceram e trincheiraram muito mais, e puseram todas suas estâncias em muita ordem, estando todos armados com muitas armas douradas e penachos e bandas de seda de diversas cores, que ao imigo punham espanto. Era também muito para ver a soberba, galhardia e formosura da armada francesa, com suas ricas armas e formosas bandeiras e estandartes, e suas trombetas e tambores, que, por ser superior de muito mais velas e gente, quisera o marquês entreter a batalha até que chegara a outra armada de Andaluzia que esperava, porque das dez urcas de sua armada faltavam duas, que levavam alemães, e as três naus que partiram de Lisboa depois de saída a dita armada, que tampouco se ajuntaram com ela. E assim não ficou o marquês de Santa Cruz, a este tempo, senão com sós vinte e cinco naus, inclusos os dois galeões.
Aos vinte e seis de Julho, que foi dia de Santa Ana, pela manhã, tornou a armada imiga a ir em busca da de Hespanha com boa ordem e o vento em seu favor, seguindo o conselho que dantes tiveram com novo ardil de guerra, fundando-se em guarnecer, como guarneceram, os mais fortes galeões de sua armada, dos mais valorosos soldados e capitães que traziam, e assim em dez ou doze dos ditos galeões puseram a maior força de toda a sua armada, com desígnio e intento que cada seis ou sete destes acometessem os dois grandes galeões S.
Martinho e S. Mateus, em que a força de toda a armada de Hespanha consistia, e que com grande ímpeto e esforço os investissem, sem os deixar, até serem de todo ponto rendidos; para o qual outras naus que para isso também aparelharam, servissem de lhe lançar gente de refresco, afim de não desfalecerem de seu furioso ímpeto. O marquês de Santa Cruz fez por ajuntar as naus de sua armada, ainda que o galeão S. Mateus ficava atrás, de que lhe pesou, parecendo-lhe que podiam os imigos abordá-lo, sem que pudesse ser socorrido com a brevidade que convinha, e foi assim porque o foram investir a capitaina e almiranta, que iam dianteiras. O mestre de campo geral D. Lopo de Figueiroa, de quem dependia a maior parte desta batalha, avisado do marquês do que queria fazer, como astuto capitão, tinha já empunhada a mesma determinação, de maneira que com só seu galeão determinava dar batalha ao imigo, e assim alguns dias de antes tinha dado ordem para a dita batalha, na maneira seguinte.
No castelo de proa, ao capitão Rosado e seu alferes e bandeira, e D. Félix de Aragão, Fradique Carneiro e Gaspar de Sousa, sobrinho de D. Cristóvão de Moura, fidalgos portugueses, com trinta arcabuzeiros e dez mosqueteiros.
Na praça de armas do galeão, cinquenta arcabuzeiros e mosqueteiros, com os sargentos de Rosado e do mestre de campo geral, e o alferes Fernão de Medinilha.
Na alcáçova de baixo, de popa, a D. Francisco Ponce, com vinte arcabuzeiros e mosqueteiros.
No alto da popa, a D. Gonçalo de Carvajal, alferes do mestre de campo geral, com sua bandeira e trinta soldados arcabuzeiros e mosqueteiros.
O mestre de campo geral, o vedor geral D. Pedro de Tharsis, o capitão Vila Lobos, português, acudiam a todas as partes.
Nas varandas, oito soldados arcabuzeiros; em cada gávea, quatro arcabuzeiros e dois mosqueteiros; os gajeiros com muita pedra e alcanzias de fogo.
Com a artilharia alta, o alferes Bernabé; com a baixa, o alferes João Franco e o sargento Manuel Correia, valoroso soldado português, natural desta ilha de S. Miguel, que agora é também sargento mor nela; com a gente de socorro, o alferes Çapata e o alferes Luís de Leiva; com a pólvora, o capitão Rodovalho, português, com outros dois homens principais. A cada peça de artilharia, um bombardeiro e seis ajudantes, e a cada portinhola, dois mosqueteiros; todas as armas de haste em seus lugares reconhecidos; por todo o galeão, muitas tinas e quartos cheios de água, baldes e muitas mantas molhadas para o fogo. O piloto no alto de popa, e o mestre sota-piloto com dez marinheiros; na proa, o contra-mestre com quinze marinheiros; no convés do galeão, o guardião e o meirinho com os mais marinheiros e grumetes; ao leme, oito marinheiros, a cada aparelho, dois, e todos com suas armadas sinaladas em seu lugar, para se fosse necessário pelejar com elas. E, antes de chegarem a ele a capitaina e almiranta francesas, o dito D. Lopo de Figueiroa, sabendo que de aquela vez o haviam de investir, por ele estar só, apartado da sua armada, e os imigos já muito perto, tendo tudo posto em ordem e vendo quão necessário era naquele tempo animar sua gente, fez um parlamento, onde não começou, como outros capitães fazem, dizendo : — ó fidalgos e valorosos capitães e soldados, lembro-vos que tendes feito grandes cousas e estranhos feitos de armas, de cuja notícia e certeza o mundo está cheio, para que agora, se então fostes um para mil, vos lembre que hoje sois quase tantos por tantos, e ainda que o imigo exceda em outro tanto número, acordai-vos que é francês e são daqueles de quem em Frandes triunfastes muitas vezes, vencendo e desbaratando seus campos e exércitos, e prendendo seus capitães e os melhores cavaleiros deles, a quem vistes em um dia cortar cinco mil cabeças, e em outro três mil. Destes, pois, ainda que galos, são os que hoje vos representam bataria e vos acometem, a quem fareis, por vossos esforços, de galos, galinhas. Nem lhe quis dizer D. Lopo outras cousas deste género, senão começou dizendo e pelejando: — ó poltrões, e mais glutões que esforçados soldados, tornados hoje galinhas, que cuidais? De que fazeis conta? Hoje é o vosso fim e hoje me hei-de vingar de vós, todos Cuidáveis que vínheis como em Nápoles a gozar das boas pinhatas e panelas de vaca gorda e toucinho cozidas, e de carneiro e galinhas, e daquelas espetadas de vitelas assadas e gordos cabritos, frangãos, e faisões, de que tão usados e costumados fostes? Ou cuidáveis que era vir nesta armada a banquetear-vos por esses países e lugares de toda a Itália? Ou parecia-vos que era ver putanas de Florença ou de Milão, e andar em vossas ramerias e velhaquarias de Apúlia e de Calábria, ou que tudo eram regalos de Sicília? Não vos acontecerá hoje assim, poltrões, senão entre bombardas de cruéis inimigos espero vossa morte e minha vingança.
Mas, já que tanto à porta vo-la vejo, encomendai-vos a Deus, e cada um coma alguma cousa primeiro, e a mim me achareis até à morte convosco. Bem sei que pelo grão número de velas cuidará o inimigo dar-vos batalha a seu salvo, mas para tão principais soldados e esforçados cavaleiros, estou mui satisfeito, que se engana quanto o hei experimentado em outras batalhas, assim no mar, como na terra. Lembro-lhes que depois de haver ganhado e destruído as ásperas serras do alevantado Regno de Granada, com tão felice sucesso, nos embarcámos com o senhor D. João de Áustria, de gloriosa memória, e na batalha naval que se deu à armada do turco, nos levaram vantagem assim em velas com em gente, mas não em bondade nem razão, e em outras que não conto, pelo tempo ser breve. A todos peço muito por mercê olhem a fé nossa de Deus e de el-Rei, por quem nos pomos ao sacrifício das honradas batalhas, e a pouca razão que o inimigo traz, e que sempre foram chorando de nossas mãos.
Agora, que tanta necessidade temos, olhe cada um por si, que no caminho não há taverna onde pousar, e que não é mais homem que outro o que não faz mais que outro. Já a este tempo era hora de armas e cada qual arremetendo ao que pôde haver à mão, se determinou a comer e beber o que mais aparelhado achou. E tal houve que a galinha crua, que o seu moço acabara então de espetar para a assar, lha tirou do espeto e a partiu por outros e por si, e assim a comeram, comendo e armando-se. E, sendo armados, tinham acabado juntamente de comer, e encomendando-se a Deus, e agradecendo a D. Lopo a mercê que lhes fizera em lhes trazer à memória àquela hora suas pouquidades, antes que os heróicos feitos que deles sabia, prometeram todos de fazer todo o possível, com ajuda do Senhor Deus e do Apóstolo Santiago e da bemaventurada Santa Ana, em cujo dia se lhes oferecia tão perigosa empresa, e de fazer pinhatas e panelas dos franceses. Dando então o sinal da peleja do dito galeão S. Mateus, onde D. Lopo estava com estes valorosos soldados, o começaram a cercar e investir, como tenho dito, os dois galeões, capitaina e almiranta francesa, de quem se defendeu valorosamente, havendo carregado sobre ele outras duas naus que, depois de lhe haver atirado alguns tiros e dado surriada de arcabuzaria, passaram adiante. Ao mesmo tempo, foram sobre o galeão S. Martinho, capitaina, outras duas naus francesas e, começando a combater com ele, se lhes deram tais duas surriadas com artilharia e arcabuzaria, que uma delas ficou maltratada, quase para se ir ao fundo; e assim se retiraram, havendo tirado a capitaina muita artilharia e arcabuzaria, e dando-lhe alguns tiros, recebendo também eles outra rociada de tiros e arcabuzadas da nau de D. Francisco de Bovadilha, que estava perto da capitaina. Pelejavam, todavia, a este tempo, a capitaina e a almiranta de França com o galeão S. Mateus, defendendo-se e ofendendo o mestre de campo geral D. Lopo de Figueiroa, com o vedor geral D. Pedro de Tharsis e os mais fidalgos e cavaleiros e a infantaria que trazia, valorosamente atirando aos imigos muitos tiros, arcabuzaria e mosquetaria.
Era temerosa cousa de ver acometer esta batalha, disparando primeiro a artilharia grossa, posta em seu lugar a gente, cheias de tiros as gáveas, estendidas as bandeiras, os galhardetes e flâmalas, ressonando os bélicos estromentos, soando os clarins e trombetas, e reverberando as luzidas, brancas e douradas armas, envoltas nas águas, e tudo revolto, aparecendo as diversas cores das curiosas librés e penachos, disparando as colubrinas e bombardas, esferas, meias esferas, passamuros e pedreiros, basaliscos , peças grossas e tiros de campo, com tanto estrondo que a máquina do céu de riba desencasada parecia vir-se abaixo, como trocando os elementos seus próprios lugares, lidando contra si fogo, ar e água juntamente, e arder tudo em pura chama, e por entre o fumo e fogo as naus já abalroadas, feito seu efeito a pólvora, vir às espadas a fúria francesa e a cólera de Hespanha, travando-se a batalha sanguentada, crua, furiosa, e de ambas as partes porfiada, com estranhos golpes e feridas desaforadas, chovendo das altas gáveas alcanzias, balas, lanças, dardos, armas de peso arremessadas, ardente pês e resina, bombas alcatroadas e fogos artificiais, que o mesmo mar abrasavam; as águas todas cobertas de sangue, de gente e armas, tanto arnês despedaçado e rota tanta celada, tanta voz, tantos gritos e gemidos de tantos feridos, uns meios vivos, outros que no mesmo tempo expiravam. Mas, por fim, a fortuna de Filipe atropelou a de França, como irei dizendo.
Vendo o marquês que toda a armada de França tinha a de Hespanha pelas popas, e o aperto em que se achava o galeão S. Mateus com as duas francesas, fez virar sua capitaina na volta dos imigos, e o mesmo fizeram D. Cristóvão de Erasso e as mais naus da armada. E, acertando achar-se mais atrás a de Miguel de Oquendo, Vila Viçosa, e outra guipuscoana, foram então as mais dianteiras e chegaram mais prestes que outros a investir a almiranta francesa, que pelejava com o galeão S. Mateus. Depois chegou a nau de Miguel de Veneza, que combateu com a capitaina de França, como bom capitão, fazendo o mesmo os soldados que iam com ele. O estar esta nau em meio foi causa que por então o marquês não pôde abordar a capitaina francesa, e assim passou adiante.
Neste tempo, pelejavam com a nau almiranta as três que a tinham investido, estando pelejando com S. Mateus, donde todavia lhe tiravam muitos tiros e arcabuzadas. Era uma de Vila Viçosa, que a tinha investido por proa, onde pelejando com muito ânimo foi morto o dito capitão Vila Viçosa, com outros muitos mortos e feridos que houve em sua nau, como adiante se dirá. A de Oquendo a tinha investida por popa e havia deitado gente nela, começando-a a saquear e tomado quatro pessoas e as bandeiras. A batalha, andando já travada entre as mais naus hespanholas e imigas, foram logo outras duas francesas a socorrer a sua capitaina e, metendo-lhe dentro mais de trezentos homens de refresco, se desviou a de S. Mateus e nau de Miguel de Veneza. Neste tempo, já o marquês tinha dado outra volta sobre os contrários, tirando-lhes muitos tiros, e, proa com proa da capitaina imiga, se investiram e abalroaram capitaina com capitaina. Combateu-se valorosamente de ambas as partes, tirando-se uma à outra grandíssimos tiros, arcabuzaria, mosquetaria e pedradas, por espaço de uma hora, que se tardou em rendê-la; onde se degolaram passados de trezentos franceses, e os cavaleiros, fidalgos e soldados que estavam em suas alcáçovas se assinalaram valorosamente. E o mesmo fizeram os capitães Agostinho de Ferreira e Gamboa, e seus alferes.
O marquês, como geral, andava nas alcáçovas, animando a gente e fazendo dar as cargas aos inimigos, provendo e ordenando o que mais convinha que se fizesse. A artilharia das cobertas alta e baixa fazia muito efeito com a boa diligência dos capitães, a cujo cargo estavam. Marolim e Rodrigo de Vargas andavam com muito ânimo ajudando a umas partes e a outras. E os da gáveas faziam o que lhes tocava. A batalha das outras naus se prosseguia, dando e recebendo grandes cargas umas a outras, e a de D. Cristóvão de Erasso tirava muita artilharia.
Pelejaram assim mesmo mui bem, as naus onde se acharam os capitães D. Miguel de Córdova, Cristóvão da Paz, Pero de Santo Estêvão, Diogo Colona, D. João de Biveiros e Cássio de Hierpa, Diogo Soares de Salazar e João de Bolanhos, tenente de geral da artilharia.
Durou a batalha cinco horas, no fim das quais fugiram os franceses mui desbaratados.
D. António se tinha ido com um patacho e outra nau, a noite antes da batalha, para mandar prover de refresco e de outros mantimentos e munições a sua armada, de lá, da ilha Terceira, para onde foi. Meteram-se no fundo algumas naus francesas e outras ficaram desamparadas, havendo-lhe degolado dentro toda a gente, e indo-se alguns fugindo a outros navios. E, por as naus hespanholas não poderem dar cabo, nem embaraçar-se com elas, mandou o marquês que se queimassem e desfundassem as que pudessem, como se começou a fazer. Cobrou-se a caravela que tinham os imigos tomada, com os cavalos. Faz-se conta que na capitaina francesa se degolaram quatrocentos homens, porque os que ela trazia e os que lhe entraram de socorro, se entende que passaram de setecentos os que pelejaram nela. Na almiranta se sabe que morreram mais de duzentos homens, e de uma das naus que se foram ao fundo, se afogaram trezentos soldados sem escapar mais que seu capitão. Das mais naus se degolaram muitos, especialmente de uma que renderam duas naus das de Guipuscoa, que, porque a uma lhe haviam morto alguns vasconçados, os degolaram eles a todos. E segundo esta conta parece que dos imigos morreriam nesta batalha até mil e duzentos, sem os feridos que foram muitos, afora os que o iriam nas naus que fugiram. Cobraram-se muitas mais naus imigas, se as nossas tiveram mais espaço e marinheiros para lhes poder dar cabo, mas com isto as deixaram ir sem gente e desamparadas. E assim se viu que a almiranta se deixou meia alagada, e outras quatro ou cinco se foram ao fundo defronte desta ilha de S. Miguel, da parte do sul, e o mesmo se tem por certo, que se afundariam outras, em outras partes.
Alguns portugueses pelejaram valorosamente nesta batalha naval contra os franceses no galeão S. Mateus, como foi Diogo Vaz Rodovalho, da ilha Terceira, que tinha vindo dantes em uma armada, por capitão de uma nau, e Francisco de Vila Lobos, que foi mui queimado das alcanzias do fogo. E um fidalgo português chamado Fradique Carneiro, licenciado em artes e teólogo, primo com irmão do conde de Mira, foi o primeiro que saltou na capitaina dos franceses, que estava aferrada com o galeão S. Mateus, e, entrando após ele outros poucos soldados, todos se tornaram a recolher, porque vinha novo socorro à capitaina francesa, e o galeão estava aferrado de quatro. Também, por mandar D. Lopo, com pena de morte, que ninguém entrasse na nau dos imigos, por estar muita gente ferida, e arrecear, andando os soldados ocupados na presa e saco dela, chegassem as outras naus dos contrairos dando sobre eles.
Era tão brava a peleja que chegavam os franceses às portinholas do galeão S. Mateus, e em os nossos tirando um tiro, lhe metiam os franceses pela boca um pelouro, para que tornando os hespanhóis a carregar ficasse a pólvora em vão e não tomasse fogo, até que os nossos caíram na trama, e pelas mesmas portinholas lançavam muitas panelas e alcanzias de pólvora, com que punham ao galeão em grande risco. E uma vez, lançando uma grande panela de pólvora, correndo grande perigo o galeão, um marinheiro português se abraçou com o fogo e o abafou e apagou, e ali deu a vida pela vida de muitos. O capitão tomou seu nome e de sua pátria, mulher e filhos, para serem providos de Sua Majestade.
Como tenho dito, o dia de Santa Ana amanhecendo a armada de França a balravento da nossa, se cumpriu o desejo de ambas e cometeram os franceses com grande fúria e terror.
Tinha ordenado D. Lopo de Figueiroa, mestre de campo geral, que todos os coceletes de seu terço tomassem arcabuzes, considerando o que poderia suceder, e foi de tanta importância que foi grande parte para a nossa vitória, porque se pode dizer que fez de cada soldado dois, pois com o arcabuz ofendia, e com o cocelete e piques, que junto de si tinha, defendia. Iam na dianteira da armada francesa a sua capitaina e almiranta que com grande grita e som de trombetas aferraram o galeão S. Mateus e lhe deram tamanha carga de artilharia, mosquetaria, arcabuzaria e bombas de fogo, que parecia que o metiam no fundo. Mas D. Lopo tinha mandado que toda a sua arcabuzaria estivesse baixa a receber a primeira carga, sabendo que os franceses costumavam dar esta primeira fúria mui furiosa; e, recebendo-a com pouco dano, mandou à sua que lhe tornasse com o retorno. Estavam os franceses carregando seus arcabuzes, descobertos, e com tanta fúria e presteza jogou nossa artilharia e arcabuzaria, que a maior parte que sobre a coberta estavam morreram, e aos de baixo atemorizaram.
E assim das onze horas escontra o meio dia, se começou esta espantosa e cruel batalha naval, que foi uma das mais notáveis e insignes que houve neste mar, onde havia todo género de armas, artilharia, mosquetaria, arcabuzaria, piques, alabardas, chuças, dardos, coceletes, celadas, rodelas, espadas, adagas, pedras, fachas, lanças de fogo e bombas de fogo.
Neste tempo, tinha aferrado parte da sua armada com a nossa e de ambas as partes pelejava valorosamente cada um pela glória de seu Rei, sem se poder conhecer vantagem. Já a capitaina do marquês tinha tirado muitos tiros e, buscando a capitaina francesa por entre as duas armadas, ia sem que nenhuma nau imiga a ousasse esperar. Permitiu Deus que nenhuma cousa das que os imigos ordenaram se fizesse, e assim como a capitaina errou, assim todas desatinaram no aferrar.
Esteve o galeão S. Mateus aferrado de cinco naus poderosas em que entrava a capitaina e a almiranta, e pelejaram por espaço de quatro ou cinco horas, matando-lhe muita gente aos franceses, que nunca em todo este tempo ousaram entrar no galeão, porque aí tinham os nossos mais certa a vitória. Mas, era tal a bataria, que os mosquetes dos franceses passavam o tabuado e obras mortas do galeão e matavam alguma gente, e com a artilharia lhe mataram muitos bombardeiros, e foi roto o galeão, por só um costado em muitas partes, pela força da artilharia francesa. Sendo morta muita gente na capitaina, veio sobre ela o galeão S. Martinho.
Neste comenos, de uma nau de socorro recolheu a capitaina francesa trezentos soldados de refresco com que ficou reforçada e se meteu a pelejar capitaina com capitaina, entre as quais houve cruel batalha com muitas mortes de franceses, até que foi entrada dos nossos e tomada e saqueada, e só nela se acharam cem corpos mortos, de armas douradas. Neste encontro, mais que em todos os outros, se assinalou o marquês de Santa Cruz, que todos governava, com grande ânimo e acordo, e um D. Pedro de Toledo, digno de eterna glória, por se arriscar onde via faltar algum, animando a todos.
Era espanto ver a bataria de S. Mateus como se fora uma fortaleza, porque a almiranta francesa o tinha aferrado, na qual ia o conde de Brissac, acompanhado com trezentos valentes soldados e sessenta fidalgos, com peitos e fortes rodelas, juramentados de entrar no dito galeão ou morrer na contenda. Mas, S. Mateus ficou com milagrosa vitória de todos os imigos, que o tinham cercado e aferrado como lebréus a um touro. Basta que durou tanto a briga que veio a não ter mais que um barril de pólvora, e duas horas foi combatido antes de ser socorrido. Estava tão coberto de fumo que quase nenhuma cousa dele parecia e quando se mostrava descoberto parecia arder em vivo fogo e, matando um, outra maior chama se acendia, com que o ar estava ora abrasado, ora escuro, e o mar tinto de roxo, sangue de muitos mortos e feridos, e juncado de corpos, braços, pernas e outros membros que os tiros dividiam. E quase ambas as armadas se encobriram com o muito fumo das bombardas e arcabuzaria, ouvindo-se somente um horrendo e temeroso clamor. E, quando o vento às vezes descobria o lustro das armas, era pior para quem as tinha vestidas, pois faziam nele pontaria.
Neste recontro, se assinalaram muitos soldados hespanhóis, afora os que tenho dito, e alguns portugueses que direi adiante. Os hespanhóis e biscainhos que mais se assinalaram nesta batalha foram D. Pedro de Tarsis, vedor geral da armada, e o capitão Rosado com sua gente. D. Hugo de Moncada, que também foi vitorioso em Frandes e outras partes, D. Félix de Aragão, D. Godofre Bargadil, D. Afonso Pacheco, D. Francisco Bovadilha, que vinha na urca chamada S. Pedro, a qual, no segundo encontro foi investida de uma nau francesa bem artilhada, e matando-lhe os hespanhóis da urca muita gente, brevemente procurou de escapar de tal perigo e, vendo-a apartar outras duas naus francesas, que a iam também investir, deram volta sem acometer, pelo temor que cobraram. Estas foram as primeiras naus dos imigos que naquele dia se retiraram da batalha. Na mesma urca vinha Sancho Solis, capitão da Liga, mui nomeado, que pelejou nela com sua infantaria, e um seu irmão a quem na peleja com um mosquete atravessaram um braço. Na nau biscainha, chamada Maria, o capitão Vila Viçosa, tão esforçado que ousou amainar no meio dos imigos onde o aferraram com grande fúria três naus de muito maior porte e mais alterosas, com que foi sua nau entrada três vezes dos franceses, e fazendo os biscainhos grande estrago neles, todos foram mortos, mas morreu ele pelejando valorosamente; e de noventa soldados hespanhóis só ficaram sete vivos, onde também se sinalou, pelejando, o famoso capitão Luís Guevara, e por fim se retiraram todas as três naus francesas, ficando a nau biscainha vitoriosa.
A Dom Miguel de Erasso investiram e cercaram tantos imigos, que vendendo ele e os seus, pelejando, bem suas vidas, ali feneceram. A capitaina de Biscaia onde ia João Chacon e Álvaro Barragam, capitães de infantaria, socorrendo a D. Lopo, e aferrando-se com a almiranta francesa a bateram tanto com a artilharia e arcabuzaria, que quase lhe mataram toda a gente que trazia, ajudados da nau biscainha, chamada Boaventura, cujo capitão era Filipe Seirão, que aferrou também a almiranta, pelejando com ela três quartos de hora. Neste tempo soltaram as amarras, tendo já S. Mateus metido uma nau no fundo e queimado outra. Os que ficaram na almiranta pelejaram valorosamente. A biscainha e a capitaina de Biscaia lhe lançou soldados dentro, que mataram a gente e a saquearam, tomando-lhe suas bandeiras, e foram delas senhores uma hora, e por estar a nau maltratada se recolheram e retiraram; e alguns imigos que escaparam debaixo da coberta a marearam e fugiram, mas depois se foi ao fundo por ir mui rota e desbaratada.
Sinalaram-se também o capitão Pero Pardo, que furiosamente foi socorrer a nau de Miguel de Oquendo, e os capitães Cassio de Hiera e Miguel de Meza, que com grande pressa acudiram a D. Lopo, aferrando-se com a capitaina francesa. E os feroces capitães D. Miguel de Córdova e Cristóvão da Paz, que se atravessaram e detiveram o passo a uma nau francesa que ia dar socorro aos seus, e matando-lhe todos os que iam dentro, em espaço de meia hora que com ela pelejaram, se saíram trazendo a nau inimiga diante de si, e fazendo-a queimar para maior honra sua; e D. Cristóvão de Erasso, o qual acometendo com a proa posta aos imigos, não pôde chegar a eles, mas de longe andava aos bordos, disparando neles espantosa artilharia, com que lhe fez grande dano; e D. Pedro Mendonça e Lázaro de Isla, que na nau Misericórdia, socorrendo a D. Lopo, se aferraram com a capitaina onde estava Filipe Strosse, até que vindo sobre ela o marquês, se retirou, dando lugar ao major; e os dois capitães Luís Vilharte e Pero Mendiola, que na dita nau iam e pelejaram bravamente; e três capitães, D. João Chacon, Lopo de Salazar, e Maldonado, que na nau Abestruz mostraram seu grande valor contra os imigos; e o capitão Diogo Soares que na nau biscainha, chamada Santa Maria da Penha de França, com sua furiosa espada fez grandes estragos nos contrairos; afora outros capitães que fizeram cousas memoráveis, a que não soube os nomes, e outros que não pelejaram por não poderem chegar com o vento contrairo, que os franceses tinham em popa; e sobre todos o marquês de Santa Cruz, que como touro irado no corro, revolvendo-se a um e outro lado, à parte que faz arremetida o povo turbado vai fugindo, ficando só o touro na erma e rasa praça.
Era tanta a fúria e bataria, que parecia fundir-se a terra, abrir-se o céu, romper-se o ar, mudar-se o mar e embravecerem-se as ondas, que então estavam quietas, andando os homens nelas embravecidos, feitos ondas furiosas; até as enxárcias parecia que davam gritos, lamentando tantos destroços e mortes, derribadas com os golpes dos pelouros; as velas inchadas se rasgavam, as obras mortas se quebravam e umas se ajuntavam tanto com outras, que se faziam pedaços que para o céu voavam. Ver a pressa dos soldados, assestando a todas as partes as peças de artilharia e arcabuzes, ora por um, ora por outro costado, ora indo pelejando de popa à proa, ora de proa para a popa, uns tirando fogo, outros apagando-o, usando cada um de suas armas e às vezes das alheias, aventurando as vidas próprias por se assinalar nesta empresa, era enfim tudo um fim presente e uma triste e escura sombra de morte.
Quando as duas naus francesas deitaram de socorro na sua capitaina os trezentos soldados que tenho dito, com que se desaferrou do galeão S. Mateus, vendo o marquês que procurava escapar e sair-se dos nossos, se foi chegando, jogando muitas peças de furiosa artilharia, até que se aferrou ali com a dita capitaina, não reservando sua pessoa, mas assinalando-se, pelejando varonilmente do castelo de popa, acompanhado e ajudado de valentíssimos fidalgos e cavaleiros, sem nenhuma covardia, onde andava D. António de Toledo, mostrando o valor de sua pessoa, e D. António Pessoa, que em serviço de Sua Majestade se tinha achado em perigosas empresas, usando sempre o exercício da milícia e armas belicosas; e D. Diogo Henriques que, dando socorro a Malta, foi de cossairos cercado e cativo, o qual não escaramentado de tal perigo passado, se punha e arriscava então em outro, fortemente pelejando. Aqui e em outros recontros pelejaram também valorosamente alguns portugueses aventureiros, como foram Gaspar de Sousa de Moura, filho de Álvaro de Sousa e sobrinho de D. Cristóvão de Moura, o qual pelejou esforçadamente no castelo de proa; Fradique Carneiro, neto do secretairo velho, esteve dentro da nau dos imigos e tornou-se a retirar por lho mandarem; Gonçalo Ribeiro, natural de Guimarães, Diogo Vaz Rodovalho, natural da ilha Terceira, ao qual mandou D. Lopo estivesse sempre com ele, e procedeu tão bem, ele e os demais, que ao Diogo Vaz fez el-Rei mercê de uma comenda grande, e a Gaspar de Sousa de outra e ao Fradique Carneiro doutra. Também se assinalou D. António Manuel, irmão do conde da Atalaia e neto do conde da Castanheira, a que Sua Majestade fez muito gasalhado, quando lhe foi beijar a mão, por ser tão mancebo e se embarcar em uma empresa tão honrosa, e lhe deu um grande despacho para a Índia, onde agora está. Sinalou-se também Francisco de Vila Lobos, natural de Ceita , ao qual D. Lopo entregou a artilharia em uma estância, para que pelejasse com ela, onde, estando em uma portinhola do galeão S. Mateus, apegado de uma arma dos imigos, que em outra portinhola do galeão contrairo estavam, lhe mataram a seu lado um sacerdote português com um pelouro de escopeta, e, afora os mortos, este Francisco de Vila Lobos, só dos cavaleiros portugueses , foi ferido e muito queimado, pelo que el-Rei lhe fez mercês.
Sinalaram-se também dos portugueses D. Diogo de Castro e João Gomes da Silva, esforçados cavaleiros, e Manuel Correia, que agora é sargento-mor nesta ilha, a quem foi encomendada outra estância de artilharia. Deste galeão S. Mateus eram mestre e piloto portugueses. Ao piloto, chamado Sebastião Gomes, natural de Lisboa, fez el-Rei mercê do hábito de Santiago, com outras mercês muitas, e ao mestre, por nome António Gonçalves, natural de Viana fez Sua Majestade muitas mercês; afora outros muitos portugueses dignos de memória, a que não soube os nomes.
Sinalou-se também o marquês de Favara, Agostinho de Ferreira, e outro fidalgo, cujo sobrenome é Gamboa, e o capitão Marolim e o capitão Bovadilha, que acudiu a estorvar que não chegassem à capitaina francesa duas naus que lhe vinham de socorro, fazendo-as arredar, com muita gente morta; e o capitão D. João de Biveiros que com grande ardil intentou de abater o estandarte real da capitaina inimiga, da gávea mais alta, mandando subir um biscainho de estranho atrevimento e ousadia pelas enxárcias, o qual atirando-lhe o bando francês com um mosquete e levando-lhe o pelouro um braço, com o outro que lhe ficou saiu vitorioso com a empresa e estandarte na mão, entregando-o ao dito D. João de Biveiros, que o levou arrastando pelo mar, o que deu princípio à vitória, porque vendo-o levar daquela maneira não ousaram as outras velas francesas socorrê-la e se tiveram por perdidos, desbaratados e vencidos, pondo-se todos em fugida.
Tendo o marquês rendida a capitaina, foram os hespanhóis entrando nela, matando e saqueando, tocando pífaros e tambores, soando trombetas e tangendo charamelas, com grandes gritos de alegria, apelidando a vitória de seu bando, mas com crescidos clamores e tristes choros dos franceses, muitos dos quais tomaram e prenderam dentro na sua mesma capitaina, onde topando um soldado hespanhol a Filipe Strosse, por se não querer render de ambicioso, lhe deu uma mortal ferida. Também foi preso o conde de Vimioso, ferido de uma estocada e lançada, os quais, depois que se deram à prisão, foram levados ao galeão S.
Martinho, nossa capitaina, onde logo morreu Filipe Strosse, mas o conde nunca descobriu seu nome, sem o conhecerem ali até descobrirem quem era, com que o marquês se alegrou muito e o recebeu com brandas e doces palavras, por ser seu parente, e perguntando-lhe em que navio vinha D. António , lhe respondeu que um dia antes da batalha se fora para a Terceira, donde não visse matar aos seus, como entendia, deixando ordem a Filipe Strosse que aferrasse e não perdoasse. Perguntando-lhe mais porque dilataram dar a batalha, tendo tanta armada e gente junta e tão próspero vento, respondeu ser a causa porque Filipe Strosse, tendo a vitória por certa, pretendeu render a nossa armada a algum partido, o qual era que lhe pagassem o que tinha gastado, sendo D. António de contrairo parecer, e querendo que se tomasse a nossa armada e com ambas juntas fossem logo tomar as naus das Índias, do oriente e ponente, que não podiam tardar muito, onde tomariam tanto ouro que abastasse para pagar o que tinha gastado, ainda que fosse três e mais vezes tanto; com a qual resposta se determinou Filipe Strosse a dar batalha, como deu. Dizem também que descobriu segredos mui importantes a el-Rei Filipe e a estes Reinos de Portugal, e a cabo de dois dias faleceu o dito conde, arrependido, com muitos sinais de bom cristão.
Depois de morto o conde, se soube por cousa certa que viera D. António a guarnecer a ilha Terceira e a deixar esta de S. Miguel sujeita e reduzida a seu serviço, com a ilha da Madeira, por ser tão rica, porque nela e nestas dos Açores pretendia ajuntar um milhão de ouro, com que defenderia seu partido. E, juntas as armadas das Índias com estas duas, faria liga com França, Inglaterra e Flandres, para dar guerra a el-Rei Filipe, a qual dizem ter concertada entre a Rainha mãe em grande segredo, para se pôr em efeito, acabando de fazer esta jornada e, tendo congregada esta gente, tomar o Reino de Portugal, se pudesse.
Finalmente, depois de nossa armada pelejar cinco horas tão valorosamente, como era necessário e os imigos o requeriam, por vir na sua armada quase a frol de toda França, houve Deus, Nosso Senhor, por bem dar vitória à nossa armada, tocando a capitaina do marquês uma trombeta em sinal dela, e houve grande destroço e mortandade na armada francesa.
Dizem que fugiu o conde de Brissac em um pequeno barco, e os imigos fugiram mui desbaratados e desatinados, sem saber por que parte os seguiriam e lhe iriam no alcance, deixando perdidas catorze naus, e presos trezentos franceses, em que entravam muitos monsiores e nobres de França, e três mil mortos, afora muitos feridos. Foi esta batalha e vitória cinco léguas desta ilha de S. Miguel, para a banda do meio dia. Dos nossos, foram mortos trezentos e feridos quinhentos, ainda que outros dizem menos mortos e mais feridos, como logo direi. Nisto se pode ver quão brava foi a batalha e quão milagrosa a vitória, que os nossos feridos, que se vieram curar a terra, eram muito para ver e muito mais para magoar, porque traziam pernas e braços cércios fora, outros queimados e como esfolados, outros passados com duas e três arcabuzadas, os quais se curaram no hospital e Casa da Misericórdia de Vila Franca e no hospital e Casa da Misericórdia da cidade da Ponta Delgada, onde então era provedor o ilustre bispo D. Pedro de Castilho que os fez curar com muita diligência e entranhas de caridade; donde se pode coligir quais iriam os imigos que escaparam.
Seguiu-os o marquês na capitaina até que sarrou a noite, em que mandou pôr dois faróis nas gáveas em sinal de vitória.

Depois de passada esta peleja e vitória, não tardou muito que chegaram a esta ilha de S.
Miguel quatro naus armadas de Guipuscoa com quatro companhias de soldados lhespanhóis, cujo cabo era D. Lourenço Cenoguera, que sua Majestade mandava para defenderem a terra em companhia de Pero Peixoto, as quais se vieram antes da dita batalha, sem falta fora o monsior de Landroi destruído com toda sua armada. Chegado D. Lourenço, consertou-se com Pero Peixoto que um defendesse o mar e outro a terra. E assim ficou Pero Peixoto na armada e D. Lourenço na fortaleza, debaixo da ordem do geral e governador Ambrósio de Aguiar Coutinho, que daí a poucos dias faleceu de sua enfermidade aos cinco de Julho de mil quinhentos e oitenta e dois anos entre as sete e oito horas depois do meio-dia, e logo ao outro dia foi sepultado com muito aparato e cleresia e gente de armas com elas às avessas, como é costume enterrar os Capitães, na capela mor do mosteiro de S. Francisco, da cidade da Ponta Delgada, em um ataúde, para depois poderem levar seus ossos ao Regno; o qual governou esta ilha um ano e pouco mais de um mês, porque chegou aqui no mês de Maio de oitenta e um e faleceu a cinco de Julho de oitenta e dois. Ficaram nesta ilha um seu enteado Martim Afonso de Melo, e dois filhos, o morgado, chamado como seu avô Pedro Afonso de Aguiar, e outro de pouca idade, por nome Rui Dias de Aguiar, que depois o dito Martim Afonso de Melo levou ou mandou para o Regno com os ossos de seu pai, que era homem grave, discreto, grande de corpo, gentil homem e tão colérico que se fazia temer.
Por falecimento do dito Ambrósio de Aguiar Coutinho ficava por governador o Capitão Alexandre, ou um de outros dois que Sua Majestade em uma sua patente nomeava. Mas, juntos os oficiais das câmaras de toda a ilha na cidade da Ponta Delgada, com o bispo D. Pedro de Castilho e o geral Pero Peixoto, e outros capitães e gente nobre, se determinou que fosse capitão geral e governador Martim Afonso de Melo, filho de Jorge de Melo Coutinho e de D. Joana da Silva, por não parecer que a gente desta ilha o enjeitava, por seu padrasto Ambrósio de Aguiar lhe não estar tão aceito em sua vida a todos eles e também por ele o merecer por sua pessoa e condição, que tinha muito mais macia que seu padrasto. O pai deste governador Martim Afonso de Melo, chamado Jorge de Melo Coutinho, foi camareiro mor do Infante D. Duarte, irmão de el-Rei D. João, terceiro do nome. E seu avô, do dito Martim Afonso de Melo, era muito privado de el-Rei D. Manuel, e foi à China por capitão mor de uma armada.
E procedem direitamente da casa do conde de Marialva. O qual governador Martim Afonso de Melo teve o governo desta ilha de S. Miguel, de então até à vinda de D. Rui Gonçalves da Câmara, conde de Vila Franca do Campo e sétimo Capitão da mesma ilha, terceiro do nome, pelo que continuarei com ele até à vinda do dito Conde.
Sendo assim capitão geral e governador Martim Afonso de Melo, assistindo na fortaleza ele e o capitão D. Lourenço Cenoguera, apareceu aos catorze e aos quinze de Julho de mil e quinhentos e oitenta e dois anos, domingo do Anjo, pela banda do sul, D. António com uma grossa armada de sessenta velas, entre grandes e pequenas, em que vinham oito mil soldados bem luzidos e armados, e por geral dela o capitão Filipe Strosse, filho de Pero Strosse, que foi geral do campo de el-Rei de França, e seu marichal , e o conde de Vimioso, Condestable de Dom António e geral do mar, e outros muitos senhores e fidalgos franceses e portugueses, e alguns frades e letrados. Vendo Pero Peixoto que não lhe podia resistir , chegando as cinco velas de sua armada à fortaleza, lhe mandou dar furo e arrombá-las, para que os imigos se não pudessem aproveitar delas, ficando inteiras e quase despejadas as quatro naus biscainhas, que os franceses de noite levaram atoadas com os esquifes. E das cinco velas alagadas se tiraram depois quase todas as peças de artilharia, que nelas ficaram, e hoje estão na fortaleza e junto dela, onde se retirou e recolheu a gente da dita armada.
O bispo D. Pedro de Castilho e Martim Afonso de Melo, Pero Peixoto e o Capitão Alexandre, com todos os mais capitães, entrando em conselho do modo que teria para defensão da terra, acordaram pôr toda a gente em estâncias donde nenhum se movesse sem seu mandado, o que assim se fez, determinando todos no conselho que nisso tiveram, que pois a armada que ali estava se não podia defender da de D. António, abordassem os navios ao pé da fortaleza, e lhe tirassem a munição ficando neles alguns bombardeiros que atirassem alguns tiros para serem defendidos da fortaleza, e havendo pressa dessem com todos eles à costa, abrindo-lhe alguns buracos, por não fazer o imigo muito mais poderoso se tomasse o nosso galeão e navios, como está dito. Ao domingo pela manhã, que era dia do Anjo, já estava toda a gente em suas estâncias, por esta ordem: D. Lourenço, capitão de uma companhia de castelhanos, na ponta de Santa Clara; D. João de Castilho, junto da ermida do Corpo Santo; no cais, com muita gente da cidade e outra dos lugares de fora, o capitão João de Melo; no areal do Rosto de Cão estava também muita gente com seus capitães da cidade, e bombardas, por ser passo mais fácil para entrar a terra. E daí até a vila da Alagoa, estavam nos passos perigosos bandeiras da Ribeira Grande e da Alagoa, que seriam mais de mil e quinhentos homens. E o capitão mor corria as estâncias animando a todos. O mesmo fazia o bispo D. Pedro de Castilho, com muito calor. Pero Peixoto estava no areal de Rosto de Cão com os capitães e muita gente de guarnição do mar. Aparecendo ao domingo pela manhã, à ponta da Galé, a armada de D. António, mandou diante em um barcote um embaixador com bandeira branca e cartas para Pero Peixoto e outros, o qual Pero Peixoto avisou aos mais capitães que não dissessem estar ele ali. Desembarcando o embaixador junto da fortaleza, foi levado dentro, diante do capitão mor Martim Afonso de Melo e o bispo e corregedor e mais capitães, que lhe perguntaram que queria. Ele disse que trazia uma carta para Pero Peixoto e a ele havia primeiro de dar o recado e depois daria os que trazia para outros. E, dizendo-lhe que Pero Peixoto não estava ali, senão na armada, pelo que desse a carta para lha mandarem, nunca a quis dar, dizendo que se tornaria assim, já que não lhe queriam dar cópia dele, e protestando que, se se não rendessem, haviam de ser entrados; e respondendo-lhe que a terra se havia de defender, se tornou sem mais resposta. Sendo levado pelo meio da cidade para ver a muita gente de guarnição que nela havia, foi embarcar no cais, dizendo e mostrando ser nada a resistência que tinham os da terra, para poder defender a entrada aos do mar que eram muito mais. E a horas de meio-dia se tornou na sua armada.
Com o correr, voltar e acometer das naus a uma parte e a outra do areal de Rosto de Cão até à Alagoa, corriam também os soldados hespanhóis a diversas partes, e Martim Afonso, Pero Peixoto, e o bispo com eles, animando-os, fazendo pela costa e areais fazer trincheiras e covas na areia, que servissem de repairo aos soldados, porque nenhum repairo estava feito pelo governador passado, ainda que tinha recado de Sua Majestade que havia de vir sobre esta ilha aquela armada, o que foi causa de se cansar e desvelar muito a gente, acudindo a tantas partes por quantas eram cometidos, posto que fossem bem providos de mantimentos, pão, biscoito e vinho, que algumas pessoas da terra mandavam levar onde eles andavam. Contudo não sei se desembarcaram, se não foram os acenos que da terra lhe faziam para desembarcar em lugar de penedia não esperado, como ao dia seguinte, segunda-feira ao meio-dia, dezasseis de Julho, deitaram gente armada fora, tirando primeiro muita artilharia e pelouros contra a terra, com que mataram no areal de Rosto de Cão três ou quatro biscainhos e castelhanos, desembarcando entre a ponta Longa e o Calhau onde entesta a terra de Cristóvão Soares , em dez lanchas ou barcos grandes, a gente de um dos quais se afogou ali, sem nenhum escapar, tomando água pela popa com o peso das armas. Sete deles enxoraram em terra, onde ficaram e os desfez depois a gente da ilha, aproveitando-se de sua madeira. De dois que foram mais para loeste, saíram os soldados sem nenhum perigo, alargando-se logo ao mar, sem serem vistos os que desembarcaram dos da terra que estavam guardando o porto dos Carneiros, na vila da Alagoa, e passos em outras partes. Depois desta, saiu outra muita gente, que por todos seriam três mil homens. O primeiro que pôs o pé em terra foi um sobrinho de Filipe Strosse, que quis esta honra, e com ele o conde de Vimioso. Depois, ao dia seguinte, terça-feira, com D. António e Filipe Strosse e outros senhores, saíram dois mil soldados, como adiante direi. Ao tempo que os três mil desembarcaram, andavam as naus dos franceses tão juntas e espessas e seus navios pequenos, patachos e lanchas com espessos tiros, que matavam a alguns biscainhos que não podiam ver de terra, nem divisar quando deitaram a gente fora, nem se suspeitava que em tal lugar pudesse desembarcar, por ser muito perigoso.
Saídos os franceses em terra e ouvida esta nova por D. Lourenço que estava então em guarda do areal de Rosto de Cão, onde algumas naus acometiam, por ser lugar de mais fácil desembarcação, acudiu acorrendo lá com seus soldados e muita gente da terra, de pé e de cavalo. E vendo tanta gente, com que tinham já em terra seu esquadrão formado e fechado, e não ser lugar para dar batalha, disse: — bueltas las caras para el castillo. E assim se recolheram para a fortaleza. O governador Martim Afonso de Melo, que estava na vila da Alagoa, onde suspeitava que saíssem os franceses em terra, com o capitão dos Fenais, Diogo Lopes de Espinhosa, Bartolomeu Nogueira e outros capitães e nobres da terra, por não poderem já passar pelo caminho onde os imigos estavam, se foram pelo pico de João Ramos à cidade, indo primeiro Diogo Lopes dar recado a sua mulher e aos seus que se saíssem do lugar dos Fenais, suspeitando o que foi, porque os franceses depois de desembarcados, roubadas as vinhas e saqueada a vila da Alagoa, foram marchando com o conde do Vimioso caminho do dito lugar dos Fenais, onde houveram de matar o capitão Diogo Lopes e todos os seus, se já não estiveram postos em cobro. Assim foram por cima do lugar de Rabo de Peixe ter a casa de Adão Lopes, marido de Maria Moniz, onde roubaram muito fato que de diversas partes lá estava posto em guarda, cuidando tão longe estar seguro. E foram ter junto do Cascalho, ao pé de uma serra, onde aconteceu o que agora direi.
Porque em semelhantes revoltas e ocasiões nunca faltam tredores e treições, de Vila Franca do Campo houve algum que a fez entregar a D. António, sem quererem ajudar nem seguir ao Capitão Alexandre para defender a entrada e ir ajudar aos que estavam na vila da Alagoa, antes o quiseram prender se ele se não soubera acolher ao monte, nem os da vila da Água do Pau acudiram, havendo dois dias que D. Lourenço Cenoguera lhe tinha defendido a entrada, sem suspeita que seria tanta gente desembarcada. Houve outros tredores andaluzes, naturais de Sevilha, um dos quais, fazendo-se do número e companhia dos soldados da fortaleza, determinava pôr fogo à pólvora que nela estava, ou dá-la a D. António, o qual, por mandado de D. João foi dependurado por um pé de um pau lançado por cima fora da fortaleza, onde esteve assim três dias e morreu infamemente para exemplo e terror a outros semelhantes tredores. E outro mulato, ordenando um falso aviso e emboscada para que os nossos fossem tomados e mortos no meio, dizendo ser tão poucos os franceses que estavam ao pé da encumeada do Cascalho, que não passariam de quinhentos, amotinou o povo todo da cidade da Ponta Delgada, que murmurava de D. Lourenço, dizendo que era covarde, pois não ia cometer os franceses desembarcados. O qual tredor foi depois posto em um pau alto, onde às arcabuzadas o fizeram em pedaços, e sendo primeiro posto a tormento, confessou que, querendo-se embarcar e recolher na armada com D. António, quando sentiram vir a de Hespanha, o não consentiu, dizendo-lhe que em ficar na ilha lhe faria mais serviço, e tanto que depois o faria conde dela.
Vendo D. Lourenço Cenoguera o aviso do tredor, que cuidou ser fiel dos seus soldados, e a murmuração do povo inconsiderado, partiu da fortaleza em busca dos imigos com quatro companhias de infantaria, que seriam até quinhentos homens, e outra companhia, tirada das naus de Guipuscoa, de cento e cinquenta arcabuzeiros, com alguns capitães e gente da terra, onde ia Manuel Cordeiro de Sampaio, juiz do mar, e Diogo Lopes de Espinhosa, João de Arruda da Costa e Bento Dias, filho de Jorge Dias, feitor, e outros muitos que seria largo de contar. Marchando meia légua costa arriba, chegaram mui cansados e suados com o peso das armas e longo caminho ao cume da serra , ainda que D. Lourenço viu os imigos serem tantos e postos em muita ordem, com seus esquadrões formados, animando os seus e indo na dianteira, os foi cometer com grande ânimo, como fortíssimo guerreiro de claro sangue, onde se travou uma tão furiosa escaramuça que cuidaram os franceses ir ali muito mais número de gente da que viam, não podendo crer terem atrevimento tão poucos contra tantos; mas, vendo que não aparecia mais, mandaram uma manga de gente por detrás de um pico para tomar os nossos pelas costas, indo-se os mais retirando para melhor os colherem no meio. Os biscainhos e castelhanos tiraram quatro rociadas, com que fizeram nos franceses grande dano. O capitão D. Lourenço Cenoguera, que ia diante, se encontrou com outro capitão francês, chamado Roque Morea, pelejando meia hora ambos sem se apartarem um do outro, até que o francês caiu morto em terra. E saindo outro em seu lugar, por nome monsior Ferreira, deu uma grande ferida a D. Lourenço, de que logo caiu e, sendo alevantado pelos seus, sabendo da manga da gente que o ia cercando, mandou a grande pressa retirar os seus, e a pé, ferido, subiu até a encumeada da serra, o que dizem ser grande causa de sua morte. Chegando então a ele Pero Peixoto, fez com que tornassem para a cidade, indo D. Lourenço com três feridas, e outros soldados sem pernas e braços, e os mais marchando a grande pressa, por que os franceses que atravessavam os não acolhessem no meio do caminho. E, se não saíra D. Lourenço ferido, fora causa de se não recolher tão presto, com que ele e todos os seus ficaram mortos e perdidos naquela emboscada. E assim ficaram somente mortos, dos hespanhóis vinte e cinco, e dos franceses cinquenta, e com os que morreram em toda a ilha perto de duzentos. E se não mandara Deus a este tempo uma borriscada de chuva e vento, que encobriu uns e outros, nenhum hespanhol escapara com vida, porque já os franceses entendiam não haver mais gente que a que aparecia ao redor daquele pico do Cascalho e eles eram muitos. Chegando à cidade com tenção de a entrincheirar pelas bocas das principais ruas, vendo a gente desmaiar e fugir, se recolheram à fortaleza D. Lourenço com os seus biscainhos, o governador Martim Afonso de Melo, o bispo D. Pedro de Castilho, Pero Peixoto, o corregedor Cristóvão Soares de Albergaria, Diogo Lopes de Espinhosa e alguns nobres da terra. Mas, posto D. Lourenço com as mortais feridas em agonia da morte, deu ao outro dia a alma a Deus que a criou. E foi muito sentida de todos a morte de tão generoso fidalgo e valoroso capitão; por cujo falecimento se ajuntaram em conselho todas as principais pessoas que ali se acharam, sobre a quem se havia de dar aquele ofício, e por fim o entregaram a Pero Peixoto, o qual determinando de ir avisar a el-Rei como a terra era entrada dos franceses, se embarcou de noite com outros capitães, em um patacho, caminho de Lisboa, ficando em seu lugar D. João de Castilho.
Andando D. António com parte de sua armada junto da costa da vila da Alagoa, o foram ver algumas pessoas de Vila Franca com o vigairo dela, e lha entregaram, por não serem saqueados. E depois se lhe renderam outras vilas, como foi Água do Pau e Ribeira Grande, com o mesmo receio.
A terça-feira, dezassete de Julho, desembarcou o dito D. António e Filipe Strosse, geral de toda a armada, e outros senhores e fidalgos de França, com dois mil homens, e foi pousar nas casas de Jorge Nunes Botelho, no lugar de S. Roque, donde se passou depois para as de Amador da Costa. Dali começaram os franceses a saquear os arrabaldes da cidade, uns pelas vinhas, outras pela Calheta de Pero de Teve, e os que ficaram no Cascalho, levando consigo o capitão morto por mãos de D. Lourenço Cenoguera, foram descendo até o lugar dos Fenais, termo da cidade da banda do norte, em cuja igreja paroquial de Nossa Senhora da Luz o enterraram. E, saqueando o dito lugar, não somente acharam e tomaram nele a riqueza de seus moradores, mas também de muitos da cidade e de outras partes da ilha que lá mandaram levar, cuidando estar ali tudo muito mais seguro, pelo que se disse que iam buscar ao capitão Diogo Lopes de Espinhosa, que ali residia e morava, para defender as entradas que os da Terceira acometeram fazer naquele lugar os dias antes. Estava no dito lugar D. Jorge Pereira, irmão do conde da Feira, recolhido com sua mulher e filha e quanto tinha, que da cidade levara, cuidando estar ali seguro; e tudo lhe roubaram os franceses. E, não contentes com isto, o traziam com um carro para lhe acarretar o fato roubado. E sabendo ele que ali estava o conde, se foi a sua pousada terça-feira à noite, dizendo-lhe: — Senhor, se eu falando com Vossa Senhoria falo com o conde de Vimioso, lembro a V. S. que sou irmão do conde da Feira, e porque me pareceu que neste lugar escapasse com minha mulher e uma filha donzela que tenho aqui, caí nas mãos de vossos soldados que não me hão deixado cousa alguma, e além disto me querem trazer a acarretar fato com um carro e, porque não quis isto fazer, hão usado de rigor comigo, querendo pôr as mãos em mim, e outras cruezas e desaforos que, onde está pessoa tão ilustre e clara como Vossa Senhoria, não se esperam. A que o conde de Vimioso respondeu: — não sei que vos faça a isto; sem lhe fazer nenhum gasalhado, nem mandar tornar cousa alguma, ainda que era muito seu parente.
Depois de saqueado o povo dos Fenais, se foram os franceses saqueando e roubando as quintas e vinhas, pomares da Fajã que diante achavam e muita riqueza nelas escondida, até chegar onde D. António estava, sem ousar entrar na cidade, até que por suas espias souberam estar despejada de toda a gente. Com o qual tratou o conde de Vimioso de como a gente da cidade e da vila da Ribeira Grande e outros lugares, ricos e pobres, estavam quase todos emboscados e escondidos na serra, em lugares ásperos onde não podiam ser tomados, levando freiras e mulheres casadas e moças de má vida, pelo que devia mandar lançar pregão que todos os moradores da cidade e das outras vilas e lugares se reduzissem e tornassem a seus domicílios com suas mulheres e filhos, com todo o seu dinheiro e mais fato, sem nenhum receio de haver algum dado, porque tinha posto pena de morte a qualquer soldado de seu exército que tocasse em alguma cousa dos vizinhos de toda a ilha, pois já era o tempo do saquo acabado e ele não vinha senão a fazer-lhe mercês e morrer pelos libertar. E assim foi apregoado no seu arraial e em todos os lugares que na cidade possuíam, o que se cumpria somente onde o dito D. António estava; mas, nas outras partes, ditoso era o porco ou gado que não aparecia, e mais dita tinha o dono do dinheiro e fato que os soldados franceses não achavam. E, porque a igreja matriz do mártir S. Sebastião, da cidade da Ponta Delgada, ficara armada com muitos e ricos panos de armar, cartas de Frandes e outras cousas ricas, da festa que se tinha celebrado do Santíssimo Sacramento e do Anjo Custódio, os dias atrás, acordado disso o cura Gaspar Manuel, que então era, foi pedir a D. António que mandasse pôr guardas na dita igreja, para não ser saqueada nem roubada, o que ele mandou fazer. E depois, quando com muita pressa se embarcaram os franceses, ficou nela tudo mais seguro que o que tinham escondido pelos campos. Mandou também o dito D. António logo cartas e recados para o licenciado António Camelo, António de Brum, Marcos Lopes Henriques e outras pessoas ricas e poderosas, e para o licenciado frei António de Hlarcão, custódio, e para o guardião frei Pero Mestre, que com as freiras do mosteiro da Esperança estavam junto da serra das Sete Cidades, e para as religiosas de Santo André que estavam na cafua do licenciado António Camelo, o que foi divulgado a quinta-feira pela manhã em toda aquela serra de cima dos lugares de Santo António e Bretanha até sobre as Sete Cidades, onde também foram cartas do conde de Vimioso, com que muitas mulheres diziam a seus maridos que se tornassem aos povoados, pois não podiam andar pelas serras e traziam os pés correndo sangue, levando muito má vida de frio, calma, fome e sede, onde nalgumas partes não bebiam senão água encharcada. E algumas pejadas pariram e baptisaram seus filhos entre o mato. Mas, nenhuns dos homens honrados e discretos se quiseram tornar logo, senão alguns poucos que não tinham cabedal que perder, nem que comer no ermo, onde os poderosos se deixaram ficar até chegar o marquês de Santa Cruz, que por horas e momentos se esperava. Também alguns vigairos e beneficiados se foram de suas igrejas para lugares remotos, sem quererem tornar até os franceses serem embarcados, posto que D. António tinha mandado que todos assistissem em suas igrejas, e aos que o não fizessem e andassem absentados, lhas tiraria e daria a outros. Somente, como tenho dito, o vigairo de Vila Franca, por rogo dos vereadores, foi com eles dar-lhe a obediência ao mar onde andavam defronte da vila da Alagoa, a terça-feira antes dele desembarcar, depois do seu exército estar em terra, o que depois lhe foi dado em culpa, de que dali a muitos dias se livrou.
Neste tempo, havia por muitas partes da ilha muitos recados e feitores de D. António que, com grande pressa, faziam levar à cidade muitos carros carregados de trigo e pão e pipas para água e muito gado de toda sorte, pelo que alguns iam do mato para as vilas e lugares, outros tornavam para a serra e ainda não acabavam de estar seguros, por andarem alguns soldados franceses derramados pela ilha e matarem alguns portugueses; ficando também alguns deles prantados por ela, que, como tenho dito, entre eles e os que morreram no Cascalho, seriam até duzentos, afora outros que prenderam, principalmente na vila da Ribeira Grande e mandaram presos à fortaleza.
Estando D. António no lugar de S. Roque, mandou uma carta a D. João de Castilho, capitão da fortaleza, escrita sexta-feira, vinte de Julho, em que lhe dizia que lha entregasse, pois sabia que era sua e via seu grande poder, e que lhe daria passagem para ele e sua gente e perdoaria aos portugueses; e, não o fazendo, mandaria tirar em terra das naus sete peças de bater, com que a bateria, e lhe fazia a saber que não vinha armada de Hespanha aquele ano, e para mais certeza disso mandassem lá uma pessoa que se informasse de um Carrião, alferes, que partira de Lisboa a sete de Julho, e ele havia tomado, o qual afirmava que nenhum socorro mandava el-Rei aquele ano a esta ilha. Ao qual o dito D. João de Castilho, e o governador Martim Afonso de Melo, e o bispo D. Pedro de Castilho, e o corregedor Cristóvão Soares de Albergaria, que dentro na fortaleza estavam, responderam que aquela fortaleza era de el-Rei de Hespanha e não se lhe entregaria.
Antes dos franceses chegarem, a saquear a cidade, os biscainhos recolheram dela muito fato e mantimento para dentro da fortaleza. E fizeram trincheiras nas bocas das ruas que iam ter à dita fortaleza, donde davam muitas surriadas de mosquetaria e arcabuzaria, para que os franceses não chegassem. E assestaram na mesma fortaleza a artilharia, como convinha; com o que derribaram e queimaram muitas casas, que estavam ao redor dela, para melhor se defender do combate que lhe dessem, e estando todos mui determinados e apostados a morrer por seu Rei, e D. António a combater a fortaleza, tendo já feitas muitas trincheiras na praça e ruas da cidade, com pipas e caixas, cheias de pedra e terra.
Mandou também D. António ajuntar muitos sacos por toda a ilha, de que na Casa da Misericórdia da cidade da Ponta Delgada estavam já juntos mais de mil. E mandava ir à dita cidade todos os carreiros e carros que se pudessem achar pelas vilas e lugares
para carregar o pastel que na cidade estava granado, de muitos mercadores, para com ele pagar muito dinheiro que, para fazer aquela sua armada em França, lhe tinham emprestado.
Em Vila Franca do Campo, pôs D. António, como em cabeça, por governador de toda a ilha, a um Diogo Botelho, com tenção de ficar nela com este cargo, indo-se ele; o qual mandou que todos os homens de cavalo e alguns de pé fossem ter à dita Vila Franca o domingo seguinte, para se fazer alevantar e jurar por Rei, com as solenidades e cerimónias costumadas. Ao sábado d’antes, pela manhã, se viu que vinha a armada de el-Rei Filipe, aparecendo ao nordeste, e correram estas novas pela vila. Foi grande a alteração que todos traziam com os pregões que se davam, que acudisse cada um a seus capitães e estâncias, sob pena de morte.
E, antes de chegar esta nova, chegaram dois patachos com armas e cavalos, que vinham diante da armada , aos quais foram logo soldados por mandado do capitão António do Porto, que andava defronte da vila com treze naus armadas de que era capitão, em um dos quais vinha o alferes Carrião, que D. António escreveu aos da fortaleza que daria testemunho como não vinha armada de Filipe aquele ano; mas, sabendo D. António a certeza daquele alferes do grande poder com que a armada vinha, e tendo novas ao sábado à tarde como já chegava a dita armada, se embarcou aquela noite até o domingo pela manhã, vinte e dois de Julho, com todos os senhores e soldados franceses, embarcando também da Vila Franca o governador Diogo Botelho, deixando por seu logo-tenente a Lopo Anes Furtado com o qual indo depois ter a gente de cavalo, que era chamada, os tornou a enviar para suas casas.
E para elas se recolheram, não somente os de cavalo, mas também os de pé, que andavam pelos matos, depois souberam estar a terra despejada dos franceses já embarcados, sabendo da vinda da armada de el-Rei Filipe, com que ficaram desafrontados dos contrairos que na terra estavam, por ter segura a vitória contra eles.

Estando os negócios da Terceira um pouco em calma, sem de parte a parte haver cousa notável de que fazer menção, chegou-se o verão do ano seguinte de mil e quinhentos e oitenta e um, em o qual veio uma armada de sete naus grossas de Sua Majestade, de que era general D. Pedro de Valdez, e trazia por regimento vir na volta destas ilhas dos Açores e esperar os navios do Oriente, Índia, Guiné, Mina e de outras partes, para lhe dar favor e ajuda com mil homens que trazia em toda a dita armada, para defensão principalmente dela. E quando fosse tempo se havia de ajuntar com D. Lopo de Figueiroa, que já estava declarado para vir aquele ano com muito pouca gente sobre a Terceira, porque os enganou a fraqueza da ilha, cuidando que, a gente bisonha e pouco prática, bastaria pouca e boa para os render; de maneira que o dito D. Pedro Valdez, com a que trazia, muito lustrosa e valorosa, de soldados velhos e mui esforçados, como mostraram nesta ilha de S. Miguel, onde saíram em terra mui luzidos, se partiu daqui para a Terceira, praticando primeiro com o governador Ambrósio de Aguiar, para que, subjectando-se sempre a seu parecer, por aquela via se reduzisse a ilha Terceira ao serviço de Sua Majestade. E concluíram ambos que se mandasse uma pessoa religiosa, de autoridade, que lhe mostrasse a verdade, a qual pessoa o dito D. Pedro Valdez levaria em sua companhia e quando fosse tempo oportuno a deitaria em terra. E assim mais levaria seu sobrinho Martim Afonso de Melo, a quem delegaria seus poderes; e, sendo caso que sucedesse o fruto que disso se esperava, celebrar em nome de Sua Majestade os concertos e mercês que lhe parecesse que seriam necessários fazerem-se. Consultando assim, por lhes parecer que ninguém podia ser mais idóneo que o reverendo padre frei Pedro Mestre, que era guardião na cidade da Ponta Delgada, por muitas razões: — uma, por muitos anos ser guardião na Vila da Praia, onde mora a gente mais principal da dita ilha; outra, por haver sido comissário em todas estas ilhas, pregador e bom letrado e com outras muitas mais partes. O qual, sendo chamado do dito governador, acceptou aquele trabalho como bom filho do Seráfico S. Francisco. E logo se embarcou com Martim Afonso de Melo, em companhia de D. Pedro Valdez. E foram na volta de Angra, onde andaram vendo por alguns dias, ao redor da ilha, se dela lhes saía algum recado; o que era escusado imaginar, pois estavam então obstinados. Martim Afonso de Melo levava também por regimento que, fazendo pouco fruto, lhe daria embarcações o dito D. Pedro para avisar as naus da Índia, e dizendo-lhe um dia que as desse, respondeu-lhe que nem um marinheiro daria. Isto era por respeito de não querer o D. Pedro que houvesse ninguém que lhe ganhasse, nem por via de outrem se dessem avisos nenhuns, nem quis enviar a terra o padre frei Pedro Mestre, o que vendo o dito Martim Afonso de Melo, se embarcou para esta ilha, ele e o dito frei Pedro, e sucedeu-lhe bem, como direi adiante.
Vinha na companhia do dito D. Pedro Valdez um João ou Diogo de Valdez, seu primo, mui esforçado cavaleiro, por mestre de campo da gente de guerra, o qual, por ser amigo de empreender cousas árduas e repugnantes, para estender mais seu nome, ou por sua cobiça também, que dizem ter demasiada, disse a D. Pedro que pois tinham entre mãos a honra e proveito e tanto aparelho, porque esperavam dar isto a outrem, pois viriam os soldados do Reino e ganhariam tudo, ficando eles sem nada. Ajuntou-se a isto terem tomado o dia de antes um barco do Faial, em que vinha um homem que lhe fez a barra boa, donde lhe assegurou que saísse em terra, que aí não havia senão grandes servidores de el-Rei e que os que podiam pelejar eram quatro gatos. E, como havia de suceder, foi concluído que o dia seguinte, festa do Bemaventurado San Tiago, daquele ano, deitassem gente fora, e seria por esta ordem: que sairiam algumas peças de artilharia e a armada estivesse à mira para socorrer quando fosse necessário, e a ordem da gente, que em bom sítio fariam trincheiras; e, porque a armada não ficasse desamparada de gente, sairiam a metade somente, que foram quatrocentos homens.
Com esta determinação, como as lanchas prestes foram, desembarcaram e ganharam a terra que mal souberam conservar, que vale mais que adquirir. Chama-se ali a Casa da Salga, onde desembarcaram, e logo ganharam umas peças de artilharia que ali estavam. Começou-se a gente a desmandar e a queimar trigo e casas, soltando-se com demasias, as quais se não fizeram, e estiveram juntos, sem falta ganharam a terra. Entretanto acudiu a gente da ilha, e duas vezes os espanhóis os fizeram retirar, o que lhes tinha causado grande temor. Vindo socorro da Praia, trouxeram muito gado encobrado, apicaçado e mosqueado, com que vinham pulando as rezes, e com um frade em hábito de soldado, pregandolhe e animando-os de tal maneira que lhe fez alevantar seus fracos espíritos, e com o gado investiram e desbarataram todos. Dizem que o João ou Diogo de Valdez se pudera embarcar com toda a gente, e o não quis fazer, antes disse que quem se quisesse embarcar o fizesse, porque ele havia de morrer. Acompanhou-o a isto um Filipe Artal, fidalgo aragonês, de muita força, que, saindo com um montante nas mãos, disse que um bel morir toda a vida honrava, e assim o fez. E teve debaixo dos pés, quase morto, ao sirgueiro, que chamam Francisco Dias, que eles tinham por sua escora; e dois negros lhe deram por detrás com duas alabardas, pelo que, deixando primeiro bem vendida sua vida, morreu ele e o João ou Diogo de Baldes , bem mal aconselhado, e morreram muitos fidalgos castelhanos, entre os quais foi um D. Luís de Bazan, sobrinho do marquês de Santa Cruz e um sobrinho do duque de Alva; os quais rendidos, disseram que lhes concedessem a vida, mas eles, como gente que não sabe que cousa é vencer, negaram o que tão justa petição merecia, matando-os desumanamente.
Escaparam alguns que sabiam nadar e os mais morreram. No qual conflito, morreu muita fidalguia e gente nobre. Dizem se até noite se puderam sustentar que muita gente se lhes passara da sua banda.
Ficaram tão ufanos os da terra desta pequena vitória, em comparação dos muitos que eram, que começaram a dar no termo de bisonhos soldados com muita insolência, vestindo-se os plebeus dos muitos vestidos ricos e bons dos honrados moços. E em gente baixa esta novidade altera, e depois, pelo desvio que tiveram os mecânicos, que eram estes, não usaram de seus ofícios, levantando falsos testemunhos a quem tinha alguma cousa, e entravam nas casas e roubavam com crime de dizerem ser algum castelhano. E em uma procissão que fizeram pela tal vitória, da Sé até a Casa da Misericórdia, com as ruas enramadas e janelas alcatifadas, levaram um carro triunfante, carregado das armas que tomaram aos castelhanos, com as cabeças de alguns nas pontas dos piques, arvorados no mesmo carro.
D. Pedro Baldes , fique no peito de quem sabe sentir qual seria sua pena, pois não tendo faculdade para deitar gente em terra, nem licença para mais que esperar D. Lopo de Figueiroa, a cuja ordem a gente de guerra vinha , perder por sua própria opinião e ordem tão ilustres fidalgos, moços de pouca experiência na milícia, que isto só era parte para os não querer degolar, que com razão dele se pudera queixar quem nisto lhe vai. E dado caso que vencera, só por isto não ficara sem repreensão; pois uma das cousas que se imputou a culpa ao conde de Agamonte em Frandes , vencendo muitos mil franceses, foi por romper batalha e dá-la sem licença de el-Rei, quanto mais cometê-la com tamanha desigualdade. Sentiu isto D. Pedro de Valdez de maneira que esteve quase doido e tinha razão. Fez logo a saber o sucesso ao governador Ambrósio de Aguiar, desculpando-se, dizendo que não dera licença mais que para fazer aguada, e João ou Diogo de Baldez excedera a ordem por ele dada; e lhe fosse isto notório e lhe pedia o fizesse a saber a Sua Majestade. Respondeu-lhe o governador consolatórias palavras, como no interim havia mister.
Chegava-se o tempo que a armada havia de vir, e já tardava D. Lopo. Esperavam todos que trouxesse armada bastante para dominar aquela gente, mas por causa dos ponentes tardou e veio à entrada de Agosto de oitenta e um anos com vinte e duas velas, entre naus grandes e galeões. Tomou esta ilha e logo se enxergou na fraqueza dela que não abastava. Fez aqui aguada e partindo para Angra se ajuntou com D. Pedro Valdez. De navios era grande a cópia, mas gente muito pouca. Sabendo D. Lopo como se fora o padre frei Pedro Mestre, sem D. Pedro Valdez o mandar a terra, o mandou buscar a esta ilha de S. Miguel em uma caravela, que o levou, e, chegando, foi em um barco a ver se o deixavam desembarcar na ilha Terceira para dar sua embaixada e o desengano aos moradores dela, que eles sempre enjeitaram.
Chegando perto da terra, ouviram mosquetes e arcabuzes, com que lhe atiravam, sem os deixar chegar; e assim seu desejo ficou em vão e os da terra sem remédio.
Andando o dito D. Lopo voltando ao redor da Terceira, a cabo de oito dias mandou reconhecer a terra de noite; e receberam aos reconhecedores com pelouros. Causou alteração estarem tão alerta. D. Lopo, todavia, alvoroçado disto como soldado, do primeiro moto quis dar batalha: porém, reportado como capitão chamou a conselho, e acordou-se nele que a não deviam dar, pelo que se tornou logo na volta desta ilha, e foi-se ao Reino, onde foi de Sua Majestade agradecido, pelo bom termo que nisto teve, D. Pedro Valdez sentenciado à cabeça fora, mas padrinho como foi o Sereníssimo Cardeal, cunhado de Sua Majestade, o pediu, com sentença que nunca seria ocupado em cousas de serviço de el-Rei. Desta vez a desordem de D. Pedro Valdez e a tardança de D. Lopo de Figueiroa foram causa de não se tomar a Terceira, porque, antes que ele chegasse, chegou a ela Manuel da Silva por seu governador e viso-Rei, com o que ficou mais forte e obstinada.
Sentiu muito D. Pedro de Valdez a sentença dada contra a sua honra, e foi-se para as montanhas, a sua casa, que é em Oviedo, onde esteve algum tempo sem cargo, e dele não há que fazer ao presente mais menção .
O marquês de Santa Cruz, sabendo que seu sobrinho D. Luís de Bazan morreu naquela rota e tão desumanamente, o sentiu muito, porque o moço era para isso, e com desejo de vingança quis pretender o como a pudesse ter daqueles. E foi a el-Rei pedindo-lhe que como soldado lhe desse licença para a empresa da Terceira; ou, sem ele o pedir, El-Rei lhe disse que se fizesse prestes para o verão com os mais navios e doze galés e outros petrechos navais, que lhe fazia mercê de geral do mar e terra. Foi-se logo ao porto de Santa Maria, onde sacrestou todas as naus e navios que achou, assim de levante, como os mais, e em Lisboa os galeões que havia, em uma e outra parte. Vindo Janeiro daquele ano, começou de ordenar, mandando aprestar a gente do terço de Frandres e da Liga. Dizem que dez mil homens tinha prestes e ficavam duas armadas no porto de Santa Maria, quarenta naus grossas aragoesas , e por cabeça Francisco Morena, e D. Francisco de Benevides com dez galés; e que na entrada de Maio partiria para esta ilha de S. Miguel, onde esperaria o marquês que viria com outras quarenta naus, em que entravam os galeões e outros navios de Portugal. Foi declarado por mestre de campo geral desta gente D. Lopo de Figueiroa que, ainda que fosse de mais honra a viagem que cá fizera o ano passado, vindo por geral, por ser de tanta importância esta jornada, não o quis escusar el-Rei.
Tinha escrito o governador a Sua Majestade que a gente desta ilha de S. Miguel estava algum tanto desconfiada, por respeito de verem vir uma armada e outra, sem fazerem nenhum fruto, e a Terceira permanecia; que pedia a Sua Majestade com a brevidade possível viesse. A que foi respondido que ele mandaria armada bastante que trouxesse a seu serviço a ilha Terceira, e disto assegurasse os moradores desta ilha de S. Miguel, e que lhe pesava que a isto chegassem os da Terceira, que quiseram enjeitar a clemência e intentar seu poder.

No mês de Abril de mil e quinhentos e oitenta e dois anos, mandou Sua Majestade uma armada ligeira de cinco velas, que era o galeão S. Cristóvão, uma nau almiranta, três caravelas e uma mexeriqueira, cujo capitão mor era Pero Peixoto da Silva, homem bem apessoado, de bom corpo, louro da barba e quase meio branco; a qual armada vinha aguardar as naus da Índia invernadas e recolher-se por diferente altura. Trazia por regimento que, achando alguns inimigos, podendo, se recolheria a esta ilha de S. Miguel e, não podendo a salvo pelejar com eles, deitaria a armada à costa. Chegou a esta ilha no mês de Maio da dita era. Foi o dito capitão mor recebido do governador Ambrósio de Aguiar com muita festa, porque, além da sua obrigação, eram também parentes. Dali a oito ou dez dias, que foi no mês de Maio da dita era de oitenta e dois, depois de estar ancorado no porto da cidade da Ponta Delgada, da banda dos Mosteiros apareceram nove velas, as quais iam na volta do mar. Sendo dado este recado na fortaleza, mandou-o o governador ao capitão mor da armada Pero Peixoto, o qual, não fazendo por isso muito alvoroço, não deixou todavia de estar alerta. Ao outro dia apareceu perto da ponta de Santa Clara uma caravela e uma nau a descobrir a armada; e, descobrindo o porto, logo viraram por onde vieram, podendo-o muito bem fazer, porque o vento era terreal, e para entrar e sair o tinham próspero. Visto pelo dito Pero Peixoto, dissimulou e bem conheceu o que era; mas o alvoroço do povo, que causa muitas vezes grandes danos, por não ponderar as cousas mais que a seu parecer, houvera de causar um grande revés, dizendo que para que era armada ancorada, vindo ladrões a reconhecer o porto, e que eram judeus e não prestavam para nada. Ao que respondia Pero Peixoto, com muita prudência e paciência, que não se agastassem, que mais velas haviam de vir do que cuidavam, as quais viriam amanhã, de muita avantagem da sua armada; e assim foi, que ao dia seguinte, véspera da Ascensão, vinte e três de Maio da dita era, veio recado que apareciam nove velas e vinham cosidas com a terra, as quais já a este tempo Pero Peixoto tinha descoberto e estava fornecendo a armada do que era necessário para o efeito da peleja, por ser geral da dita armada e, capitão do galeão S. Cristóvão, Cosme Nabo, onde o dito capitão mor estava. Da nau almiranta, chamada Bom Jesus, de Vila do Conde, era capitão Sebastião Gonçalves d’Alvelos; da caravela Vitória, chamada S. João de el-Rei, Manuel Simões, cavaleiro de África; da caravela Espírito Santo, Pero Mexia; da caravela chamada S. João, fretada , João Roiz Carreiro; e da mexeriqueira, Manuel Jácome. Estavam no porto então duas naus ingresas. Pediu Pero Peixoto ao governador as armasse de gente, que o mais tinham em si, e foi logo pelo governador posto por obra; nas quais naus declarou por capitão de uma a Manuel Cordeiro de Sampaio, juiz do mar, com quem teve muitas palavras de cumprimento, e da outra a Rui Vaz Medeiros, capitão da infantaria, com a gente da sua companhia. Com o juiz da alfândega, Manuel Cordeiro de Sampaio, se embarcaram seus irmãos e parentes, António Cordeiro de Benevides, mancebo, letrado de grandes esperanças, André Cordeiro, Mateus Cordeiro, seus irmãos, parentes Manuel Cabral Botelho, Pero Roiz de Sousa, António de Benevides, e outros parentes e criados. Quando se embarcaram, já vinha a armada dos contrários espaço de meia légua. E o dito Manuel Cordeiro se foi a Pero Peixoto, dizendo-lhe que o governador Ambrósio de Aguiar o declarara por capitão daquela nau e gente; que ele ia à ordem que Sua Mercê determinasse. Foi dele bem recebido e com muito alvoroço lhe disse que já a guerra não temia; respondeu Manuel Cordeiro que, tendo tal general como Sua Mercê, se não podia temer. Pero Peixoto estava mui enfadado desta ocasião, porque a gente como portuguesa tinha ainda fresco o agravo que dos castelhanos recebera, roubos de suas fazendas e injúrias de suas pessoas, como em tamanho saco como o de Lisboa havia acontecido, que, posto que dos muros afora, é quase igual com a cidade; por este respeito, como também por a falsidade de D. António ter irmanados aos do comum, a quem era muito aceito este nome. Sentindo isto, sobejando-lhe razão, pelas melhores palavras que pôde, oferecendo promessas aos soldados, que el-Rei lhe faria mercês, os convocou a si , ainda que pesados. A armada do imigo tinha já deitado a lancha fora, e Pero Peixoto sabia ser a armada a que D. António tinha escrito à Terceira que mandaria em Março, de nove ou dez velas, e geralmente o serviria de tomar todos os navios que viessem de ponente e o galeão da Mina. Os da Terceira, com aquela esperança, diziam que não somente haviam de aproveitar-se dela para o efeito que lhe escrevera seu Rei, senão para virem tomar esta ilha de S. Miguel, e já jogavam muito de siso as fazendas dos ricos dela. Vinha por geral da armada francesa monsior de Landroi, e por seu sota-capitão monsior de Lacre , seu sobrinho, com pressuposto, induzido do governador Ciprião de Figueiredo, que nesta ilha havia servidores de D. António e estavam forçados nela os que publicavam outro nome, e não desejavam outra ocasião, e que em breve tempo poderia fazer esta viagem honrosa e de grande serviço de seu Rei, para que viriam com ele muitos soldados da Terceira e o padre frei Simão de Bairos; e que, não tendo efeito ser isto assim, havia muitos navios, que se recolhiam a esta ilha, em que faria grande presa. Pretendendo primeiro mandar o dito padre Frei Simão a pregar que se dessem ao serviço de D. António, para o qual efeito vinha, mas não houve tanto tempo, porque quando tornou a lancha, que reconheceu ser armada e navio grande, chamaram os franceses a conselho, onde houve diversos pareceres, e o do sobrinho do monsior de Landroi foi que não pelejassem e se retirassem. A razão que dava era ser o perigo muito e o proveito nenhum, porque a armada não tinha mais que pelouros, e que aquilo dizia não por escusar a peleja, mas que era bom poupar-se para outra melhor ocasião. Foi-lhe respondido pelo geral que era aquilo medo, do que o monsior de Lacre, ou de Tui, se sentiu muito, e logo se despediu e foi para a sua nau, respondendo ao senhor de Landroi: — a me dizer isso outrem que não fôreis vós, a quem eu por tio sofro, satisfizera-me muito bem; bem sabeis que em França não há melhor soldado que eu; no que me satisfaço é que não tornarei a França, e vós sim. Assim se despediu e foi à sua nau monsior de Lacre, e disse a seus soldados: — filhos, acendei vossos morrões e lograi-vos este dia de vosso capitão, porque amanhã não o tereis, à fé de gentilhomem; que é jura, como se dissera, à fé de fidalgo. A seus soldados pesou muito de sua pena e quase todos o seguiram, como logo direi.
A ordem de repartir a peleja foi que três naus, em que entraria a capitaina e sota-capitaina, abalroariam o nosso galeão e com muita força investiriam; que, destroçado ele, não custaria nada tomar o acessório. Como disseram e determinaram, o fizeram, investindo a capitaina o galeão pelo convés, e as duas passaram uma por popa, e outra por proa. A ordem que Pero Peixoto teve foi mui ardilosa: tratou de não dispender tiro que não fosse executado, e assim foi que, estando muito perto, disse ao condestable que, posto que não se perderia tiro, deixasse vir mais perto o imigo; e veio tanto, que com toda a artilharia lhe deu, fazendo-os apartar. Foi isto tanta parte da vitória que segundo vinha duvidosa fora certa, se como vinham determinados abalroaram. Monsior de Lacre levava seu pressuposto na nau nossa sotacapitaina, e investindo com ela a meia nau, pondo-lhe o gurúpes, começou a escaramuça de muita artilharia, arcabuzaria, panelas de pólvora, que ardiam ambas em fogo, por não achar menos resistência em nossa nau, pela valia de seu capitão, que era a muitos encontros destes mui acostumado, em que pelejou com muito esforço, e aqui com não menos o fez. Deste primeiro encontro, como os pelouros eram muitos, a mor parte dos homens de honra dos nossos foi deles morta. Manuel Cordeiro de Sampaio, querendo ir a investir outra nau, que também era ingresa, conhecendo-se uns a outros se desviaram, e vendo Manuel Cordeiro a ribaldaria de seu patrão, levou um montante para lhe cortar a cabeça, se se lhe não desculpara, com dizer que ia a nau mal alastrada.
Vendo o dito Manuel Cordeiro que sua tenção não tinha efeito e cuidando perder reputação, se arriscou a maior perigo, dizendo a seus soldados: — senhores, a honra, se a viemos ganhar, naquela nau de el-Rei nos está mais aparelhada, pois os imigos a têm rendida. Eles lhe responderam como tão principais que eram e, tomando o barco de seu navio, se embarcaram, ele primeiro, e eles logo. Por serem pessoas tão particulares, particularmente direi seus nomes: Manuel Cabral Botelho, António de Benevides de Sousa, o Cerne, Pero Roiz de Sousa, um Almeida, do Porto, mercador, que por amisidade de Manuel Cordeiro se embarcou com ele, os irmãos do dito Manuel Cordeiro, António Cordeiro de Benevides, André Cordeiro de Sampaio, Mateus Cordeiro de Sampaio e Rodrigo Álvares Castanho, criado do dito Manuel Cordeiro. Chegando à nau, que de todo estava rendida, se a tal tempo tal socorro se lhe não dera, com tanto brio e ânimo arremeteram, que mal se pudera julgar qual subiria primeiro, dizendo Manuel Cordeiro: — senhores, não diga o governador Ambrósio de Aguiar que homens das ilhas não têm merecimento, como quem mais o tem; e outras palavras que lhe soube bem dizer. Ficou tal o capitão da nau, que cobrando novo ânimo se começou com o novo socorro atear a batalha, com que logo os imigos sentiram seu dano com muitas arcabuzadas, pedindo o dito capitão Manuel Cordeiro o lugar mais perigoso, onde se arriscasse ele e sua gente. Daquele encontro, havendo meia hora que pelejavam, lhe mataram seu irmão, António Cordeiro de Benevides, e lhe caiu a seus pés morto, sendo cousa rara o que ali aconteceu! Caindo o irmão a que tanto queria, com um sembrante alegre disse: — cobri-o com um bérneo; sem por isso mostrar sentimento, passando adiante, como se lhe não fora nada. Foi grande a perda deste nobre mancebo, por concorrerem nele todas as partes que um homem da sua qualidade havia de ter; letrado de muitas esperanças, morreu por sua Pátria e serviço de seu Rei. Estavam já dantes embarcados mais de oitenta homens da terra, nobres e plebeus, com Martim Afonso de Sousa e seu irmão Pedro Afonso de Aguiar, filho morgado do governador Ambrósio de Aguiar, e outras pessoas nobres, Simão do Quental, Fernão do Quental e Diogo Machado, filho de António Machado, que por ser bom arcabuzeiro e de grande ânimo, matou cinco ou seis dos imigos e feriu outros, enquanto durou esta batalha das duas naus abalroadas, véspera da Ascensão, do meio-dia até às seis horas da tarde, pouco mais ou menos; tendo sempre no sentido, com grande devação, a sua tia Margarida de Chaves, que tem por santa e faz milagres, e diz que ela o livrou de tal perigo, porque passando por ele os pelouros, matavam detrás a outros da mesma nau; pelo que o governador lhe deu logo uma praça na fortaleza e depois, andando em requerimentos na corte, alegando a Sua Majestade seus serviços, foi bem despachado para a Índia. E outras muitas pessoas da terra se acharam então na nau de Sebastião Gonçalves d’Alvelos, onde foi a maior força da peleja e mais perigo.
Rui Vaz Medeiros, capitão da infantaria, que estava na outra nau inglesa, a fez alevantar à vela e, perpassando algumas vezes da banda do mar pela nau almirante dos franceses, lhe dava suas surriadas, assim de bombardas, como de arcabuzaria. O mesmo faziam todas as caravelas da armada, principalmente S. João, fretada, cujo capitão era grande amigo do capitão da almiranta portuguesa. E sempre tomaram a almiranta francesa e abalroaram com ela, se não entenderam que estavam apostados os franceses a matar com fogo a si e aos que entrassem com eles.
Imputavam a culpa os da terra, quando viam que as naus ingresas tinham voltado sobre a costa, cuidando que todos os capitães estavam dentro; mas quando souberam que Manuel Cordeiro era passado da nau ingresa, acudindo à nossa capitaina, se embarcavam tantos até a nado, que não os queriam receber dentro nela, pola não empacharem.
Antes disso, aparecendo a armada francesa, um Bartolomeu Cabral, natural da terra, nobre cidadão da cidade da Ponta Delgada que sempre sustentou a voz de Sua Majestade e lhe foi tão leal vassalo que nunca estimou pelo servir os perigos da vida, se embarcou só a socorrer a dita nau de que era capitão Sebastião Gonçalves d’Alvelos; e foi o primeiro que nela entrou, dizendo em voz alta: — já foi tempo em que os homens costumavam ir a África a ganhar comendas; agora me fez Deus mercê que a venha ganhar nesta nau, em serviço de Sua Majestade. Recebendo-o o capitão com muito alvoroço, por o conhecer por muito bom cavaleiro, o encarregou da gente de tolda, lugar muito arriscado, donde pelejou mui valorosamente por sua pessoa, com panelas e alcanzias de pólvora e com uma bomba de fogo, com que queimou a vela e enxárcia do traquete de proa da almiranta francesa; e não contente com isto se subiu à xareta de cima de popa, lugar de mais perigo, com uma lança de fogo, para lhe fazer o mesmo dano na vela grande, donde o derribaram abaixo com um pelouro de uma bombarda, com que lhe deram por um quadril, e foi levado a terra por morto, havendo quatro horas que pelejava; da qual ferida esteve três meses e meio em cama, desconfiado da vida, e ficou aleijado e manco. Ainda com as feridas abertas, vindo depois D. António sobre esta ilha com sua grossa armada acometer a terra, se alevantou da cama e foi a cavalo, com suas armas, ajudar a defender a desembarcação, animando a todos que pelejassem. E no ano de setenta e oito, estando na cidade de Lisboa, foi de armada a sua custa esperar as naus da Índia, em companhia do mesmo capitão Sebastião d’Alvelos, por haver novas de cossairos que as vinham buscar; pelos quais e outros mais serviços, o filhou Sua Majestade por cavaleiro fidalgo de sua Casa e lhe fez mercê do hábito de Cristo, com vinte mil réis de tença, e que pudesse renunciar ao ofício que tinha de escrivão do lealdamento dos pastéis da dita ilha em quem quisesse, e de cinquenta cruzados para ajuda do custo. Como também, pelos serviços que fez seu irmão Diogo de Oliveira de Vasconcelos, e por na entrada da ilha Terceira, no ano de oitenta e três, morrer de duas arcabuzadas que lhe deram, fez mercê a Ana Cabral, sua mãe, de cem cruzados de ajuda para meter freira uma e duas netas que tem, e a ela três moios de trigo de tença em cada ano em sua vida, pagos na feitoria desta ilha de S. Miguel.
Como tenho dito, a capitaina francesa, com outra nau, vieram direitas ao galeão S.
Cristóvão, o que vendo o capitão Pero Peixoto, com grande ânimo esforçava a gente, dizendo que não temessem, que toda aquela armada francesa não bastava para render aquele galeão que era uma fortaleza e não galeão. E mandou com muita pressa serrar muitas pipas pelo meio e encher umas de água, para que se caísse algum fogo que os franceses deitassem dentro, emborcassem as tinas de água com que logo o apagassem, outras cheias de pão, outras de vinho com suas taças de pau dentro, outras com azeitonas, no convés; assim trabalhava a gente e mais comia. Mandou também pôr nas gáveas muitos calhaus de mão e maiores, e algumas alcanzias de fogo, com certos homens em cada uma, que também tinham seus arcabuzes consigo e soma de dardos, e as gáveas muito bem forradas de couros e colchões para guarda da gente. E mandou pôr em baixo cada um em sua estância, donde pelejasse com seu arcabuz e espada e um pique ao longo de si, e os bombardeiros em suas estâncias, onde estavam capitães postos pelo capitão-mor.
Antes da armada francesa chegar à nossa, se embarcaram no galeão algumas pessoas da terra, que foram Manuel Serrão, João de Robles, Gaspar Camelo e outros, a que o capitão fez muita festa e lhes deu de estância a do prepao.
Chegados os franceses a tiro de barreira de arcabuz, ou pouco mais, do galeão português, largaram uma âncora pola mão, com tenção de abalroarem, começando logo a disparar sua muita artilharia grossa, que traziam, e após ela muita arcabuzaria, assim da capitaina, como da outra nau sua companheira. E tão bastos davam os pelouros no galeão português, que pareciam trovões amiudados, cujo capitão Pero Peixoto, com grande ânimo, correndo pelo dito galeão, de uma estância na outra, esforçava a gente, mandando que estivessem prestes e ninguém atirasse sem seu mandado. Em acabando os franceses de disparar sua artilharia e arcabuzaria, ficaram a par com o galeão português; então disse o capitão Pero Peixoto com alta voz: — pôr fogo, pôr fogo, duas vezes, e logo foi posto e ouvidos tão bravos estouros e estrondos da muita e muito grossa artilharia, que o galeão trazia, e após ela a arcabuzaria, que podiam ensurdecer os presentes, como as cataratas do rio Nilo. Também das gáveas lhe deitaram algumas alcanzias de fogo, de que não caíram na capitaina francesa mais que uma só, que logo foi apagada. Mas os pelouros da artilharia francesa, que davam no galeão português tão bastos como tenho dito, caíam no mar, sem entrar nenhum dentro senão polas obras mortas, com que feriram cinco homens, um dos quais foi o mestre, mas nenhum morreu disso. A gente do galeão português via passar os seus pelouros pelas naus francesas de uma parte a outra, e no mar o mantimento deles, que levou um pelouro diante de si, passando pelo paiol. Vendo-se os franceses tão mal tratados, largaram a amarra pela mão, deixando-se ir naquele bordo até defronte da vila da Alagoa. E ali viraram na volta do mar e andaram bordo ao mar, e bordo à terra, sem mais cometerem nada, até que a almiranta francesa se desembaraçou e espediu da almiranta portuguesa. E então se foram os franceses todos na volta do mar, sem aparecerem mais, indo-se à Terceira a consertar dos muitos buracos que levavam e sanear suas quebras e curar a gente ferida.
Vendo o capitão mor Pero Peixoto acolher-se a almiranta francesa, a altas vozes dizia, no seu galeão: — ah! que farei, que se há-de ir aquele ladrão! Eu, se me desamarro e lhe dou caça, tomo-o, mas fico fora da companhia e entre os franceses, onde me poderão tomar, e, tomando-me a mim, tomarão toda a armada e a terra; ora mais vale que se vá um ladrão, que não que me perca eu e toda esta armada. A qual razão pareceu bem a todos os homens honrados que no galeão estavam. E com isto se foi a almiranta francesa, sem a tomarem, ainda que muito mal tratada. E, se o galeão tivera seu batel fora, nunca a francesa se fora, porque pudera levar algumas peças de artilharia, com que acudira à sua almiranta; do que o dito Pero Peixoto se mostrava mui magoado, sem ousar mandar atirar do seu galeão à almiranta francesa, com receio de a errarem e darem na portuguesa ou passarem os pelouros ambas juntamente, a francesa e a portuguesa. As outras caravelas portuguesas e nau ingresa de Rui Vaz Medeiros, como tenho dito, ainda que perpassando à vela dessem bataria à almiranta francesa uma vez ou duas, não puderam tornar a perpassar, porque, quando bem se tiveram que não descaíssem entre as francesas e tornaram a tomar suas amarras, que tinham largadas pela mão, não fizeram tão pouco. Da almiranta portuguesa matavam às arcabuzadas os franceses que viam ir cortar o gurupés, que é o masto em que anda a cevadeira, por onde a sua nau francesa estava embaraçada de maneira que nunca a puderam cortar; e assim durou a guerra as seis horas que tenho dito, até que se quebraram as enxárcias da almiranta portuguesa e se espediu a francesa, em que já não havia mais que cinco ou seis pessoas que ficaram cortando as arrataduras do seu gurupés. E é certo que lhe mataram cento e cinquenta homens, um dos quais foi o seu capitão e almirante monsior de Lacre ou de Tui, que levaram os seus, que escaparam, salgado à Terceira, onde foi enterrado com grande pompa no mosteiro de S. Francisco da cidade de Angra, por lhe acharem em sua caixa um testamento feito como bom cristão e católico. Dos portugueses, morreram nesta batalha catorze ou quinze pessoas, entre os quais foi aquele generoso e delicado mancebo António Cordeiro de Benevides, irmão de Manuel Cordeiro de Sampaio, juiz do mar, na nau Bom Jesus, de que era capitão Sebastião Gonçalves d’Alvelos, onde ficaram mortos nove homens e dezassete feridos.
E depois, dali a alguns dias, faleceu o mestre e senhorio da caravela S. João, fretada, por sair da guerra ferido de um tiro que os nossos atiraram. E saíram da mesma batalha mais de trinta portugueses feridos. Dois franceses fugiram no barco da nau e outro se desceu por um cabo para se ir com eles, e, não o querendo recolher, o foi tomar um esquife do nosso galeão, o qual descobriu muitas cousas dos seus.
O mesmo dia da peleja, mandou o governador Ambrósio de Aguiar recado a Rui Gago da Câmara, capitão mor da gente de milícia da vila da Ribeira Grande, para que lhe mandasse socorro à cidade e à vila da Água do Pau, onde se suspeitava que sairia a gente da armada francesa que andava à vela. E no mesmo dia partiu o capitão Nuno de Sousa, sem licença do capitão mor, com seiscentos homens para a cidade, durando ainda a peleja no mar. Foram bem recebidos do governador e fizeram corpo de guarda aquela noite ao redor da fortaleza, até que ao outro dia se tornaram. Rui Gago, capitão mor, foi com duzentos homens à vila da Água do Pau, com muita diligência, como outra vez teve, acudindo a Vila Franca com quinhentos homens, quando dantes queria desembarcar na praia dela um capitão que alguns diziam ser Jaques Soria, com três naus mui grossas, a que defendeu a desembarcação e entrada; o qual capitão, qualquer que fosse, se alevantou e afastou da terra. Ficou também então na vila da Ribeira Grande o capitão Pero de Paiva com duzentos homens para guarda dela, ou para acudir com eles onde mais necessário fosse, quando e como o dito governador Ambrósio de Aguiar ordenasse.

O nascimento do Capitão Alexandre foi em Vila Franca desta ilha, na era de quarenta e dois anos. Seu pai se chamou Cristóvão Dias Correia, da linhagem dos Correias por linha direita.
Sua mãe, Hipólita das Cortes, da nobreza dos Colombreiros.
Foi inclinado à arte militar; sendo de idade de dezassete anos, se foi desta ilha. Começou a servir aos Reis de Portugal na mesma idade, na fronteira de Mazagão; achou-se nele no tempo que Muley Admete, filho de Muley Abadata, o veio cercar. Foi um dos sete soldados que saíram com Pero Paulo em uma barca, os quais desembarcaram na Pescaria, um quarto de légua de Mazagão e reconheceram o campo mourisco; retirados aonde tinham sua barca, a mais de duas horas do dia, tomaram Almansor, vindo fazer asselá , e o trouxeram à fortaleza.
Foi um dos onze que foram com António de Freitas à cidade de Anafe o dia que prenderam o Xeque Magolu e seu criado Ambarque, estando ali aduares, em que estavam mais de três mil mouros.
Foi um dos quarenta que saíram com Pero da Cunha nas Hortas, quando se prendeu Side Abrahem e Side Maçaode. E em todos os mais rebates e ocasiões que houve no tempo que esteve em Mazagão deu satisfação de si.

No ano de 63, se veio a Lisboa por se aparelhar de armas e cavalo. Ali lhe sucedeu certo negócio, por onde lhe foi forçoso passar-se a Itália. E neste mesmo ano entrou no serviço da Majestade de el-Rei Filipe, que hoje em dia é Rei e Senhor nosso.
Embarcou-se no porto de Santa Maria, na galé Patrona de Hespanha, de que era capitão Fernão de Escobar. Idos a Málaga, se ajuntaram com a armada que trazia D. Garcia de Toledo, com que foram sobre o Pinhão de Belles, onde o ganharam e ele se achou. E ganhando, se foram a seus invernadouros.
No fim deste ano, tiveram novas que o Xarife tinha cercado a torre de água de Belles.
Assim mandou Sua Majestade logo que, com duas galés bem armadas, a fossem socorrer.
Encomendou-se o socorro ao capitão Guterre d’Argoulo; da volta que vinham sobre a Fangirosa, que são três léguas de Málaga, acharam uma galeota, véspera de Reis à meianoite, e dando-lhe caça a investiram. O Capitão Alexandre levava por camarada Miguel de Amendanho, biscainho, com quem ia ajuramentado que ninguém entrasse diante deles nos navios que encontrassem. Indo a galeota na volta de terra, a galé a investiu com tanta fúria pelo pé do masto que a quebrou toda. Neste tempo, tinha o Capitão Alexandre saltado ao esporão e entrou na galeota, a qual logo ficou feita em pedaços por baixo da galé, sem que nela entrasse outro nenhum, salvo ele; porque o companheiro ficou dependurado do vento das arrombadas da galé e foi a galé avante tanto espaço, que havendo o Capitão Alexandre nadado mais de três horas, vendo-se já alcançado das forças e alento, tendo por remédio o afogar-se somente, naquele instante lhe veio à memória a Virgem da Vitória do porto de Santa Maria, e em se lembrando dela se achou posto em cima de uma tábua, sobre a qual esteve até que a galé tornou àquele lugar, porque com a obscuridão e grita dos mouros que andavam nadando o não ouviram, por onde se entende que a Virgem Nossa Senhora fez por ele milagre.

No ano de sessenta e cinco, embarcados nas próprias galés, seguindo o mesmo geral D. Garcia de Toledo, partiram de Messina a dar o grão socorro que se deu a Malta, em que se ganhou a artilharia aos turcos, e os fizeram embarcar, e lhe seguiram a armada, até os verem passar pelo Sirgo, que é a boca do canal de Constantinopla.

No ano de sessenta e sete, no fim dele, se vieram a Hespanha, havendo tomado muitos navios de turcos por diversas vezes. Estando invernando em Cartagena, a noite do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de sessenta e oito, se rebelou o reino de Granada. A este alevantamento saíram com as galés e, chegados a Almeria, desembarcaram delas duzentos e cinquenta soldados, de que foi capitão D. João Senogueira, e junto com D. Francisco de Córdova, que levava outros duzentos e cinquenta, caminharam para a serra de Inojo, aonde lhe encarregaram, a ele capitão Alexandre, fosse reconhecer o sítio e armas que os mouros tinham; os quais diziam ser dois mil e setecentos. Encarregado disto, tomou consigo três arcabuzeiros e quatro tambores, e subindo à meia-noite por uma alta costa, lhe rodeou o campo e repartindo aos soldados e tambores o lugar que cada um havia de ter, para lhe tocar arma, lhe deu ordem que, tiradas tantas arcabuzadas, eles e os tambores se tornassem a recolher a ele. Feito isto, se recolheu sem perda de nenhum, e deu a seu geral relação tão verdadeira que dando ao outro dia batalha aos mouros, na qual Deus foi servido dar-lhes vitória, ganharam nela duas mil e quinhentas escravas e mininos. Saiu daqui o capitão Alexandre com o braço esquerdo quebrado e com uma arcabuzada na cabeça. Deram-lhe de jóia, pelo que nesta guerra fez, entrasse em todas as escravas e escolhesse duas peças à sua vontade, de mais de cinco que lhe couberam de sua parte.
Durante esta guerra, tomaram a galé de que era capitão Admete, o qual enforcaram em a ilha de Cartagena, porque temerariamente pelejou com a galé Patrona Real e com a capitaina de Gil de Andrade. Havendo os turcos desta galé feito grande dano, o Capitão Alexandre se pôs na dianteira, pela banda esquerda, e pela banda direita outro soldado, amigo seu, chamado Sant’Estêvão. É cousa certa que pela virtude deles se ganhou esta galé, porque nela se mataram sessenta e seis janiçaros , todos a finas cutiladas.
Durante mais a guerra, vieram sobre a serra de Frixiliana, onde estavam fortificados sete mil mouros, os quais Deus foi servido rompessem, com mortes de muitos deles e com lhes cativar suas mulheres e filhos. Saiu ali o Capitão Alexandre com cinco setadas nos peitos e com ganho de quatro escravas.
Durando mais a guerra, estando nos poços de Chovalim, lhe ordenou o comendador mor de Castela saísse com setecentos soldados em terra, por detrás da montanha de S. Pedro, a esperar certos turcos que ali haviam de sair de uma galé, que vinha ao mar carregada de armas para o socorro dos mouros de Granada; da qual saíram duzentos turcos, os quais ele encontrou com sua gente, e foram tão bem governados que, matando alguns dos turcos, lhe prenderam também oitenta, que aquele dia trouxeram às galés.
Em outro dia, na mesma guerra, saiu ele, Capitão Alexandre, com cinco soldados na Rambla de Cautor e dando alcance ao Capitão Barrasquilha, que era capitão de certos turcos que aquele dia abaixaram ali abaixo com trinta dos seus, aos quais seguindo com seus companheiros lhe mataram sete e cativaram quatro. E o Capitão Alexandre trouxe o capitão Barrasquilha cativo, o qual prendeu, rendendo-lhe suas armas.
Durante mais a guerra, ajudou a tomar setenta navios que por vezes vieram de Berbéria a dar socorro aos mouros de Granada.
O primeiro ano que o senhor D. João de Áustria se embarcou nas Salabivas, achou duas galés de turcos, às quais dando caça, investiu uma delas em um lugar que se diz Oné, que é na costa da Berbéria, entre Melilha e Ourão. E tirando os turcos os cristãos em terra para os levar, e não podendo a gente das galés desembarcar, por a arcabuzaria dos turcos ser muita, se meteu ele, Capitão Alexandre, em um esquife com outros cinco soldados, e indo reparados remaram direitos ao leme da galé dos turcos, a que ele Capitão deu um cabo, e remando outra vez para a sua galé, que ali não podia chegar por a água ser pouca, o amarraram, e remando a mesma sua galé para o mar, tiraram a dos turcos. Este serviço teve Sua Alteza em muito, por ser a primeira galé que tomou.
O ano de setenta, se foi a Itália por se achar no socorro de Chipre; embarcou-se com Marco António Colona, geral de toda a armada, no porto de Suda, que é em Cândia. Houveram conselho, o qual foi tão vário que, pela variedade dos capitães contra a opinião de Marco António e do marquês de Santa Cruz e pelos votos dos outros serem muitos, não socorreram a Chipre, mas antes se tornaram a Escarpanto, e daí a Itália.
O ano de setenta e um, foi o senhor D. João de Áustria por geral de toda esta massa e do mais que se ajuntou em Messina. Dali mandou Sua Alteza a Gil de Andrade com sua galé capitaina, e outra de venezianos de que era capitão João Bembo, a reconhecer a armada turquesca, que àquele tempo estava com cerco sobre Catroa. O Capitão Alexandre foi embarcado na capitaina de Gil de Andrade, porque não levavam aquelas galés senão gente mui escolhida; e, chegados a Gulfó, acharam novas que a armada do turco estava no canal, entre Gulfó e Albania. Mandou Gil de Andrade ao Capitão Alexandre que com outros três soldados desembarcasse e atravessasse a ilha de Gulfó e fosse reconhecer a armada turquesca e contasse; o que ele fez, e trouxe tão verdadeira relação que a todos satisfez. Com esta nova se tornaram a Messina onde Sua Alteza estava, e com ela saiu logo em demanda da dita armada turquesca.
Aos sete de Octubro de 71, domingo pela manhã, se descobriram as duas armadas entre as ilhas de Cochilares e Lepanto. Postas em batalha, lhe entregaram ao dito Capitão Alexandre a proa da galé Patrona Real, de que ele era soldado naquele tempo, para que governasse a gente que pelejava nas arrombadas e do masto à proa, com a qual ele havia de entrar nas galés turquescas, vendo tempo oportuno; o que ele fez com tão boa ordem que, ganhada a galé de Caraoja, passou à de Maamutaga; pelejando nela, ao masto,
foi desamparado dos seus, com não ficar com ele mais que um soldado, chamado Francisco Osório; e foi Deus servido que tiveram tão boa manha que acabaram de render a galé.
E vendo naquela hora a gente que pelejava na Real do Turco estar parada e tíbia, ele, Capitão Alexandre, deu grandes brados, nomeando a muitos, que ali estavam, por seus nomes, e dizendo-lhes: — vitória, vitória; e alevantando na ponta da espada uma bandeira, se tornou a gente a animar e se acabou de ganhar a galé Real do Turco. E recolhendo o Capitão Alexandre sua gente, se tornou à galé Patrona Real, que estava investida de duas galés turquescas pela popa, as quais logo, com arcabuzaria que ele trazia consigo, fizeram retirar. E caminhando com a Patrona Real, investiram a capitaina de Petrão Baxá, que era o geral da terra. Ali entrou o Capitão Alexandre com obra de vinte soldados, e ganhada a galé se tornou à Patrona Real, a qual foi logo seguindo a de Sua Alteza, até se acabar a vitória. Por estes serviços, lhe fez Sua Alteza mercê de duzentos cruzados para ajuda de custa, e dez daventage cada mês, demais do soldo ordinário. Saiu desta guerra este Capitão Alexandre, com quatro setadas no rosto, uma lançada em uma ilharga e uma cutilada em uma perna.
O ano de setenta e dois, lhe mandou Sua Alteza servisse de capitão da galé Patrona Real; estando em Modon, desembarcou com sua gente, onde se travou escaramuça com dez ou doze mil turcos que naquele tempo saíram de armadas turquescas que estavam em Corron, por lhes estorvar a aguada. Dali levou uma setada em um braço.
Tornando dali para Nabalim, foi Sua Alteza com propósito de dar batalha à armada turquesca que estava metida debaixo da artilharia de Corron, e lhe mandou a ele Capitão levasse a galeaça de Veneza amarrada por popa da sua galé, e chegando à armada turquesca, quando já a artilharia e arcabuzaria lhe começasse a fazer dano, deixasse a galeaça travando a escaramuça e se tornasse a seu lugar, que era a banda direita da Real; e, estando já no lugar que dito era, lhe veio ordem tornasse atrás, porque os do conselho foram de parecer que se não pelejasse debaixo da fortaleza, salvo o senhor D. João, que foi de parecer que se pelejasse. Este serviço fez bem a satisfação de Sua Alteza.
Depois de tudo isto entraram no grão porto de Nabalim, onde desembarcados puseram cerco ao lugar e o bateram.
Aos sete de Octubro de setenta e dois, apareceu a armada turquesca fora das ilhas de Sapiência, e dando-lhe caça uma banda de galés, de que eram gerais Marco António Colona e o marquês de Santa Cruz, se meteram entre as ilhas, revoltos com muitas galés turquescas, e não sabendo Sua Alteza o que lá passava, chamou o Capitão Alexandre que vinha com sua galé à banda direita da Real, e lhe mandou que fosse reconhecer em que termo estava Marco António e o marquês de Santa Cruz, e lhe dissesse de sua parte que, se tinham necessidade de socorro, que chegaria com toda a armada; o que ele fez muito a satisfação de Sua Alteza.
O ano de setenta e três passaram ao reino de Tunes e o ganharam.
O ano de setenta e quatro fez Sua Majestade mercê a D. Alonso Martines de Leiva que servisse de capitão de todos os quatro alvos, que eram D. Diogo de Mendonça, irmão do duque de Infantasgo; D. Luís Bique, comendador maior de Aragão; D. Diogo Osório, sobrinho do marquês de Estorga; D. Guilherme de Roquaful, viso-rei que fora de Malhorca; os quais todos haviam de andar à ordem de D. Alonso Martins de Leiva. Encarregado ele disto, pediu ao senhor D. João mandasse ao Capitão Alexandre que servisse de capitão de sua capitaina e de seu lugar tenente. O senhor D. João lho mandou, e lhe fizeram mercê por isso de lhe acrescentar a paga a quarenta cruzados cada mês, que são trinta demais do soldo ordinário de um capitão.
O ano de setenta e seis mandou o duque de Cezare ao Capitão Alexandre fosse com doze galés a Sardenha, a socorro das de Malta que ali haviam corrido com fortuna e, topando-as uma esquadra de galés de turcos, tomaram uma delas; as outras socorreu o Capitão Alexandre e as trouxe a Nápoles a salvamento. Nesta viagem, atravessando de Civita Vieja para Córsega, em uma ilha chamada Osoãonute, tomou duas galés de turcos, em que tomou duzentos e tantos quintais de pastel que os turcos tinham tomado em uma nau francesa, e o vendeu em Genoa a dois mil e quatrocentos réis o quintal de cem libras.
O ano de setenta e oito, indo em cosso, tomou outras duas galés em uma ilha, chamada Monte Cristo. Os turcos delas fugiram nesta ilha, que, por ser muito montuosa, não se puderam tomar de todos eles mais de dez.
O ano de setenta e nove, indo pela costa de Berbéria, tomou outra galé de turcos, sobre o cabo de Visentor. Neste ano, se veio a armada a Hespanha, onde se fez a massa para Portugal, no porto de Santa Maria, em que se ele achou capitão de sua galé; ali teve muitos recados de D. António e de seus consortes. Levou-lhe estes recados Diogo Bocarro, natural de Beja, e António Giralde que depois foi preso na rota de Alcântara, e Manuel Coelho, de Tânger; com todos estes lhe fazia grandes promessas, de que ele sempre zombou, mas antes lhe aconselhou a ele e a eles o que mais lhe convinha, que era dar a obediência a Sua Majestade.
Acabada a massa, e junta a armada, vieram sobre Lisboa. O dia da batalha lhe encarregaram a banda da terra, a qual ele levou recolhida e ordenada, assim como lhe foi encarregado. Neste dia, nem nos mais do saquo , não consentiu, nem permitiu que gente de sua galé saqueasse, nem se ocupasse em mal fazer, mas antes com seus soldados andou sempre defendendo se não fizesse desaguisado. Nisto e em todo o mais que lhe foi encomendado, deu sempre muito boa satisfação de si a seus generais.
O ano de oitenta e um, no mês de Janeiro, foi à Corte, que àquele tempo estava em Elvas, donde Sua Majestade mandou viesse à ilha de S. Miguel. Fez-lhe mercê de quinhentos cruzados de aposentadoria. Deram-lhe em casamento com Catarina Mendes Pereira, filha de António Mendes Pereira, na cidade da Ponta Delgada desta ilha de S. Miguel, seis mil cruzados. Agora terá de fazenda dez mil cruzados e mais o que Sua Majestade lhe dá, afora o hábito de Santiago, que lhe deu com sua tença .
Isto é o que pude alcançar de quem dele sabe e há visto seus papéis. E muitas mais cousas fez grandiosas, além destas.
Chamava-se este valoroso e grandioso Capitão, primeiro Jordão Jácome Corrêa, e depois por sua liberalidade e muita força e ânimo, e pelas cousas grandes e memoráveis que fez em diversas batalhas, lhe chamaram Alexandre, e sendo capitão lhe ficou o nome que agora tem, e se chama o Capitão Alexandre, porque em tudo é grande. É homem de boa estatura, algum tanto moreno, grave no rosto e pessoa, com a barba preta e bem posta, bem assombrado, prudente e de grande conselho, discreto, afábel , cortês e amigo de honrar e fazer bem a todos, sem murmurar de ninguém; merecendo por estas cousas nome na paz, como mereceu na guerra por suas grandes façanhas.